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‘Tempestade perfeita’: cidadãos enfrentam um serviço ineficiente em meio à fúria do clima

Desde que assumiu a energia paulista, a Enel cortou funcionários e aumentou lucro. Mas quando o consumidor mais precisou, ficou no escuro. Resta a lição sobre privatizações versus interesses políticos

Crédito:  Ronny Santos

Mais de mil árvores caíram sobre carros e fios, bloqueando ruas na capital (Crédito: Ronny Santos)

Por Luiz Cesar Pimentel

RESUMO

• São Paulo viveu dias de fortes chuvas e empresa de energia falhou na contenção dos danos
• Moradores chegaram a ficar vários dias sem luz e comércio teve prejuízos milionários
• Enel havia cortado 8 mil funcionários em quatro anos
• Tempo médio de resposta da companhia a pedidos emergenciais aumentou 7 horas desde 2018
• Enel ocupa o 19º lugar entre as 29 maiores concessionárias de energia no País em ranking de qualidade da Aneel
• Prefeito de São Paulo sugere contribuição da população para enterrar fios
• Presidente da Enel fala em cadastramento arbóreo: custo de fiação subterrânea seria 8 vezes maior que aérea
• Perspectivas não são boas: 2023 deve ser o mais quente dos últimos 125 mil anos

As fortes chuvas que atingiram São Paulo na sexta-feira, 3, foram as maiores nos últimos cinco anos no Estado. É esse o mesmo período em que a concessão de energia elétrica em grande parte do estado passou para a Enel. Cem horas depois do temporal, mais de 100 mil pessoas ainda estavam sem luz e sem previsão de retorno por parte da companhia, enquanto o prefeito Ricardo Nunes (MDB) e o governador Tarcisio de Freitas (Republicanos) lavavam as mãos sobre o rastro de destruição e sugeriam análises mágicas para o corte energético que:
• atingiu 2.1 milhões de imóveis,
• prejudicou mais de oito milhões de pessoas,
• derrubou 1.400 árvores e matou oito pessoas.

A planilha contábil da empresa, que assumiu o controle em 2018, mostra corte de oito mil funcionários nos recentes quatro anos e um lucro que atingiu R$ 1,4 bilhão em 2022. Enquanto isso, a briga entre lucro almejado pelo responsável pelo serviço e interesse político nas privatizações só acusa um derrotado: o consumidor.

Tudo isso não aconteceu à toa. Qualquer empresa que lide com serviço de primeira necessidade, como água, saúde, força e luz, tem um protocolo básico de ações preventivas e de soluções a eventos extraordinários. São as ações de preparação para possíveis ocorrências, a resposta à sociedade civil, com a reparação de danos e recuperação de infraestrutura.

No caso de São Paulo, a Enel falhou em todas. “Nós temos um plano de contingência e o acionamos. Só que fomos surpreendidos com a intensidade da chuva e aumentamos o número de equipes de atuação de 300 na sexta para 1.200 na segunda-feira”, diz à ISTOÉ o presidente da Enel São Paulo, Max Xavier Lins.

Segundo a Enel, 95% dos problemas foram por queda de árvores, como no Planalto Paulista (Crédito:Marco Ambrósio)

Sobre a previsão para o evento climático, havia alerta meteorológico prévio, com a subida de ciclone extratropical do Sul do País e encontro com massa de ar quente no Sudeste. O presidente da companhia italiana no Brasil, Nicola Cotugno, mostrou ter tratado a situação sem a menor dimensão de gravidade pela qual passariam oito milhões de imóveis e cerca de 18 milhões de pessoas atendidas pela Enel.

“Temos um serviço de meteorologia para previsão e nos avisaram: cuidado que à tarde alguma chuva pode vir e, objetivamente, veio um evento extraordinário”, disse em entrevista à “Folha”.

Na fatídica sexta-feira, ainda pela manhã, o CGE (Centro de Gerenciamento de Emergências Climáticas) anunciava a previsão de chuva forte com rajadas de vento que poderiam superar os 70 km/h. “Hoje temos sistemas e institutos no Brasil que fazem previsões de altíssima qualidade”, diz o cientista climático Carlos Nobre.

Moradores da Zona Sul foram às ruas e fizeram três bloqueios na capital (Crédito:Divulgação)

Sobre a ação imediata, mais motivos surgiram para revoltar a população – com a redução gradativa de funcionários, o tempo médio de resposta da companhia aos pedidos emergenciais pulou de seis horas em 2018 para 13 neste ano.

Em danos:

• A Federação de Hotéis, Restaurantes e Bares do Estado de São Paulo (Fhoresp) calcula que a falta de abastecimento causou prejuízo de R$ 500 milhões a 14 mil empresas de alimentação e turismo.

• A Associação Comercial (ACSP) coloca mais R$ 126 milhões negativos de comerciantes na conta.

Sem contar os consumidores atingidos, que têm direito a ressarcimento caso o problema tenha danificado aparelhos domésticos.

