Internacional

Entenda os desafios de Lula como líder global

Lula organizou uma operação exemplar para repatriar brasileiros do conflito em Israel e liderou negociações com as grandes potências visando uma difícil proteção humanitária às vítimas. Essas ações serão suficientes para garantir seu papel no cenário mundial?

Crédito: Antonio Masiello

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente: "Guerras não fazem nenhum sentido. Vidas perdidas para sempre. Hospitais, casas, escolas, construídas com tanto sacrifício destruídas em instantes. Os inocentes não podem pagar pela insanidade da guerra" (Crédito: Antonio Masiello)

Por Marcos Strecker e Denise Mirás

Desde que foi eleito, Lula traçou como prioridade retomar seu papel de líder global. Isso já vinha se desenhando, mas foi acelerado com o conflito em Israel. Ações em várias frentes evidenciaram isso. O governo se destacou nas articulações para obter uma pausa nas hostilidades e propiciar assistência humanitária na Faixa de Gaza, ação reforçada pelo fato de o Brasil ocupar a presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU.

Além disso, a operação para repatriar os brasileiros que estavam em Israel e em Gaza, pegos no meio do conflito, foi uma das mais bem-sucedidas da diplomacia brasileira, comparável à repatriação de cidadãos confinados durante a Segunda Guerra (o escritor Guimarães Rosa era um deles). Em volume, foi um resgate um pouco menos volumoso, mas não menos relevante, do que o empreendido em outro conflito em Israel, durante a invasão ao Líbano em 2006 – quando 3.200 voltaram. Agora, em dez dias de conflito, a FAB acionou pelo menos oito voos para os turistas e residentes brasileiros deixarem a zona de conflito.

Na última quinta-feira, a pendência era o embarque de cerca de 30 moradores da Faixa de Gaza, que ainda não tinham recebido a autorização de cruzar a fronteira com o Egito. Haviam sido repatriados 1.135 brasileiros.

“Quem quiser vir para casa, o governo vai mandar buscar”, tinha anunciado José Mucio Monteiro, ministro da Defesa. Foi essencial para esse desfecho a rapidez nas negociações diplomáticas.

Um portal na internet recebeu as inscrições de 2.700 candidatos à volta (muitos acabaram desistindo). Segundo Alessandro Candeas, embaixador na Palestina, assim que chegaram informações sobre os ataques do Hamas no dia 7, famílias foram contatadas e ônibus, alugados.

Uma casa ao sul de Gaza foi disponibilizada e uma psicóloga palestina foi contratada para atender os refugiados. Ao mesmo tempo, um gabinete de crise foi montado no Itamaraty. O chanceler Mauro Vieira se reuniu com o presidente no Palácio do Alvorada para tratar da crise em várias ocasiões.

Família de brasileiros em Rafah (Gaza), próxima à fronteira com o Egito, aguarda o momento de voltar ao Brasil em aeronave da FAB (Crédito:Divulgação)

Os aviões não foram vazios. A aeronave da Presidência que esperava no Egito a liberação dos brasileiros retidos em Gaza levou:
• duas psicólogas,
• um médico,
• uma enfermeira,
• uma técnica de enfermagem,
• além de purificadores de água,
e kits de medicamentos.

Os brasileiros reconheceram o esforço. No dia 11, os primeiros a desembarcar ajoelharam na pista do aeroporto do Galeão. Os que chegaram a São Paulo no dia 13 foram recebidos em Cumbica com um bufê de almoço preparado pela FAB com arroz e feijão. Até 35 pets foram resgatados.

A recepção calorosa e eficiente contrastou com a resposta de outros países, inclusive EUA e Reino Unido, que demoraram mais e cobraram de seus cidadãos.

A operação brasileira ainda reabilitou simbolicamente o Itamaraty e as Forças Armadas, que foram jogados nos anos Bolsonaro em uma irresponsável antidiplomacia e no negacionismo contra as vacinas, para não citar as desastradas operações logísticas durante a pandemia.

Quando brasileiros ficaram presos no epicentro da pandemia em Wuan, na China, em fevereiro de 2020, 34 foram resgatados a duras penas. Só após a divulgação de um vídeo com um pedido de ajuda é que o governo anunciou um plano de retirada. Houve ainda atraso porque não havia autorização para as aeronaves cruzarem o território da China (é bom lembrar que o país foi hostilizado pelos aliados do então presidente com insinuações racistas). Tudo isso ficou no passado.

Grupo de brasileiros repatriados chega ao aeroporto do Galeão na quinta-feira, 19 (Crédito: Eduardo Anizelli)

Negociações na ONU

Na frente propriamente diplomática, o Brasil voltou a ocupar papel central. Tornou-se um foco de atenção pela articulação no Conselho de Segurança da ONU, onde coordenou a elaboração de documento que asseguraria ao menos uma “pausa humanitária” nos ataques israelenses em Gaza (o termo cessar-fogo havia sido rejeitado).

