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Gestapo brasileira: como atuava o serviço “paralelo” de espionagem do governo Bolsonaro

Além do ministro Alexandre de Moraes, o presidente Lula foi um dos políticos monitorados ilegalmente pela Abin de Bolsonaro, que usou, durante todo o seu governo, um software espião comprado em Israel: mais de 30 mil brasileiros foram bisbilhotados

Crédito: Adriano Machado

Ramagem espionava e passava os dados dos monitoramentos ilegais a Bolsonaro: até Lula foi vigiado (Crédito: Adriano Machado)

Por Vasconcelo Quadros

O sistema de espionagem usado pelo governo de Jair Bolsonaro era clandestino, ilegal e sem limites. Inspirada no modelo do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), o “monstro” sobre o qual o ex-ministro da ditadura militar de 1964 Golbery do Couto e Silva, seu criador, admitira ter perdido controle, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) tinha como objetivo produzir informações inconclusivas, os famigerados informes, para atender à compulsão do ex-presidente por dados sobre a movimentação de personagens que ele enxergava como adversários de seu projeto de poder.

Na primeira fila dos alvos estavam ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), entre eles Alexandre de Moraes, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seguidos por uma longa lista formada por deputados, magistrados, jornalistas e advogados.

A informação de que o nome de Lula está entre os monitorados pela Abin paralela de Bolsonaro foi confirmada à ISTOÉ por uma fonte da Polícia Federal familiarizada com o sistema de espionagem da Abin, que se utilizava de um software espião israelense para seguir os passos das pessoas vigiadas.

Uma fonte do Palácio do Planalto, que acompanha o inquérito sigiloso e que motivou a Operação Última Milha, deflagrada pela Polícia Federal na sexta-feira, 20, disse à ISTOÉ que faz todo sentido Lula estar na lista dos monitorados pelo governo anterior, já que o petista era o principal inimigo do bolsonarismo.

Para esse ministro palaciano, seria uma surpresa se Lula não estivesse entre os nomes investigados até maio de 2021, época em que o atual presidente despontava como favorito às eleições de 2022 e, portanto, estava na mira do ex-capitão. Lula teria sido alertado naquele período por assessores de que arapongas haviam invadido sua vida pessoal.

O suposto monitoramento de Alexandre de Moraes também não seria surpresa, já que na lista com mais de 30 mil nomes, 1.800 dos quais foram preservados, os arapongas registraram o telefone e endereço de um homônimo dele, um indicativo de que também teriam rastreado a movimentação do ministro.

Moraes passou a ser criticado publicamente com xingamentos, provocações e ameaças desde que determinou à Polícia Federal que abrisse inquérito para investigar os primeiros atos antidemocráticos, em abril de 2020, um alerta de que o STF e o TSE não deixariam impunes os autores dos ataques contra as urnas eletrônicas que resultariam na inelegibilidade de Bolsonaro nem os responsáveis pelas ações violentas dos extremistas que chocaram o País com os atos violentos na tentativa de golpe em 8 de janeiro.

No início de maio daquele ano, bolsonaristas protestaram em frente à casa de Moraes, em São Paulo, e depois promoveram um ato na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, cujo alvo principal também era o ministro, centro das ameaças feitas pela ativista de extrema direita Sara Winter, que acabou presa depois de liderar um delirante grupo que se autointitulava “Os 300 do Brasil”.

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Ex-número 3 da Abin, Paulo Fortunato foi pego com US$ 171 mil em sua casa: PF investiga a origem da fortuna (Crédito:Divulgação)

O espião israelense

As investigações apontam que os ex-deputados Jean Wyllis e David Miranda, este casado com o jornalista Glenn Green­wald e falecido recentemente, também tiveram os números de seus celulares monitorados pelo software espião FirstMile, um rastreador de geolocalização vendido pela empresa israelense Cognyte por R$ 5,7 milhões para a Abin no final de dezembro de 2018, colocado em operação do início do governo Bolsonaro e que funcionou até o dia 8 de maio de 2021.