O Ministério Público propôs que a empresa pague indenização aos proprietários dos imóveis afetados para tentar evitar potencial avalanche de ações judiciais. No quinto dia sem retorno de energia, três grandes protestos tomaram as ruas, fecharam avenidas e rodovias paulistas e terminaram com um policial baleado na perna.

Um dos prejudicados foi o funcionário público Jorge Garcia, morador de Caucaia do Alto, que estava com a família perto de completar uma semana sem energia, vivendo de improviso. Água quente só no fogão, para banho de canequinha, roupas lavadas na mão pela mulher, Patrícia, gambiarra com luz puxada do vizinho para carregar celulares, compras miúdas no mercado, “só de três bifinhos” de frango por vez por falta de geladeira.

“Foi tudo jogado fora”, afirma o casal, que passou a jantar à luz de velas com o filho Vinicius. Na quarta-feira, Jorge se dizia “todo dolorido” por tirar a árvore que caiu sobre um poste com ajuda dos vizinhos, na esperança de adiantar o serviço da Enel.

Na UBS Gama 2, também em Caucaia, a coordenadora regional Alessandra Bana dizia que os problemas de atendimento só não foram maiores porque o posto conta com gerador. “Recebemos muita gente preocupada com medicações que precisam ficar em geladeira, como insulina. Assim, armazenamos os remédios em sacolinhas, com os nomes dos pacientes, que passaram a vir aqui para receberem aplicações.”

(Rogério Cassimiro))

“No dia da chuva, teve tantos bloqueios nas ruas que não conseguimos sequer chegar em casa e dormimos em um hotel.”
Jorge Garcia, morador de Caucaia do Alto, no sexto dia sem luz

Malfeito e frouxo

“A partir de quatro horas sem luz, o cliente pode pedir desconto na conta. Caso perca equipamento, é preciso apresentar laudo com requerimento para pedir reembolso ou conserto”, explica Renata Abalém, especialista em Direito do Consumidor.

A advogada diz que no caso da pessoa jurídica existem três tipos de danos que podem ser requeridos. “Para pessoas com o próprio negócio, quando falamos em estoque perdido podemos citar um dano material. Também podemos falar em dano estimado. Nesse caso, é preciso comprovar, com média de quanto poderia ganhar no período específico. E tem o dano moral”, diz.

O Procon (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor) notificou a Enel para que especifique providências que estão sendo tomadas.

“Além dos eventos climáticos fazerem parte do risco do negócio, cada vez é maior a intensidade desses episódios. Assim, queremos conhecer os planos das empresas concessionárias de serviços para atuar nessas situações, lembrando que logo estaremos no período de verão, quando há aumento no volume de chuvas”, diz Luiz Orsatti Filho, diretor-executivo do Procon-SP.

O prefeito Ricardo Nunes sugeriu ‘contribuição’ do consumidor para enterrar fios (Crédito:Tomzé Fonseca)

A companhia atende, além de São Paulo, a mais dois estados: Ceará e Rio de Janeiro. Até o ano passado, também operava em Goiás, mas o governo local sofreu grande número de reclamações de consumidores e pressionou tanto a concessionária que esta preferiu vender a operação à Equatorial Energia, por R$ 1,6 bilhão.

O número é próximo ao lucro que teve na operação paulista em 2022, de R$ 1,4 bilhão, um ganho de 80% sobre 2019, o primeiro ano cheio de operação. Só que mesmo com lucro em alta, a Enel ocupa o 19º lugar entre as 29 maiores concessionárias de energia no País em ranking de qualidade da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica).

“Plano de enterramento dos fios pode provocar elevação da tarifa; não é a única solução.”
Max Xavier Lins, presidente da Enel SP

Max Xavier Lins, presidente da Enel SP (Crédito:Rovena Rosa/Agência Brasil)

Três dias após o temporal, com 500 mil dos dois milhões de imóveis ainda sem luz na região metropolitana, o prefeito da cidade, Ricardo Nunes, apresentava o enterramento de fios como solução preventiva e sugeriu que paulistanos interessados pagassem “contribuição de melhoria” para ajudar na conta, estimada em R$ 20 bilhões para tornar subterrânea a fiação somente da área central da cidade – solução que já vinha debatendo não publicamente com representantes da própria concessionária há um ano.

Para o governador do estado, Tarcisio de Freitas, as vilãs foram as árvores. “O problema foi a questão arbórea. Por falta de manejo adequado, árvores acabaram caindo sobre a rede”, disse em coletiva.

A área de cobertura da Enel tem estimadas 650 mil árvores no ambiente urbano da capital e mais de três milhões no total. Para o presidente da Enel, a atuação sobre a vegetação é a solução mais viável para o estado. “Um amplo cadastramento do parque arbóreo, com registro de saúde da vegetação, faz mais sentido e é mais barato do que o enterramento de fios, já que o custo da fiação subterrânea é de oito a dez vezes superior à aérea”, diz Xavier Lins, o presidente da Enel.