O Brasil tentou viabilizar um texto que seria a primeira posição a ser aprovada no colegiado sobre o Oriente Médio desde 2016. Chegou perto disso. Só não conseguiu porque os EUA fizeram valer seu veto ao documento costurado com os 15 membros rotativos e os cinco com assento permanente (além dos EUA, França, Reino Unido, Rússia e China).

O argumento americano é que a resolução não citava o direito de Israel à autodefesa.

A proposta:
• condenava os atos terrorista do Hamas,
• pedia a libertação dos reféns israelenses,
• cobrava de ambos os lados a proteção à população civil,
• denunciava os ataques indiscriminados sobre Gaza,
• pedia que Israel abandonasse a ordem de evacuar palestinos do norte de Gaza,
• e que um corredor humanitário fosse criado. Nove nações votaram a favor.

Duas se abstiveram (Rússia e Reino Unido). A posição dos EUA transferiu o ônus da crise aos americanos, tradicionais aliados de Israel. Já a condução do Brasil, gerando um documento considerado equilibrado, recebeu elogios.

“O realismo político nos guiou, mas nossa visão sempre esteve no imperativo humanitário”, disse Sérgio Danese, embaixador do Brasil na ONU.

Após o resultado frustrante, o brasileiro adotou um tom crítico. “Infelizmente, muito infelizmente, o Conselho não conseguiu mais uma vez adotar uma resolução. Embora lamentemos profundamente que essa ação coletiva tenha se tornado impossível, esperamos que os esforços de outros atores produzam resultados positivos”, disse.

Kits de ajuda humanitária chegam a Al-Arish, no Egito, de onde deveriam seguir para Gaza (Crédito:SO Johnson/FAB)

Análise

Roberto Goulart Menezes, professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB, destaca que o Brasil teve de “consertar o telhado debaixo de chuva”. Enquanto isso, em campo, “fomos o primeiro país que, sem alarde e de forma muito rápida, facilitou a saída dos brasileiros da zona de risco”, e ainda mostrando solidariedade e reforçando o seu soft power.

A Argentina e o Uruguai pediram ajuda do Brasil na repatriação de seus cidadãos. O mesmo pedido já havia sido feito pelo Chile. “Aquela região não é área de incidência diplomática do Brasil, que acaba calibrando tudo pelo objetivo do presidente, com toda a força voltada a conseguir ao menos a pausa humanitária. Lembrando que o termo ‘guerra’ nem pode ser aplicado, porque não envolve um Estado contra outro. É, sim um conflito aberto, com questões muito complexas”, diz.

A norte-americana Linda Thomas-Greenfield rejeita o texto do Brasil no Conselho de Segurança (Crédito:Mike Segar)

A resolução da ONU foi dificultada principalmente pelo acirramento da disputa entre os EUA e Rússia, alinhada com a China. Vladimir Putin encontrou no conflito uma forma de fustigar os EUA, que lideram a coalizão de apoio à Ucrânia contra a invasão russa.

Os EUA, por seu lado, queriam valorizar a iniciativa do seu presidente. Joe Biden fez uma visita de apoio a Israel no mesmo dia da votação. Lula acompanhou a distância as tratativas e decidiu que o documento deveria ser apreciado, mesmo com o aceno dos EUA de que desejavam mais tempo.

Uma nova resolução ainda será tentada. A determinação do Brasil foi reconhecida num momento em que faltam líderes no mundo com estatura suficiente para direcionar a comunidade internacional para um terreno mais seguro, próspero e harmonioso.

Lula, de certa forma, se habilitou para preencher esse papel. Ainda em recuperação de uma cirurgia, dedicou-se a negociações por meio de telefonemas pessoais e videoconferências com presidentes de vários países e entidades (Israel, Egito, Turquia, Irã, Autoridade Palestina e Conselho Europeu).

Por meio dessas iniciativas, contribuiu para o resultado que afinal foi conquistado na quarta-feira, 18, quando Israel concordou em liberar a entrada controlada de alimentos, água e remédios no sul da Faixa de Gaza. Em reconhecimento aos esforços e na condição de liderar o Conselho de Segurança, o Brasil foi convidado a participar de uma cúpula no Egito neste sábado, 21, para discutir a situação em Gaza.

Ainda há um longo caminho a percorrer. O mundo enfrenta uma era de conflitos que não se via há décadas, sem contar as ameaças climáticas. Todo esforço diplomático exige princípios sólidos, resiliência, visão de futuro e uma boa dose de sorte. Lula já conseguiu alinhar essas qualidades há 20 anos. Está se habilitando para repetir a façanha.