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Adeus déficit zero: entenda por que Lula deixou Haddad ‘no pincel’

Ao declarar que o governo não conseguirá zerar o déficit fiscal em 2024, o presidente enfraquece Fernando Haddad e seu esforço de negociar medidas para o equilíbrio das contas públicas. Com isso, ameaça desmontar o arcabouço fiscal antes mesmo de ele entrar em vigor

Crédito:  Fátima Meira

Rui Costa e Lula no Palácio do Planalto, dia 25: o ministro da Casa Civil não queria cortes no PAC e venceu o embate com Haddad (Crédito: Fátima Meira)

Por Regina Pitoscia

RESUMO

• Depois do esforço de Haddad em conquistar o mercado, Lula diz que dificilmente governo vai zerar o déficit
• Haddad ficou sem chão ao negociar com o Congresso as medidas essenciais para o equilíbrio fiscal
• Lula colocou em risco o controle da inflação, queda dos juros, financiamento da dívida pública e o crescimento do PIB
• A argumentação é de que não se pode fazer cortes de investimentos em obras que contemplam políticas sociais
• Decisão de aceitar rombo nas contas públicas expõe divergências entre os ministros
• Mas embate entre Rui Costa, que não queria cortes no PAC, e Haddad pode não passar de jogo de cena, diz analista

 

Desacreditado no início, Fernando Haddad conquistou o mercado e era considerado o negociador mais confiável do governo no Congresso. Conseguiu uma enorme vitória com a aprovação em agosto do arcabouço fiscal, substituto do teto de gastos, considerado o principal pilar de uma política fiscal responsável. Mas o ministro da Fazenda passou a viver uma tempestade perfeita desde o dia 27, quando Lula declarou num café da manhã com jornalistas que dificilmente o governo cumprirá a meta oficial de zerar o déficit fiscal em 2024 e que muitas vezes o mercado é “ganancioso” e cobra algo irreal do governo.

Segundo o mandatário, o rombo nas contas públicas pode ficar entre 0,25% a 0,5% do PIB sem nenhum problema. “Tudo o que a gente puder fazer para cumprir a meta fiscal, a gente vai fazer. O que posso dizer é que ela não precisa ser zero. A gente não precisa disso”, defendeu.

Ao declarar que o governo não terá condições de cumprir o que prometeu, o presidente desautorizou e enfraqueceu Haddad, ministro próximo e de sua confiança, em seu esforço de negociar com o Congresso cada palmo de medidas essenciais para o equilíbrio fiscal.

Não foi só isso. O presidente fragilizou o governo e a si próprio ao dar munição para ataques da oposição. Pior ainda, ameaçou desmontar o arcabouço fiscal antes mesmo de ele entrar em vigor, colocando em risco:
• o controle da inflação,
• a queda dos juros,
• o financiamento da dívida pública,
• o próprio crescimento do País.

Na visão majoritária dos especialistas, ao ser parcimonioso com o estouro das contas, o presidente não tratou de um mero detalhe nas finanças. Mexeu com a espinha dorsal da economia e desestruturou as principais variáveis para sua condução.

“Se o Brasil tiver um déficit de 0,5% do PIB, o que é? De 0,25%, o que é? Nada, absolutamente nada. Então vamos tomar a decisão correta e vamos fazer aquilo que vai ser melhor para o Brasil.”
Luiz Inácio Lula da Silva, presidente

E essa ação do presidente vai na contramão de um difícil esforço de seu principal ministro. Ainda que houvesse desconfiança entre os agentes econômicos em relação a um empate entre entrada e saída de recursos dos cofres públicos no próximo ano, ao manter-se convicto na defesa da meta de déficit zero, Haddad cumpria um papel decisivo, o de ancorar as expectativas.

Afinal, essa conduta rígida era uma sinalização de que o governo mantinha-se empenhado em chegar aos melhores resultados possíveis dentro de um cenário de dificuldades, inclusive no âmbito internacional.

Essa arquitetura ruiu com a fala de Lula, ao admitir que o governo não está disposto a fazer cortes de investimentos em obras que contemplam políticas sociais logo no início do ano.

Em café da manhã com jornalistas, dia 27, Lula minimiza importância de meta para déficit zero e fragiliza Haddad (Crédito:Gabriela Biló)

“Essa declaração do Lula caiu num momento em que havia muito ceticismo em relação ao cumprimento de meta zero. No Boletim Focus, a projeção é de um déficit de 0,8% do PIB, mas a manutenção da meta gera esforços tanto pelo lado dos gastos como pelo lado das receitas” pondera Alessandra Ribeiro, sócia e diretora de macroeconomia da Tendências.

“A alteração da meta gera muita insegurança, e o afrouxamento dos gastos pode levar a um resultado pior que o estimado pelo mercado.”
Alessandra Ribeiro, da consultoria Tendências

Ela explica que o grande guarda-chuva da estabilidade econômica é o fiscal. As dúvidas decorrentes sobre a capacidade do governo em cumprir as metas fazem os juros futuros subirem, o que encarece o financiamento da dívida e aumenta os gastos públicos na formação de um círculo vicioso e negativo para toda a economia.

O desafio é grande para o governo. Para zerar o rombo das contas, a equipe econômica precisaria aumentar a arrecadação em mais de R$ 168 bilhões.

