Cultura

Biografia de Di Cavalcanti traz o Brasil em todas as suas cores

Biografia 'Di Cavalcanti: Modernista e Popular' revela como o pintor carioca retratou fielmente a imagem do povo brasileiro a partir de sua própria trajetória, da origem humilde no subúrbio à vocação para a boemia

Crédito: Divulgação

Di Cavalcanti: Óleo sobre tela, de 1943 (Crédito: Divulgação)

Por Felipe Machado

Difícil dizer quem foi o mentor intelectual da Semana de Arte Moderna de 1922, mas é possível apontar o momento em que a ideia surgiu: foi em uma reunião de artistas durante a exposição de Di Cavalcanti em São Paulo, em novembro de 1921. Em sua primeira mostra na capital paulista, o pintor exibia originais em nanquim do livro Fantoches da Meia-Noite. No encontro, o maranhense Graça Aranha teria proposto a realização de uma série de conferências para divulgar as ideias modernistas, que começavam a ganhar popularidade. Mario de Andrade e Oswald de Andrade ficaram responsáveis por convocar os colegas paulistas; Di Cavalcanti, os cariocas. A união dos grupos sob a liderança de Aranha, experiente escritor e diplomata, deu caráter nacional ao evento, característica essencial para que ele ganhasse a dimensão que obteve.

Essa é uma das muitas histórias de Di Cavalcanti: Modernista Popular, biografia do pesquisador Marcelo Bortoloti. O mineiro já havia se debruçado sobre outro grande pintor brasileiro em Guignard: O Anjo Mutilado, de 2021.

Sua nova obra traça um perfil do artista que ajudou a elaborar uma imagem arquetípica do Brasil, iconografia marcante que eternizou na arte camadas anteriormente marginalizadas da sociedade brasileira.

Retratou como ninguém a gente humilde do País, os pescadores, as mulheres negras, as prostitutas e a vida no subúrbio, realidade que, devido à sua própria origem, conhecia bem. Foi ainda o primeiro, entre os modernistas, a levantar a bandeira da luta social e a se filiar ao Partido Comunista.

Na primeira viagem ao exterior: influência das vanguardas europeias (Crédito:Divulgação)

Para Bortoloti, Di Cavalcanti estabeleceu uma conexão imediata porque registrou seus personagens em momentos de folga, nas rodas de samba, nas ruas.

“Havia empatia porque ele tinha uma visão mais horizontal do povo. Era diferente dos outros modernistas, que vieram da elite e olhavam para as classes mais pobres de cima para baixo. Di escolheu a mulata para ser um símbolo do que era ser brasileiro”
Marcelo Bortoloti, autor de ‘Di Cavalcanti: Modernista Popular’


Segundo o autor, essa ligação tinha origem na vida familiar: o pintor era sobrinho de José do Patrocínio, um dos maiores nomes do movimento abolicionista.

A escolha dos temas e a opção pela valorização da identidade nacional veio como influência da escola francesa, que Di seguia e reverenciava. Em termos de estilo, porém, era defensor ferrenho da arte figurativa não apenas pela questão estética, mas por ideologia: a partir dos anos 1950, o mercado norte-americano passou a valorizar o expressionismo abstrato, representado por nomes como Jackson Pollock e Jasper Johns.

Cobiçadas pelos marchands milionários que surgiram no período pós-Segunda Guerra, essas obras tiveram valores inflacionados e passaram a custar milhões de dólares. Além do retorno financeiro, os investidores apostavam na dominância da arte como elemento de soft power, principalmente no início de um contexto geopolítico que culminaria anos mais tarde na Guerra Fria.

O pintor se opunha a isso e aliava-se, por exemplo, aos muralistas mexicanos, entre eles Diego Rivera e David Alfaro Siqueiros. “Ele se colocou do lado do realismo social, dedicando-se em pintar murais de trabalhadores. Defendia a ideia de que a arte devia estar na rua e ser acessível a todos”, afirma Bortoloti. A paleta de pintura de Di Cavalcanti continha todas as cores do Brasil.

Marcelo Bortoloti, autor de de Di Cavalcanti: Modernista Popular (Crédito:Divulgação)

“Ele defendia a ideia de que a arte devia estar na rua e ser acessível a todos”
Marcelo Bortoloti, biógrafo

O carnaval que foi parar em paris

“O destino de Carnaval” (abaixo), obra que havia sido vendida pelo próprio pintor para um colecionador francês, era desconhecido desde 1930. Reconhecida por Elisabeth Cavalcanti, filha de Di, a tela veio de Paris para integrar a exposição Di Cavalcanti — 125 anos, atualmente no Farol Santander, em São Paulo.

A cena lembra o quadro “Samba, de 1925, queimado em um incêndio em 2012. A mostra traz ainda a famosa série de desenhos “Fantoches da Meia-Noite”, exibidos na Semana de Arte Moderna de 1922.

A vocação boêmia do pintor está presente por meio da tela “Seresta”, também de 1925. Ao todo, são 25 óleos sobre tela, além de aquarelas e gravuras. A curadoria é de Denise Mattar e a exposição segue em cartaz até o fim de 2023.

(Divulgação)