Entenda por que Biden é o “senhor da guerra” no conflito Hamas x Israel
Jogando todo o seu peso como líder de uma superpotência, Joe Biden diz que os EUA enfrentam lutas decisivas para o destino dos americanos e o futuro das próximas gerações. Falta convencer o resto do mundo de que o país tem o poder de defender valores universais e restabelecer a ordem internacional
Por Marcos Strecker
Desde a Segunda Guerra, nunca o prestígio dos EUA esteve tão em baixa no mundo. Mesmo assim, nenhuma potência rivaliza atualmente com o poder americano para ditar os destinos do planeta e resolver os maiores conflitos em ao menos meio século. E o presidente Joe Biden deixou claro que não vai abrir mão dessa prerrogativa, inclusive recorrendo ao seu arsenal militar. Na guerra em Gaza, ocasionada pelo massacre do grupo Hamas em Israel no dia 7 de outubro, o americano mostrou que dá as cartas.
Vetou a proposta de cessar-fogo humanitário proposto pelo Brasil, alegando que Israel tem o direito de se defender. Ao mesmo tempo, despachou dois porta-aviões para conter o Irã, que tenta insuflar grupos terroristas na região, além de enviar armas e analistas militares para dar apoio aos israelenses.
As ações foram rápidas. Um dia após sua visita-relâmpago a Tel Aviv, dia 18, Biden pediu ao Congresso US$ 106 bilhões para financiar militarmente a Ucrânia, Israel e também Taiwan. O americano reivindicou o papel dos EUA como “nação essencial” para dissuadir as forças da agressão, sejam terroristas ou Estados párias.
“Hamas e Putin representam ameaças diferentes, mas elas têm algo em comum: ambas querem aniquilar completamente democracias vizinhas.”
Joe Biden, presidente dos EUA
Ele queria US$ 60 bilhões em armas para a Ucrânia, US$ 14 bilhões para Israel, US$ 2 bilhões para o sudeste asiático (com foco em Taiwan) e US$ 12 bilhões para reforçar a segurança contra a imigração no sul do país (uma forma de angariar apoio de republicanos).
Biden está virando um presidente de guerra. Ele disse que o país vive um momento de inflexão, em que as ameaças atuais vão determinar o futuro da nação nas próximas décadas. Para ele, a liderança americana é que mantém o mundo unido, e “as alianças são o que mantém o país a salvo”.
Esse sentido de propósito histórico não comoveu ainda os parlamentares americanos, que estão em pé de guerra na Câmara, e a própria população, que coloca Biden em segundo lugar na preferência para as eleições do próximo ano, atrás do populista Donald Trump.
E também não tranquiliza o mundo, que está em compasso de espera diante de uma guerra que ameaça incendiar o Oriente Médio e ampliar a polarização e o extremismo no mundo – o conflito em Israel já provoca protestos em várias capitais e leva ao recrudescimento do terrorismo, com atentados de inspiração fundamentalista contra professores e refugiados.
O americano disse que as lutas que os EUA precisam enfrentar agora vão determinar o destino do país. Vão redefinir o mundo também, pode-se acrescentar. Falta convencer o resto do planeta de que os EUA têm o poder de recolocar a ordem internacional em uma trajetória próspera, harmônica e pacífica.
Conselho de segurança
O que se vê é o contrário. Na ONU, o conflito no Oriente Médio aumentou a temperatura no Conselho de Segurança. Convocada pelo Brasil, uma nova reunião no dia 24 afastou o colegiado ainda mais de um acordo.
O secretário-geral António Guterres voltou a insistir em uma pausa humanitária, dizendo-se “profundamente preocupado com as claras violações do direito humanitário que estamos testemunhando em Gaza”.
Ainda emendou: “É importante reconhecer que os ataques do Hamas não aconteceram no vácuo. O povo palestino vem sendo submetido a uma ocupação sufocante por 56 anos”. A declaração provocou a ira do embaixador israelense, Gilad Erdan, que chamou o discurso de “imoral”, rejeitou um cessar-fogo e ainda pediu a renúncia de Guterres.
O secretário-geral um dia depois se defendeu: “Estou chocado com as interpretações erradas sobre minha declaração, como se eu estivesse justificando os atos de terror do Hamas”. Recebeu o apoio do chanceler brasileiro, Mauro Vieira. O secretário de Estado americano, Antony Blinken, defendeu pausas humanitárias, mas não um cessar-fogo. Para ele, uma trégua só beneficia o Hamas.
