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Até quantas mortes inocentes?

Crédito: Abed Khaled

Mãe dilacerada pela dor de ter nos braços o filho em martírio: bombardeio de hospital em Gaza (Crédito: Abed Khaled)

Por Antonio Carlos Prado

Não existe no mundo dor mais indescritível e dilacerante que o padecimento de uma mãe a trazer nos braços seu filho em martírio. Na semana passada foi feita uma foto que é a tradução, na vida real, de uma das maiores obras de arte da humanidade, a Pietà esculpida por Michelangelo Buonarroti, no século XV. Piedade! O trabalho do artista, Nossa Senhora Maria com Jesus risto morto em seu regaço, é a própria imagem da mulher da foto referida, que teve seu filho gravemente ferido na terça-feira 17, durante o incabível e desumano bombardeio do Hospital Al-Ahli, fundado em Gaza por missionários anglicanos. Sua fisionomia enlouquecida e enlouquecedora correu imediatamente o planeta. No local havia feridos internados e civis que buscavam refúgio e proteção, imaginando que jamais alguém destruiria um hospital. Imagine! Quanto otimismo com a espécie humana!

De repente, onde se tentava salvar vidas tornou-se um inferno de muito sangue encharcando o chão e tingindo as paredes, de muitas chamas tremulando entre a poeira, de muito barulho, muitos berros, muita correria, muitos desabamentos, muita certeza de que a morte se avizinhava. Estima-se que pelo menos quinhentas pessoas tenham morrido e centenas de outras ficaram feridas. Não há nenhuma guerra sem outra guerra, a guerra de versões dos fatos, e a atual entre os terroristas do Hamas e o governo de Israel não é diferente. Perdoem-nos…

Pietà, de Michelangelo, século XV: Nossa Senhora Maria com Jesus morto em seu regaço (Crédito:Divulgação)

…a repetição à exaustão da palavra guerra, mas toda guerra também é um repetitivo flagelo. Uma versão: Israel atacou o hospital. Outra: o Hamas o bombardeou. Outra mais: o grupo terrorista Jihad Islâmico foi o responsável pelas mortes.

Na quinta-feira ainda muito se especulava, só o tempo, senhorio da história, trará a verdade. Em meio aos protestos e à indignação que eclodiram em diversos países, sobretudo no Oriente Médio, e diante da perplexidade global pela mortandade no Al-Ahli, o presidente dos EUA, Joe Biden, desembarcou na quarta-feira em Tel Aviv.

Reuniu-se com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, seu amigo de quatro décadas. Efeito da visita ou não, o fato é que, finda a conversa, o governo israelense abriu um corredor humanitário para o território palestino da Faixa de Gaza, onde perambulavam feito mortos-vivos dois milhões de pessoas sem luz, sem água, sem comida, sem remédios e sem dignidade humana, pois tudo lhes fora cortado por Israel.

Biden partiu e o governo israelense finalmente autorizou a entrada de ajuda humanitária em Gaza a partir do Egito. A parte não belicosa do mundo (ou ainda não belicosa) torcia para que isso ocorresse, como segue torcendo para que Israel coloque fim a seus ataques generalizados e passe a buscar direitamente os ratos terroristas em suas tocas em Gaza — serviço de inteligência é o que não falta ao Estado israelense.

Funeral de vítima do covarde ataque do Hamas aos EUA, em 7 de outubro: guerra declarada (Crédito:Francisco Seco)

O presidente norte-americano foi informado de que, devido ao massacre no hospital, o líder da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, e também integrantes do governo da Jordânia cancelaram os encontros agendados.

Homem vivido e já carregando 80 anos de idade, homem traquejado, homem que já viu tudo, Joe Biden dissera a Netanyahu parecer-lhe que o ataque ao hospital “viera do outro lado”. O “parecer-lhe”, que não implica convicção, foi a maneira muito bem educada, mais do que a Casa Branca costuma ser, de alertar o colega de que ele está entre aqueles que podem ser eventualmente responsabilizados pelo bombardeio — e que ninguém acuse Biden de ser contra Israel, pois os EUA têm auxiliado com porta-aviões (que Vladimir Putin ameaça destruir com mísseis hipersônicos) e dois mil soldados de prontidão.

No mesmo dia da tragédia no Al-Ahli, uma escola da ONU também sofreu bombardeios que deixaram mortos e feridos. A escola, na verdade, é um complexo de oito colégios menores, na região central de Gaza e tem servido igualmente de abrigo a civis — sobretudo a mulheres e crianças.

“Massacres se dão entre gente que não se conhece, com proveito para pessoas que se conhecem, mas que não se massacram.”
Paul Valéry, filósofo e escritor francês (1871-1945)

Uma coisa é certa, indiscutivelmente certa: Israel possui o mais legítimo direito de revidar com alto rigor bélico ao covarde ataque terrorista do Hamas — na verdade, mais que direito, tem o dever de defender e honrar a sua população barbaramente agredida no último dia 7.

Se considerar-se que tudo ocorreu em vinte e quatro horas, pode-se dizer que os bárbaros do Hamas promoveram o maior massacre de judeus, já acontecido em um único dia desde o Holocausto na Segunda Guerra Mundial.

Foi, também, a mais sangrenta investida em um século de confrontos entre israelenses e palestinos. Frise-se, portanto, que o Estado de Israel tem pleno direito de varrer do planeta os terroristas do Hamas, Jihad, Hezzbollah e de outros bandos, diversos deles financiados pelo Irã — aliás, seria um bem que Israel faria ao pouco que ainda nos resta da condição humana.

