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“O desmatamento que vi na Amazônia é chocante”, diz a britânica Jane Godall

Crédito:  Silvia Zamboni

Dra. Jane Goodall: mais de seis décadas dedicadas à defesa do meio ambiente (Crédito: Silvia Zamboni)

Por Felipe Machado

Em 1960, aos 26 anos, a britânica Jane Goodall viajou pela primeira vez às montanhas de Gombe, na Tanzânia, para se aventurar pelo então desconhecido mundo dos chimpanzés. Equipada com cadernos, binóculos e uma paixão infinita pela natureza, ela deu origem a pesquisas que mudaram a forma como nos relacionamos com os primatas. Ao estudar o comportamento da espécie mais próxima do ser humano, ajudou a compreender quem somos e de onde viemos. Aos 89 anos, essa Mensageira da Paz da ONU continua em missão pelo planeta, viajando 300 dias por ano para disseminar sua mensagem em defesa do meio ambiente e do combate às mudanças climáticas. Após passagem pela Amazônia, a fundadora do Instituto Jane Goodall, com sede em 26 países, conversou com ISTOÉ e demonstrou que, apesar dos problemas que enfrentamos, sua palavra favorita após seis décadas de luta ainda é a mesma: esperança.

O que lhe vem à cabeça quando pensa na Amazônia? Como o Brasil deve preservar a floresta?
Desmatamento, pecuária, queimadas em áreas enormes, garimpo ilegal, todas essas coisas me vêm à cabeça. Estive lá e o desmatamento que vi foi chocante. É uma das regiões mais ricas em biodiversidade do planeta e, se parar de ser destruída, ajudará a reduzir as mudanças climáticas. Conheço melhor as florestas do Congo, na África. São áreas enormes que deveríamos estar protegendo muito melhor, pois suas árvores e vegetação ajudam a absorver o dióxido de carbono.

O planeta tem enfrentado outra ameaça: o negacionismo disseminado por alguns políticos. Como podemos salvar o mundo que eles nos legaram?
Acredito que isso depende de os eleitores terem informações e decidirem que desejam uma forma diferente de serem governados. Tenho notado que os jovens políticos assumem seus cargos comprometidos com a defesa do meio ambiente e o combate às mudanças climáticas. Mas assim que apresentam um projeto que obriga os eleitores a apertarem um pouco o cinto porque pode custar um pouco a mais, eles se afastam. Precisamos apoiar as pessoas que têm a coragem de tomar as decisões corretas no governo e na política. É por isso que considero tão importante o programa voltado para a juventude que promovemos no Instituto Jane Goodall.

“Não escolhi trabalhar com chimpanzés. Comecei graças a Louis Leakey. Meu mentor queria alguém que os estudasse porque 98,6% da estrutura de DNA deles é igual à nossa”

Sua luta pela preservação da natureza e contra as mudanças climáticas dura décadas. A situação melhorou ao longo desses anos?
Na verdade, piorou. O que melhorou foi a conscientização das pessoas, mais gente está ciente do que está acontecendo. Porém, uma boa parte tem a impressão de que é uma luta sem futuro, portanto não age para mudar o cenário.

Qual é a importância de jovens líderes ambientais com destaque na mídia, como Greta Thunberg?
Bem, depende da atitude desses jovens. Na minha perspectiva, quando estou falando com alguém do alto escalão de um governo tento não ser agressiva, não apontar o dedo. Porque sei que se fizer isso eles se sentirão acuados e recusarão minhas ideias. Meu caminho é diferente. Tento entender meu interlocutor e fazê-lo encontrar uma forma de participar da história. Acredito que é preciso tocar o seu coração. A mudança real só ocorre quando a vontade vem de dentro. Se é apenas conversa fiada de político, não chegamos a lugar nenhum. Essa é a minha experiência.

Chegou a pensar em entrar para a política?
De jeito nenhum. Trabalhar com políticos, sim. Ser política, não.

Como especialista no comportamento dos chimpanzés, o que aprendeu com eles que a ajuda a entender os seres humanos hoje?
Aprendi o quanto eles são parecidos conosco. Principalmente por meio da comunicação não-verbal. Eles se beijam e se abraçam, dão as mãos, acariciam uns aos outros. Os machos exibem aquele comportamento arrogante de competição com os outros pelo poder, exatamente como os políticos humanos. A principal diferença é o fato de termos desenvolvido uma linguagem falada. Assim, é possível ensinar coisas aos filhos mesmo quando não estamos presentes. Os jovens chimpanzés aprendem observando, imitando e por meio da experiência, enquanto nossos filhos podem ser ensinados com ideias. O mais importante é que podemos reunir pessoas para discutir juntos uma determinada situação. E então colocamos em prática esse cérebro altamente desenvolvido, que acredito ser o resultado da nossa habilidade em se comunicar por meio de palavras, reunir pessoas de diferentes disciplinas e origens para tentar resolver problemas.

Por que decidiu trabalhar com chimpanzés?
Amo onças, macacos, adoro todos os animais. Não escolhi trabalhar com chimpanzés. Comecei graças ao pesquisador Louis Leakey. Meu mentor queria alguém que os estudasse porque 98,6% da estrutura de DNA deles é igual à nossa.