O representante palestino, Riyad al Maliki, lembrou que 2.000 crianças já haviam morrido em Gaza. Para ele, o mundo não está demonstrando em relação aos palestinos a mesma indignação que exibiu com os israelenses.
Enquanto a diplomacia não apresenta soluções, o drama se agrava. Em 18 dias de conflito, 35 funcionários da ONU morreram nos bombardeios. Mais de 7 mil já perderam a vida dos dois lados.
ONU em desarranjo
Essa crise na ONU é o retrato do impasse atual no cenário internacional. Um dia depois da reunião, os EUA apresentaram uma resolução que reconhece o direito de autodefesa de Israel, e então foi a vez de Rússia e China vetarem.
Um documento da Rússia não obteve nem maioria no Conselho. As chances de acordo são mínimas, apesar de Mauro Vieira ter declarado que tentaria articular mais uma resolução com os membros não permanentes do Conselho até a próxima semana, quando o Brasil deixa a presidência rotativa do órgão.
Vladimir Putin na prática serve aos interesses de Xi Jinping, que deseja enfraquecer os EUA e o Ocidente ao mesmo tempo em que tenta sair das cordas por causa da invasão na Ucrânia.
Biden tenta se contrapor ao bloco Rússia-China, que consegue a simpatia crescente do Sul Global mesmo negando consensos sobre direitos humanos, democracia e liberdade individual.
E a guerra em Israel criou um desafio ainda maior. O americano declara que qualquer discussão sobre cessar-fogo só deve ocorrer após o Hamas libertar os reféns israelenses. Ele tem ressaltado que defende a solução de dois Estados e desde o início disse que uma nova ocupação de Gaza seria um erro. “Israel precisa ter clareza sobre seus objetivos e uma avaliação honesta sobre o caminho para alcançá-los”, declarou.
Numa ação de bastidores – negada pelo governo israelense –, ele tem pressionado contra uma incursão terrestre destemperada do Exército israelense. Além disso, pressionou pela ajuda humanitária para os palestinos, que afinal começou a entrar em operação no dia 21, com a chegada de caminhões levando medicamentos e comida.
Mas Biden também tem reforçado a ameaça representada pelo Irã. Mostrando que esse é um risco real, na quarta-feira o grupo xiita Hezbollah, armado pelo regime de Teerã e aquartelado no sul do Líbano, divulgou que seu líder havia se reunido com o vice-chefe do Hamas e com o secretário-geral da Jihad Islâmica em um local não especificado.
É exatamente para evitar esse alinhamento dos três grupos terroristas que Biden enviou duas forças-tarefa incluindo o maior porta-aviões do mundo, o USS Gerald Ford, caças, tropas, mísseis e sistemas antiaéreos, numa demonstração que não é apenas simbólica.
Um destroyer no Mar Vermelho já havia interceptado no dia 19 três mísseis de cruzeiro e vários drones lançados pela milícia Houthi do Iêmen contra alvos israelenses.
Bases americanas no Iraque e na Síria foram atacadas, uma ação que se presume seja de milícias apoiadas por Irã.
“Esses ataques indicam que os americanos agora fazem parte do conflito. No caso do Iraque, há um conjunto de 40 grupos políticos, chamados de Força de Mobilização Popular, com poderio militar financiado pelo Irã”, diz Rodrigo Amaral, professor de Relações Internacionais da PUC-SP. Para ele, está sendo testado o papel hegemônico histórico dos EUA no Oriente Médio.
“É importante reconhecer que os ataques do Hamas não aconteceram no vácuo. O povo palestino vem sendo submetido a uma ocupação sufocante por 56 anos.”
António Guterres, secretário-geral da ONU
Essa ação em múltiplas frentes é um desafio. “Estamos vivendo uma transição no ordenamento mundial. A hegemonia americana é contestada cada vez mais. Biden centra-se na lógica de que os EUA é que vão definir o que deve ser feito no conflito”, argumenta Lucas Leite, pesquisador do Gedes/Unesp.
Mas a ação do americano, além de ajudar Israel, igualmente pode ser explicada como uma forma de influenciar e conter o governo de Netanyahu. Na quarta-feira, Biden voltou a insistir que a crise em Gaza deveria ter “um caminho para a paz”.
A própria viagem para a cena do conflito foi uma aposta de grande risco. Suas iniciativas são temperadas por um cálculo interno e pela visão geopolítica global.