Alguém, em qualquer parte da Terra, que tenha visto a foto da Pietà do hospital e não se sentiu apequenado é, no mínimo, cúmplice emocional de um conflito com morticínio de cerca de seis mil pessoas.

Desde o ataque inicial, tem-se que os bombardeios de revide israelense atingiram na Faixa de Gaza vinte e sete hospitais, cento e sessenta e sete escolas e oito mil residências. Pietà! Piedade!

A tentativa, quase sempre vã, de reconhecimento de corpos: rotina de palestinos civis (Crédito: AFP)

O governo israelense precisa, no entanto, tomar cuidado com a sua estratégia (ou ausência dela) de massacres generalizados. Podem eles, no plano mundial da legislação sobre guerras, voltarem-se contra seus próprios criadores.

Que a leitora e o leitor desculpem a comparação um tanto simplista, mas a clareza é a boa-fé de quem argumenta. Se, por exemplo, em reação de legítima defesa da filha (legítima defesa de terceiro), um pai matar com um tiro o agressor, nada poderá legalmente ou socialmente ser-lhe imputado. Mas se esse mesmo pai disparar uma metralhadora e tombar inocentes ao redor será condenado por homicídio.

A irracionalidade da guerra, assim escreveu a brilhante pensadora política Hannah Arendt, tem a sua peculiar racionalidade. Fora dela, fora dessa racionalidade no campo do irracional, quaisquer atos de guerra podem crescer a ponto de se transformarem em matança. E, se for matança, vira massacre.

Cabe lembrar, aqui, o escritor e filósofo francês Paul Valéry, um dos principais representantes da chamada Escola Simbolista e que faleceu em 1945, ano em que terminou a Segunda Guerra Mundial: “O massacre se dá entre gente que não se conhece, com proveito para pessoas que se conhecem, mas que não se massacram”.

A mão ferida segura orações que integram o Alcorão: religião como resiliência e esperança (Crédito:Abed Zagout )

Há milhares de civis (homens, mulheres e crianças) ainda prensados pelo governo israelense em Gaza, apesar do corredor humanitário — a esmagadora maioria palestina, desesperada e no limite da sobrevivência, com medo de mísseis, muito medo mesmo dessas fúnebres aves.

São punições que Israel está impondo de forma cega, e nesse ponto Netanyahu pode estar cometendo um erro tático que atrapalhará os planos de segurança de seu próprio país, porque ficará assombrando no ar, mascarado de paz, o espírito da vingança: o revide do revide.

Mais uma vez cairão por terra os projetos de concretização de uma relação sem tensões no Oriente Médio com o objetivo de se conseguir definitivamente banir o extremismo. Ou seja: Israel – e aqui não vai nenhuma acusação de que seja ele o país responsável pelos bombardeios no hospital e na escola – corre o risco de ver findar a legitimidade de sua indignação quando pune indiscriminadamente os palestinos.

E, dessa forma, pode passar da condição de agredido à de agressor. Nada disso significa, porém, abrir mão da aniquilação do Hamas e demais grupos radicais na região.

Marcas de sangue no chão de uma casa no kibbutz Nir Oz: paz familiar interrompida (Crédito:Jack Guez)
Trabalho de equipes de resgate na Faixa de Gaza: atuação dificultada pela sede e fome (Crédito:Ali Jadallah)

A melhor defesa de Israel é o cumprimento das quatro Convenções de Genebra (a última é de 1949) que fixam normas éticas e morais de proteção a crianças e civis e distinguem combatentes de não combatentes. Destaca-se, nessas convenções, o princípio da proporcionalidade da resposta ante a agressão sofrida.

É assim no direito penal que envolva um furto de celular, é assim no direito internacional em regiões conflagradas. Claro que toda ação suscita uma reação a cada fração de segundo em nossas vidas.

Há de se observar, no entanto, que apesar de a última convenção trazer a adesão de 196 nações, muitas determinações não são cumpridas e, na maioria das vezes, o não cumprimento deve-se ao próprio terrorismo do Hamas e do Hezbollah, que se nutrem de carnificinas.

Fotos de pessoas que se desapareceram: reféns do terrorismo do famigerado Hamas (Crédito:Ahmad Gharabli)

Uma questão essencial e inerente à alma humana tem de ser colocada nesse momento. Como ser fleumático diante do Hamas que mostra ao mundo vídeos de jovens tomadas de reféns, como quem diz: “Será que daqui a um minuto ela estará viva? Vocês são responsáveis”. É cruel demais, feito a exibição da israelense Mia Shan.

Enquanto a expunham, os responsáveis pelas Brigadas Al-Qassam, uma das facções armadas próximas ao Hamas, obrigavam-na a levantar a mão machucada e informavam que havia duzentos e cinquenta reféns de Israel na Faixa de Gaza.

A ex-primeira-ministra de Israel Golda Meir, que esteve no poder entre 1969 e 1974 (faleceu quatro anos depois), é dona de uma frase definitiva: “Só construiremos a paz com radicais quando eles tiverem o dobro de amor por seus próprios filhos se comparado com a dose de ódio que sentem em relação a nós”.

O que ela quis dizer é que essa tal paz jamais existiria e de fato não existe — o terror não deixa. Grupos terroristas amarem mais seus filhos? A resposta é simples, e reconheçamos a cortante ironia que caracterizou Golda Meir: para tanto, basta lembrar que, no lugar do amor, os terroristas preferem ensinar sua prole a se tornar homens-bomba.

Valendo-se covardemente deles, os assassinos se esconderam e se infiltraram: traição (Crédito:Ohad Zwigenberg)