Comportamento

Manet e o Rio de Janeiro que passou em sua vida: memórias pré-impressionistas

Atribui-se à viagem do adolescente Édouard Manet ao Rio de Janeiro, em 1849, seu gosto pelo exótico, aversão ao escravismo e lampejos da criação do Impressionismo. Suas cartas aos familiares, reunidas no livro 'Manet no Rio', contam uma história um pouco diferente

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Manet: o Rio de Janeiro ficou impresso em suas memórias mas não foi o que sedimentou os cânones do Impressionismo (Crédito: Divulgação)

Por Luiz Cesar Pimentel

Existem duas maneiras de se ler os relatos da passagem do francês Édouard Manet pelo Rio de Janeiro, entre 1848 e 1849, registrados no livro Manet no Rio (Ercolano, 2023). A primeira é a leitura direta das impressões de um jovem de 17 anos, que viria a se tornar um dos maiores artistas da história, em sua estadia de dois meses na cidade, no século XIX, em cartas dirigidas aos familiares. A segunda é extrair dos relatos peças do quebra-cabeça que o tornariam precursor do Impressionismo quando retornou à França e abandonou a pretensão de se tornar marinheiro.

“O Carnaval do Rio é singular. As mulheres jogam nos senhores que passam bolas de cera coloridas e repletas de água.”
Édouard Manet, em relato à sua mãe no livro

Até entrar no barco-escola Havre et Guadaloupe (Porto e Guadalupe), em dezembro de 1848, Manet era um adolescente de 16 anos, de família abastada e que projetava nele uma carreira no Direito. Estudante medíocre, convenceu os pais de que seria mais feliz vivendo no mar.

Foi no intento que desembarcou no Rio de Janeiro em 5 de fevereiro do ano seguinte, já com 17 anos, onde encontrou uma cidade “bastante feia”, mas dona do “espetáculo da natureza mais bela do mundo”, conforme escreveu à mãe.

Uma licença poética de estudiosos atribui ao deslumbramento de Manet, principalmente com a Baía de Guanabara, a fagulha inicial do Impressionismo. A soma da beleza natural à forma como a luz refletia na água está presente na obra dele, mas não caracteriza a gênese do estilo.

Mais do que a descrição de beleza dos cenários naturais, as preocupações sociais e políticas de Manet são sinais um pouco mais evidentes da influência brasileira sobre suas obras.

A perplexidade dele com a presença de negros e suas narrações sobre a participação deles na rotina carioca de então apontam esse caminho. Segundo Manet, negros e negras seriam três quartos da população do Rio. Na verdade, eram cerca de 40%, dado que somavam 110.000 entre 265.000 habitantes no total.

Cena revoltante

Um trecho em especial, escrito à mãe em 25 de janeiro, dois dias depois de completar 17 anos, é apontado como manifestação de perplexidade diante da escravatura.

“Neste País, todos os negros são escravos; todos esses desventurados têm o semblante embrutecido; o poder que os brancos exercem sobre eles não é normal. Vi um mercado de escravos, um espetáculo bastante revoltante para nós; os negros vestem uma calça; às vezes uma blusa de pano grosseiro, mas em sua condição de escravos não têm permissão para usar sapatos”, conta.

Entretanto, a compaixão derrapa na imaturidade juvenil ao descrever mulheres negras de forma simplesmente estética, “em geral são feias, embora eu tenha visto algumas bonitas”.

Rumores apontam influência brasileira em duas de suas principais obras: Lola de Valencia (1862) e Olympia (1863, abaixo) (Crédito:Divulgação)


É preciso colocar a visão da escravatura dentro do contexto histórico em que ele cresceu e vivia, na França. A prática havia sido abolida em 1794, restaurada em 1802 e definitivamente encerrada em todas as colônias francesas no ano em que ele partiu para o Brasil.

Mesmo assim, personagens negras estão presentes com destaque em três de suas obras, entre elas a famosa “Olympia”, de 1863. Segundo o crítico de arte e escritor Antonio Bento em seu livro Manet no Brasil, publicado exatos 100 anos após a viagem do francês, a modelo retratada é carioca. Entretanto, ela tem o nome “Laure” e é descrita como de origem caribenha ou africana.

Mais incisiva que sua posição sobre a escravatura é o seu determinado direcionamento político. Em diversas cartas, com ênfase em uma escrita ao pai, manifesta preocupação com o então presidente Luís Napoleão, sobrinho e herdeiro de Napoleão Bonaparte. Ele assumira o cargo em 1848 como primeiro eleito por voto popular, quando a monarquia caiu para dar lugar à segunda República Francesa.

Insatisfeito por não poder concorrer à reeleição, Luís deu um golpe em 1851 e virou imperador francês, confirmando o temor de Manet, que pedira ao pai para que cuidasse “de preservar uma boa república, pois Napoleão não é muito republicano”.