O mesmo FirstMile foi comprado também pelo Exército, Polícia Rodoviária Federal (PRF) e pelos governos de São Paulo, Goiás, Mato Grosso e Amazonas, transações que renderam, no total, cerca de R$ 65 milhões à Cognyte, sucessora da Verit Systems Inc., cujos negócios no Brasil foram comandados pelo empresário Caio Santos Cruz, filho do general e ex-chefe da Secretaria de Governo de Bolsonaro Carlos Alberto Santos Cruz.

Uma das linhas de investigação segue a movimentação do grupo israelense, que teria tido acesso à rede móvel de telefonia e invadido a privacidade de milhares de usuários para lucrar com a venda do produto. O software espião acompanha a movimentação de alvos com a inclusão do número do aparelho celular de milhares de usuários da rede móvel, o que só é possível acessando a base de dados das operadoras de telefonia.

Sistema idêntico de monitoramento teria sido implantado também na Secretaria de Operações Integradas (Seopi), do Ministério da Justiça, durante a gestão do ex-ministro e senador Sergio Moro (União-PR) para vigiar agentes federais e estaduais de segurança que integravam o grupo que ficou conhecido como policiais antifascistas, críticos e oponentes dos métodos do governo Bolsonaro. A existência de um dossiê com 579 nomes, entre os quais estavam dois expoentes da luta por direitos humanos, os sociólogos Paulo Sérgio Pinheiro e Luiz Eduardo Soares, divulgada em julho de 2020, era um indício de que o sistema de espionagem contaminava outros órgãos federais.

Até então, as secretarias do Ministério da Justiça não tinham nenhum aparato voltado para espionagem, uma atribuição que, com exceção do período da ditadura — em que além de agências central e regionais, em todos os órgãos federais havia pelo menos uma unidade das Assessorias de Segurança e Informação (ASI) —, era papel dos órgãos específicos de inteligência cuja atribuição legal é produzir informações confiáveis para alertar e orientar o governo em decisões importantes ou de risco.

Há suspeitas apontando que no mesmo período a Seopi tenha monitorado também movimentos sociais, como o MST. Assim que assumiu o cargo, o ministro Flávio Dino desmontou o esquema de inteligência e passou a se informar exclusivamente pelos relatórios da Abin.

Sob Bolsonaro, a Abin, criada para substituir o SNI, retrocedeu, como ficou claro na ocasião em que o ex-presidente reclamou, aos gritos durante a famosa reunião ministerial de abril de 2020, que o sistema de informações da Polícia Federal não funcionava. “O meu particular funciona.” Soube-se no decorrer de investigações que o “meu” serviço de informações era, na verdade, o da Abin paralela, operada por militares do “gabinete do ódio”, coordenados pelo vereador Carlos Bolsonaro.

(Lula Marques)
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A Abin paralela seguiu os passos Jean Wyllis (ao alto) e do casal Glenn Greenwald e David Miranda (ao centro). Nem o ministro do STF Alexandre de Moraes (acima) escapou da espionagem tosca de Bolsonaro: métodos usados por ditadores (Crédito:Gustavo Moreno)

Espiões demitidos

A operação da PF resultou na prisão de dois servidores da Abin, Eduardo Izycki e Rodrigo Colli, que foram demitidos junto com o número 3 na estrutura do órgão, o ex-secretário de Planejamento e Gestão Paulo Maurício Fortunato, em cuja residência os policiais apreenderam US$ 171 mil (R$ 855 mil) em espécie.

As suspeitas envolvem também o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), uma das apostas de Bolsonaro para a disputa pela Prefeitura do Rio de Janeiro no ano que vem e que esteve à frente da Abin durante o período em que a espionagem ilegal correu livre e solta.

Ramagem também teria retardado a sindicância que poderia ter resultado na demissão ou afastamento dos servidores acusados pelo monitoramento, o que ele nega.

Ao assumir o comando da Abin no final de maio, o atual diretor-geral da instituição, Luiz Fernando Corrêa, mandou instaurar uma nova sindicância, dando ampla liberdade para a corregedoria atuar, o que resultou em novo inquérito, aberto em colaboração da agência com a PF.