Já prefeito e governador de São Paulo concordaram em um ponto: criticaram a forma como foi conduzida a privatização, já que os dois têm interesse político na concessão da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) à iniciativa privada. Para Nunes, o acordo com a empresa italiana foi “malfeito”. Para Tarcisio, foi um “contrato frouxo”. Ele disse que com a “Sabesp o modelo será absolutamente diferente desse modelo do setor elétrico”, com mais exigências.

Dados os problemas enfrentados em São Paulo, a privatização da empresa de saneamento virou centro de atenção. O governador pretende concretizar o negócio antes das eleições municipais de 2024, pois almeja benefício político para o prefeito, que tenta reeleição e está atrás nas pesquisas de Guilherme Boulos (PSOL).

O negócio precisa ser aprovado pela Assembleia Legislativa e a Justiça suspendeu audiência pública que seria realizada durante a semana sobre projeto de lei que pretende autorizar a privatização. Atualmente, o governo do estado detém 50,3% da Sabesp, sendo o resto negociado nas Bolsas de São Paulo e Nova York.

Carlos Nobre, cientista climático (Crédito:Marco Ankosqui)

“O Brasil tem 2 milhões de pessoas em áreas de altíssimo risco climático.”
Carlos Nobre, cientista climático

A Sabesp presta serviço de saneamento para 375 municípios que compreendem 28,5 milhões de pessoas e merece ficar no radar de atenção. Em 2022, o lucro líquido registrado foi de R$ 3,1 bilhões e o valor de mercado, R$ 32,9 bilhões. Conseguiu uma proeza antes mesmo da decisão de venda ou não: unir políticos de esquerda e direita contra privatização.

Bolsonaristas fazem coro ao PT e PSOL, partidos que entraram com ação no Supremo Tribunal Federal para evitar a cessão do saneamento paulista. “A gente não vai tentar vender a cama para dormir no chão. A gente não vai vender ativo público. Vamos fazer com que eles se tornem tão competitivos e que compartilhem a relação com a iniciativa privada para que possa melhorar”, disse o presidente Lula durante evento na semana.

A privatização brasileira vai no caminho contrário ao que muitos países europeus fazem, principalmente nos últimos cinco anos. Após onda de concessão, iniciou-se movimento de reestatização de empresas que prestam serviços essenciais e estratégicos. O centro de análise e sustentabilidade holandês Transnational Institute (TNI) apurou 1408 exemplos de companhias européias que voltaram ao controle estatal recentemente.

”Estimo um prejuízo de R$ 40 mil nesses dias que não conseguimos atender nenhum cliente.”
Pedro Barbieri, proprietário de clínica estética em São Paulo

Pedro Barbieri, proprietário de clínica estética em São Paulo (Crédito:Rogério Cassimiro)

Clima quente

O evento climático em São Paulo não foi exatamente uma novidade no País. No mesmo final de semana, um ciclone no mar causou a formação de ondas de 3,5 metros no Rio de Janeiro e ressaca com água invadindo calçadões e chegando a pistas de avenidas próximas.

Em Manaus, o tempo seco e as queimadas fizeram com que a capital amazonense primeiro fosse tomada por fumaça e em seguida por “tempestade de poeira” com ventos de 70 km/h que a encobriram.

O Rio Grande do Sul vem sendo afligido por ciclones que repercutem nos estados acima, como aconteceu em São Paulo, causando chuvas que, desde o início de outubro, colocaram 27 cidades paranaenses em estado de emergência, com danos em mais de sete mil residências.

A intensidade destrutiva dos fenômenos em consequência das mudanças climáticas é tema de estudo do Banco Mundial que, em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina, lançou em 2020 o Relatório sobre Desastres Naturais no Brasil.

Ao longo dos anos (entre 1995 e 2019) foram registrados 64.429 ocorrências no País. “O estudo identificou perdas econômicas de R$ 333,36 bilhões durante os 25 anos de abrangência”, aponta Paloma Anos Casero, diretora do Banco Mundial em Brasília, que assina o documento.

Para facilitar a prevenção, resposta e ações posteriores, principalmente em territórios de dimensão continental como o Brasil, que ainda tem costa litorânea de 7.367 km, os relatórios climáticos dividem os potenciais desastres em:
climatológico (ondas de calor, frio, seca e incêndios florestais),
hidrológico (inundações, enxurradas e alagamentos),
 meteorológico (tempestades, vendavais e ciclones).

A previsão futura não é nada boa: 2023 deve ser o mais quente dos últimos 125 mil anos, segundo o Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus (C3S), da União Europeia.

O Acordo de Paris tem como uma das metas impedir que a temperatura média global ultrapasse 1,5°C. “Provavelmente atingiremos mais 1,5°C em uma década. Este ano devemos chegar a 1,3°C [de aumento]. Com isso já temos esse enorme crescimento na frequência dos eventos extremos. Com 1,5°C, mais ainda. Então há que se instituir ações políticas efetivas de preparação da população para resistir a essas ocorrências”, afirma Nobre. “Os impactos das mudanças climáticas não têm mais volta.”

Colaboraram Mirela Luiz e Denise Mirás