Outra observação do jovem artista refere-se às cariocas e praticamente descreve outro quadro famoso dele, “Lola de Valencia”, de 1862. “Quanto às brasileiras, em geral são muito bonitas; têm olhos magnificamente negros; os cabelos idem; todas se penteiam à moda chinesa e saem para a rua sempre de cabeça descoberta; o vestuário é o mesmo das colônias espanholas. (…) Neste País é costume se casar aos 14 anos ou menos.”

Em cartas a outros parentes, como ao primo Jules Dejouy, Manet demonstra que, se houve influência brasileira em sua criação artística, ela está mais associada às observações sociais do que às visuais, conforme entrega o trecho: “A cidade, embora bastante feia, revela um caráter particular aos olhos do artista; pelo menos três quartos da população são negros ou mulatos. Aqui, o tráfico está a todo vapor. Quanto aos brasileiros, são indolentes e não parecem ter muita energia; as brasileiras são muito distintas e não merecem a reputação de levianas que se atribui a elas na França; ninguém pode ser mais pudica e tola do que uma brasileira”.

Flores do mal

Conforme descreveu seu amigo, o poeta Charles Baudelaire, “Manet é o pintor da vida moderna” e seu principal interesse era a sociedade.

Dessa forma retornou do período brasileiro, em abril de 1849, para uma segunda rejeição na Escola Naval e partiu para a carreira artística — teve aval dos pais para estudar no ateliê de Thomas Couture, onde passou seis anos e alçou vôo próprio.


“Laure”, de sobrenome desconhecido, está presente em três obras do artista e protagoniza este retrato: a crítica brasileira apontava-a como carioca, mas provavelmente era caribenha ou africana (Crédito:Divulgação)

É tido como precursor do Impressionismo, mas suas obras não carregam todas as características principais do movimento. Trabalhava luz e sombra de modo diferente, talvez pela descoberta de uma particular luz tropical durante a estadia no Rio de Janeiro.

Durante o período na cidade, chegou a manifestar desejo de progredir artisticamente. Buscou um professor de desenho mas não encontrou, segundo suas cartas.

Mesmo assim deixou diversos esboços a lápis e as caricaturas que fazia dos companheiros de navio o alçaram ao posto de instrutor artístico na viagem. Orgulhava-se para a mãe de ter tido encomenda de um desenho do comandante do barco-escola como presente de passagem de ano.

O estilo que desenvolveu, fugindo do realismo vigente, o levou a ser considerado o pioneiro do movimento que surgia e que seria batizado a partir do quadro “Impressão, Nascer do Sol”, do colega Claude Monet, de 1872.

Essa geração começou a ganhar destaque nessa época, marcada pelo final da Guerra Franco-Prussiana, em 1871, e seguiu fazendo sucesso pelas décadas que a paz vigorou até o começo da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Era a Belle Époque na França, a Era Vitoriana no Reino Unido e a Gilded Age (Época Dourada) nos EUA, quando a arte proliferava.

O ambiente permitiu que o estilo não tivesse de obedecer às restrições acadêmicas realistas, onde os contornos tinham de ser nítidos. A sensação de liberdade acompanhou Manet em suas descobertas da América do Sul, mas também do Novo Mundo se descortinando, como quando escreve para o irmão Eugène sobre as descobertas de minas de ouro na Califórnia, “uma região completamente nova”.

Mas da Bela Época, ele viveu somente uma década. Em 1883, contraiu sífilis, teve uma perna amputada por gangrena e morreu aos 51 anos.

Primeiras impressões do Rio

Desenho de Manet retrata a chegada ao Rio de Janeiro: como a tripulação francesa não compreendeu as ordens em português, o barco recebeu dois tiros de canhões de alerta

“Querida mamãe, em minha última carta, avisei-a sobre nossa chegada ao Rio. Como eu tinha dito, a baía é encantadora, tivemos tempo para admirá-la, pois só iríamos desembarcar no domingo seguinte. (…) Desembarquei com o senhor Jules Lacarrière, um moço da minha idade. Ele me levou até sua mãe, que tem uma loja de modas na Rua do Ouvidor e que possui uma casinha de campo, tipicamente brasileira, a cinco minutos do Rio. Depois do almoço, saí com meu amigo para percorrer a cidade toda. Ela é bem grande e as ruas, ao contrário, são muito pequenas. Para um europeu com algum senso artístico, possui uma característica totalmente peculiar: na rua só se encontram negras e negros; os brasileiros pouco saem, e as mulheres, menos ainda. Elas só são vistas quando vão à missa ou ao entardecer, após o jantar; aparecem em suas janelas e somente então temos permissão de olhar à vontade para elas, pois durante o dia, se percebem que estão sendo observadas, se recolhem no mesmo instante.”