A paixão foi tão grande que passou a dedicar a vida a estudar o comportamento desses animais.
É fascinante ver como chimpanzés são parecidos conosco. A forma como se organizam politicamente é muito interessante. O centro de pesquisas em Gombe, na Tanzânia, que comecei em 1960, chegou ao seu 64º ano. Sem parar, com os mesmos indivíduos e famílias, de geração em geração.

O que sente ao ver a primeira geração que acolheu?
Infelizmente, os mais antigos que conheci se foram, porque chimpanzés vivem até os sessenta anos. Há uma fêmea especial que adotamos quando tinha cinco ou seis anos. Hoje ela é uma senhora idosa, mas continua muito forte. Teve um bebê há dois anos, é uma fêmea poderosa.

Em seu Livro da Esperança, há um trecho que diz que vivemos “em tempos sombrios”. O que o cidadão comum pode fazer para trazer um pouco de luz ao mundo?
Depende. As pessoas são muito diferentes, possuem empregos e níveis econômicos diversos, mas sempre podem fazer algo. Todos nós temos a oportunidade de fazer a diferença. Essa é a principal mensagem do nosso programa para jovens, que, aliás, vai do jardim da infância até a universidade. Cada indivíduo causa algum impacto todos os dias, e temos que optar pelo efeito que queremos causar. Podemos escolher o que comprar e o que não comprar, o que comer e o que não comer. Algo muito importante que devemos fazer é migrar aos poucos para uma dieta baseada em plantas. Há áreas imensas no Brasil e no mundo usadas apenas para criar gado.

Algumas pessoas dizem que a esperança é um sentimento passivo. Ela precisa de ação para existir?
Com certeza a esperança envolve a ação. Algumas pessoas vêm até mim deprimidas, dizendo que não há o que fazer, é tarde demais. Se você pensar no que está acontecendo no mundo, ficará deprimido. Todo mundo fica, até eu. A solução é pensar em como cada um pode mudar a sua comunidade ou o seu trabalho. Concentre-se nisso, chame os amigos para ajudar. Qualquer indivíduo pode inspirar os outros. O Instituto Jane Goodall está em 26 países porque encontramos pessoas que desejam fazer a diferença.

Quando se fala em inteligência artificial, muita gente tem uma visão apocalíptica. Outros acreditam que a tecnologia pode ajudar a proteger o meio ambiente. Qual é a sua opinião?
É possível seguir os dois caminhos. No Instituto Jane Goodall, usamos novos sistemas para mapear a área, monitorar a posição dos chimpanzés, analisar a saúde da floresta. Aplicamos técnicas de última geração para reconhecer filhotes de diferentes famílias. Isso nos proporcionou reconhecer três novas espécies em Gombe que não existiam antes. Mas também sabemos que é possível usar a tecnologia de maneira prejudicial.

Estamos perto do “ponto irreversível” em relação às mudanças climáticas? É possível estabelecer uma data limite que, se não agirmos, estaremos condenados?
As pessoas dizem isso, mas não vejo como seria possível prever uma data. Acredito que temos uma janela de tempo. Não sei o tamanho dela, mas não acho que seja muito grande. Esse prazo está se fechando. É por isso que, mesmo com quase 90 anos, continuo viajando pelo mundo.

“Desmatamento, pecuária, queimadas em áreas enormes, garimpo ilegal. Quando penso na Amazônia todas essas coisas me vêm à cabeça” (Crédito:Frédéric Jean)

O planeta agradece. A senhora costuma dizer que a esperança é contagiosa. O que quer dizer com isso?
Digamos que você acorda se sentindo deprimido, acha que é tarde demais para mudar as coisas. Então conhece alguém como eu, que diz que ainda há tempo. Você começa a fazer algo para melhorar a situação e passa a se sentir melhor.

A senhora se considera uma otimista?
Sim. Conheço muitas pessoas que não são, mas também conheço aquelas que dizem: você mudou o meu modo de pensar e por causa disso quero fazer o meu melhor.

Tenho uma filha de 16 anos. Que mensagem você gostaria de deixar para ela e para os jovens brasileiros?
O pensamento que quero compartilhar é que elas estão neste mundo por um motivo. Sua filha pode ainda não saber qual é o motivo, mas quando isso se revelar ela pensará: é para isso que estou aqui, é isso o que devo fazer. E então ela vai arregaçar as mangas e agir. A humanidade está no início de um túnel longo e escuro. No final, há uma pequena estrela brilhando. É a esperança. Mas você não pode ficar no meio do caminho querendo que aquela estrela venha até nós. Temos que nos dedicar e superar os obstáculos que estão entre nós e a estrela.

Quais são esses obstáculos?
Mudanças climáticas, perda da biodiversidade, agricultura industrial, caça, mineração de ouro. A boa notícia é que, para cada um desses problemas, existem vários grupos pensando como podemos resolvê-los. O triste é que eles muitas vezes atuam separadamente, e precisamos fazê-los trabalhar juntos. Digamos que você consegue fechar uma mina de carvão, mas e aqueles que perderam seus empregos? Provavelmente destruirão o meio ambiente para tentar sobreviver. Precisamos ter conexão com as pessoas, para resolver os problemas antes de criá-los.