Mas a guerra da opinião pública pode ser perdida dependendo da resposta de Israel. Essa percepção foi bem captada por Barak Obama,que criticou o país por haver cortado o suprimento de comida e água para Gaza. Ele disse que isso enfraquece o esforço de paz e a estabilidade regional e diminui o apoio global a Israel.
Para o ex-presidente, essas decisões podem ainda radicalizar as lideranças palestinas por gerações, dando mais força aos inimigos. “Qualquer solução militar que ignore o custo humano da guerra está fadada a fracassar”, resumiu.
Foi uma rara declaração de Obama. O ex-mandatário foi o último presidente a se empenhar de fato por uma solução entre palestinos e israelenses e tinha uma relação conturbada com Netanyahu.
Já Trump alinhou-se completamente ao atual primeiro-ministro, tacitamente apoiando a política de colonização na Cisjordânia e ignorando os pleitos palestinos. Biden sempre mostrou reservas com Netanyahu, mas entendeu que deveria mostrar um apoio inabalável ao governo israelense neste momento.
Terrorismo
Assim como ele, vários líderes ocidentais reforçaram esse apoio. Além de Biden, já visitaram Israel Emmanuel Macron (França), Olaf Scholz (Alemanha), Giorgia Meloni (Itália), Rishi Sunak (Reino Unido) e Ursula von der Leyen (Comissão Europeia).
Na última terça-feira, Macron declarou que uma invasão massiva de Israel em Gaza “seria um erro” e sugeriu que a mesma coalizão internacional que combateu o Estado Islâmico passe a atuar também contra o Hamas.
O francês, que enviou um navio-hospital militar para a região, apontou o fato essencial de que a guerra israelense deve ser travada contra o Hamas, e não contra a população palestina. É um argumento que favorece uma posição mais equilibrada sobre o conflito.
A força moral ocidental ao defender a Ucrânia, por exemplo, está calcada na defesa de um país soberano, que foi invadido ilegalmente contra a carta da ONU. Já o governo de Israel está sendo escrutinado pela ameaça de punições coletivas, pela negação de ajuda humanitária e acusação de crimes de guerra.
Na última quinta-feira os tanques israelenses fizeram a primeira incursão em Gaza, ainda que apenas pontual. Uma das razões para o atraso na operação massiva é a possibilidade de que mais reféns sejam libertados – são ainda 224, segundo Israel. Após a libertação de duas americanas com intermediação do Catar, mais duas idosas foram libertadas na segunda-feira passada.
Depois de permanecer 16 dias em cativeiro, Yocheved Lifschitz, de 85 anos, relatou que foi agredida e “passou pelo inferno”. Mas disse que depois teve atendimento médico. É um registro pungente.
Além da situação dos reféns, multiplica-se o drama dos palestinos. Com a falta de comida no sul de Gaza, para onde os moradores tinham seguido por ordem de Israel, vários voltaram a suas casas, expondo-se a mais riscos.
E a nova fase do conflito, que acontecerá quando Israel efetivar sua incursão terrestre, como reforçou Netanyahu na última quarta, é um cenário de pesadelo que já foi enfrentado pelos americanos no Iraque.
O Hamas teve 15 anos para preparar sua rede de túneis em Gaza, com cerca de 500 km.
“Biden e o serviço de inteligência dos EUA têm a percepção de que um ataque a Gaza por terra poderia ser um tiro no pé, porque o Hamas conhece melhor o território e poderia usar tática de guerrilha em milhares de túneis, e levar Israel a vexames como aconteceu no Vietnã”, diz Natalia Fingermann, professora de Relações Internacionais do Ibmec-SP.
Biden também atua para evitar que Israel repita os mesmos erros cometidos pelos americanos após o 11 de Setembro, quando invadiram o Iraque em bases falsas (armas de destruição em massa inexistentes) e ignoraram a resistência da comunidade internacional. Isso ampliou a rejeição no mundo árabe, levou a longas guerras perdidas (no Afeganistão e no próprio Iraque) e espalhou novas ameaças terroristas, como o Estado Islâmico.
Este é o momento mais delicado que o mundo vive desde a Segunda Guerra. Mostrar que os EUA podem influenciar seu maior aliado no Oriente Médio defendendo valores humanitários é vital para conquistar a opinião pública internacional.
O poder do país permanece baseado em sua capacidade bélica (concentra 39% dos gastos militares do planeta). Esse poderio pode funcionar como um freio, mas também corre o risco de servir de gatilho para uma escalada se o presidente americano não conseguir evitar a expansão da tragédia, traçando um caminho para a paz.
Colaborou Regina Pitoscia