Cultura

O espião que veio do streaming

A extraordinária vida dupla do escritor John Le Carré ganha um documentário dirigido pelo vencedor do Oscar Errol Morris

Crédito: Des Willie

John Le Carré: documentário remonta em minúcias as traições que marcaram a obra do escritor (Crédito: Des Willie)

Por Felipe Machado

Quem assiste ao O Túnel dos Pombos, documentário baseado na autobiografia do escritor John Le Carré, aprende que sua vida pode ser definida em uma única palavra: traição. A quantidade de vezes em que ela é repetida ao longo do filme é enorme. Pensando bem, faz sentido: a traição é parte tão essencial de sua trajetória que começa com os leitores, na capa de seus livros: o nome do autor, um dos best-sellers mais vendidos do mundo, não era John Le Carré.

Antes, ele era David Cornwell. E aprendeu desde cedo a mentir. Seu pai, Ronnie Cornwell, foi um vigarista e ex-presidiário que envolvia o filho adolescente em suas falcatruas sem pensar duas vezes.

Em uma “viagem de negócios”, estiveram no sul da França, onde ficaram hospedados em um hotel que oferecia plataforma de tiro a pombos. Os hóspedes se posicionavam armados, de frente para o mar, enquanto funcionários do local abriam as gaiolas e obrigavam os pombos a sair por um túnel. Já no ar, eram presas fáceis para as espingardas. Os que sobreviviam, devido ao condicionamento, voltavam às mesmas gaiolas — para serem obrigados, novamente, a entrar no túnel. O que Le Carré quis dizer quando batizou suas memórias com essa expressão? Ele se via como pombo ou como atirador?

Mundo da Espionagem: série da Neflix aborda as operações especiais (Crédito:Courtesy of Netflix)

Dirigido por Errol Morris, O Túnel dos Pombos, disponível no streaming AppleTV+, alterna cenas ficcionais com arquivos reais. Sua linha condutora principal, no entanto, é uma entrevista reveladora e profunda de Morris com Le Carré.

É o mesmo formato usado pelo diretor em Sob a Névoa da Guerra, que trazia uma longo depoimento do controverso ex-secretário de Defesa norte-americano Robert McNamara. “Era meu criminoso de guerra favorito”, justificou Morris, à época, sobre a escolha do personagem.

Le Carré é bem mais empático. Soa como um velho avô lembrando fatos da infância, sem filtros. É possível entender como a personalidade do pai, mentiroso e desleal, influenciou sua vida.

Basta citar um dos episódios: após recolher o dinheiro das apostas de Ronnie, que não podia aparecer nas corridas de cavalo sob risco de ser preso ou espancado, o jovem entregou a mala ao pai. Desconfiando do garoto, Ronnie perguntou quanto dinheiro ele tinha roubado para si. “Nenhum”, respondeu o filho, mostrando os bolsos vazios. O pai viu aquilo e comentou: “Mas não é possível que você seja honesto”.

Mais tarde, longe do pai, David trabalhou como professor na renomada escola de Eton, em Windsor, na Inglaterra. Surgiu uma oportunidade e ele foi contratado pelo MI-5, serviço de inteligência britânico que precisava ampliar seu quadro após a Segunda Guerra.

Foi alocado em Berlim, na Alemanha, em um período histórico bastante interessante. Acompanhou o início da construção do muro que separou a cidade em dois feudos, o ocidental, comandado pela Inglaterra, França e EUA, e o oriental, controlado pelos soviéticos.

Com as tramas políticas e militares que reinavam durante a Guerra Fria, nunca houve um momento tão propício para a proliferação de espiões.

A experiência durou alguns anos, tempo suficiente para que David acumulasse histórias e criasse o pseudônimo “John Le Carré”, um dos escritores mais bem sucedidos do gênero em todos os tempos.

O Espião que Saiu do Frio, O Jardineiro Fiel e O Espião que Sabia Demais, entre dezenas de outros títulos, conquistaram imediatamente o público. Ao transformar histórias reais em ficção, Le Carré cometeu, de certa forma, mais um ato de traição — palavra que o acompanharia até o fim de seus dias, quando morreu, aos 89 anos, em 2020.

Guerra fria: período propício para a proliferação dos agentes secretos (Crédito:© 2023 Netflix)

Tema está em alta

O tema ganhou outra produção de destaque no streaming. A série Mundo da Espionagem, disponível em oito episódios produzidos pela Netflix, traz casos em que as atividades clandestinas dos espiões foram essenciais para alterar os rumos da história.

Da Operação Pimlico, quando a Inglaterra resgatou um agente duplo da União Soviética, aos atentados de 11 de setembro, bastidores de operações especiais são revelados por oficiais que estiveram presentes e participaram do planejamento. A série é documento histórico sobre um universo que, na ficção ou na vida real, capta como poucos a nossa atenção.