Para isso, é vital a contribuição de parlamentares na aprovação de projetos. Não à toa, na tentativa de apagar incêndio, o presidente foi em busca de apoio e se reuniu na última terça-feira, 31, com representantes de sua base aliada no Congresso, pedindo prioridade no andamento de pautas que podem contribuir para elevar as receitas.

Entre elas, a aprovação no Senado de cobrança de imposto nos fundos de investimentos exclusivos e fundos no exterior, medida que já passou pelo crivo da Câmara, além da análise do projeto que termina com benefícios fiscais a empresas na distribuição de seus lucros, os Juros sobre Capital Próprio (JCP).

O andamento da Reforma Tributária também foi colocado na mesa, embora os resultados desejados venham a médio prazo.

Irritação de Haddad

No mesmo encontro, Lula teria deixado claro que mudará a meta fiscal, segundo um dos participantes, o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), um dos líderes do governo na Câmara. A questão é que ao esticar a meta, o governo rompe seu compromisso sacramentado em abril no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2024 e inicia o desmonte do arcabouço fiscal, sustentado pela premissa de déficit primário (receitas menos despesas, sem considerar os juros da dívida pública) e promessa de melhora gradual das contas do governo a cada ano.

Mais do que rever números e cálculos, a decisão de subir a régua e prever déficit nas contas expõe divergências e visões distintas entre os ministros da Casa Civil, Rui Costa, que está alinhado com o PT e tenta evitar cortes no Novo PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento que é uma das marcas históricas da legenda, e o da Fazenda, Fernando Haddad, que tenta o quanto pode preservar sua principal bandeira, de controle das contas públicas.

Haddad mostrou muito desconforto e irritação nas aparições públicas após as declarações de Lula, mas não o desmentiu sobre dificuldades para zerar o déficit e sobre mudanças na meta fiscal para 2024, ressalta Étore Sanchez, economista da Ativa Investimentos.

Questionado sobre o assunto, o ministro respondeu que a sua meta está estabelecida. “A fala denota isolamento do ministro, o que nos conduz à conclusão de que existem forças dentro do próprio governo que saíram vitoriosas na questão fiscal e com mais poder. Percebe-se que o ministro perdeu o apoio majoritário sobre os objetivos fiscais, se é que um dia esse suporte existiu”, diz Sanchez.

“É estranho que Lula queira fragilizar seu ministro da Fazenda, em vez de expressar seu apoio. A sua fala não acrescenta nada para garantir o sucesso do próprio governo”
José Álvaro Moisés, cientista político e professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Moisés destaca que o tema do déficit recebeu um tratamento dúbio dentro do partido governista, ao se referir à presidente do PT, Gleisi Hoffmann, ao afirmar que o déficit zero era impossível de ser atingido.

Para ela, isso impedia os gastos em áreas sociais. Demonstrava claramente que era contra a meta fiscal. Nesse momento, lembra o especialista, Lula não se manifestou e procurou tranquilizar o mercado e os políticos. Sem aviso prévio, e em mudança drástica de rota, com suas declarações, o presidente colocou seu ministro em situação difícil que teve se explicar.

Para Moisés, qualquer governo que queira fazer uma mudança tão importante em várias áreas da economia precisa ter clareza dos objetivos ao se comunicar com a sociedade, apresentar as metas e defendê-las.

Ao contrário, a declaração de Lula vai em sentido oposto a todo esforço feito por sua equipe econômica nas negociações com o Parlamento em defesa do equilíbrio fiscal.

“É um movimento contraditório, porque Lula age contra essas medidas ao mesmo tempo em que cede ao Centrão, com decisões muito discutíveis e passíveis de críticas, para atender até o presidente da Câmara, Arthur Lira, com a presidência da Caixa, com o objetivo de aprovar medidas no Congresso. Ele minimiza a importância do déficit zero.”

Jogo de cena

Na opinião de Nélson Marconi, professor da Fundação Getúlio Vargas, toda essa temática teria sido evitada se o governo tivesse fixado metas para o déficit, mas excluindo os investimentos.

“O próprio presidente disse que quer dinheiro para obras que representem investimentos, e os gastos para investimentos resultam em crescimento, em uma recuperação sustentada da economia.”

Marconi também considera difícil o presidente Lula não ter combinado com Haddad o que fariam. “Esse jogo todo faz parte da cena, deve estar acertado no contexto todo”, afirma.

Além disso, em sua avaliação, era mesmo muito difícil chegar ao déficit zero, condição que uma vez já prevista deveria ter levado o governo a trabalhar com mais realidade nos números e deixar mais claro o que realmente vai acontecer, se o déficit primário será mesmo de 0,5% do PIB. “Não vejo motivo para tanto alarde”, diz.

Apesar da tentativa de demonstrar unidade e tranquilidade na reunião do dia 31 com os parlamentares, o presidente e sua equipe já passaram a enfrentar os primeiros reveses.

A avaliação no Congresso é que será mais difícil aprovar medidas arrecadatórias que contrariem as bases dos congressistas, além de setores empresariais influentes.

A pressão por liberar mais emendas de forma impositiva, como já se discute no projeto da LDO, também cresceu. Afinal, se o governo quer garantir verbas para obras do PAC com potencial de atrair votos em ano eleitoral, porque os parlamentares não poderão se beneficiar também?