Além de ajustar a atuação do órgão às atividades legais, Corrêa adotou medidas de transparência para melhorar a auditagem e rastreabilidade das atividades de inteligência para evitar desvios como os que resultaram na espionagem ilegal bolsonarista.

“Não temos compromisso com o erro. O importante é deixar claro que o nosso compromisso é com a transparência e a atividade de inteligência garantidora do Estado Democrático de Direito.”
Luiz Fernando Corrêa diretor-geral da Abin

Gestor de segurança reconhecido pelo governo, delegado federal aposentado e ex-diretor da PF, Corrêa chegou a ser criticado nos bastidores da operação por ter mantido Fortunato no cargo da agência, mas ele evita polemizar, argumentando que todas as atividades ilegais ocorreram no governo anterior e que a Abin colabora com as investigações para desbaratar todo o esquema ilegal de monitoramento.

Ele tem divergências com o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, desde 2014, quando ambos disputaram o protagonismo sobre o comando dos grandes eventos no governo da ex-presidente Dilma Rousseff.

Mesmo exercendo atividades distintas, os dois órgãos vivem em conflito desde que servidores da Abin foram usados para participar das investigações contra o banqueiro Daniel Dantas na Operação Satiagraha, em 2008.

O próprio governo acaba alimentando a disputa por optar, na maioria das vezes, pela indicação de delegados federais para comandar a Abin, uma polêmica que deve se repetir caso o ministro Flávio Dino seja mesmo indicado para o STF e Lula confirme a intenção de desmembrar a pasta da Justiça para recriar o Ministério da Segurança Pública.

Corrêa é um dos cotados para o cargo, o que, se confirmado, abriria espaço na Abin para acomodar Andrei Rodrigues, que foi indicado para a PF por Dino, numa provável dança de cadeiras na área de segurança.

Lula fez chegar ao quadro de servidores da Abin que quer remover a influência bolsonarista nas atividades de inteligência. Alertado pela PF e pela própria agência de inteligência, o presidente está convencido de que a espionagem revelada pela Operação Última Milha é apenas mais uma peça de um mosaico montado por Bolsonaro na frustrada tentativa de permanecer no poder.

Outro ponto que ainda deve ser esclarecido é o uso do FirstMile pelo Exército e PRF. É por essa razão que o inquérito ficou nas mãos do ministro Alexandre de Moraes, relator de outros seis casos em que o ex-presidente figura como principal suspeito de estimular o conjunto de ações que resultaram nos ataques de 8 de janeiro contra os prédios do STF, Palácio do Planalto e Congresso.

A PF suspeita que outros órgãos possam ter feito o mesmo tipo de monitoramento, invadindo a privacidade de autoridades sem autorização judicial.

A própria Abin está sendo alvo de suspeitas de atos ilegais (Crédito:Antonio Cruz/Agência Brasil)

Tradição autoritária
Bolsonaro sempre teve fascínio por ditaturas e por seus métodos de repressão e espionagem: a Abin paralela era sua obstinação

A fixação do ex-presidente Jair Bolsonaro por informações confidenciais segue um estilo tosco, atabalhoado e paranoico, mas nem por isso menos perigoso do que os nefastos serviços de espionagem estatal, como a Gestapo alemã, o serviço secreto do ditador Adolf Hitler, responsável por levar à morte milhares de oponentes do regime nazista.

Desde a caserna, de onde saiu no final dos anos de 1980 para entrar na política, Bolsonaro, considerado “um mau militar” pelo ex-ditador Ernesto Geisel, flerta com a arapongagem e com as práticas dos regimes autoritários que perseguiram seus adversários.

Na Câmara dos Deputados, durante a sessão de votação do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, o então deputado dedicou sua decisão favorável à cassação da então presidente, aos gritos, como é seu estilo, ao ex-coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que durante a ditadura militar comandava a espionagem e operava uma rede monstruosa de tortura que terminou com o assassinato de dezenas de presos políticos durante a Operação Bandeirantes.

Ninguém pode acusá-lo de incoerência: sempre defendeu a espionagem e a violência contra oponentes de esquerda. Numa declaração extremada quando era deputado, disse que o regime militar deveria ter matado pelo menos 30 mil opositores, entre eles o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.