Comportamento

A Amazônia nunca esteve tão debilitada, dizem analistas

A seca histórica da Amazônia tem causado uma devastação ambiental jamais vista na região, impactos humanos preocupantes, como o drama do isolamento de centenas de milhares de pessoas nas comunidades rurais, e o desabastecimento de água e alimentos por conta das queimadas e do clima extremo

Crédito:  Lalo de Almeida

Leito seco do rio Solimões próximo à comunidade indígena Porto Praia, 11 metros abaixo do nível (Crédito: Lalo de Almeida)

Por Alan Rodrigues

A Amazônia é hiperbólica. A floresta comporta 7% da superfície total do planeta e possui cerca de 50% da biodiversidade mundial. Um terço das árvores do mundo está na região, além de 20% das águas doces. Com cerca de 6,5 milhões de quilômetros quadrados, a maior floresta tropical da Terra ocupa 60% do território brasileiro, abriga 1,5 milhão de espécies de plantas registradas e atravessa nove estados:
 Acre,
• Amapá,
• Amazonas,
• Mato Grosso,
• Maranhão,
• Pará,
• Roraima,
• Rondônia,
• Tocantins
.

Esse grandioso bioma passa por uma crise climática sem precedentes – a seca inédita em 121 anos de medição, que enxuga ou impede navegação nos rios. O consequente crescimento de queimadas cria verdadeiras estufas de fumaça e ameaça como nunca uma das maiores riquezas naturais do planeta.

Os rios da Amazônia formam a maior bacia hidrográfica do planeta, com mais de 1.000 afluentes. Ao todo, soma-se uma área com cerca de 7 milhões de km2, sendo 4 milhões em território brasileiro.

Por lá existem:
os rios de água branca, como o Amazonas, que possuem muitos sedimentos e são os mais ricos em peixes;
os de água clara, transparentes e com níveis intermediários de biodiversidade,
e os de águas escuras, como o Rio Negro, menos biodiversos.

Estima-se que só no Brasil, antes da seca catastrófica na região, existiam 25 mil quilômetros de vias navegáveis.

“Tivemos que instalar uma nova régua fluviométrica para medir o nível do rio”, diz o engenheiro ambiental Ayan Fleischmann (Crédito:Miguel Monteiro)

Há pouco mais de dois anos trabalhando no Amazonas pelo Instituto Mamirauá, o gaúcho Ayan Fleischmann, engenheiro ambiental e líder do Grupo de Pesquisa em Geociências e Dinâmicas Ambientais, é o responsável pelo monitoramento dos rios na região. No final do mês de setembro, quando aconteceu a trágica mortandade dos botos e tucuxis (mais de 150 morreram até agora), o engenheiro viveu uma situação curiosa: “Até agosto o nível do rio estava abaixo da média, mas dentro do esperado. Chegou setembro, o nível do Solimões despencou e começou a diminuir 30 centímetros por dia. Tivemos até de instalar uma nova régua fluviométrica para medir o nível já que a existente estava muito acima da água”, conta o pesquisador.

“Ver os botos agonizando naquele caldeirão foi horrível.”
Ayan Fleischmann, engenheiro ambiental

Fleischmann diz que a estiagem atual ainda pode piorar. “A tragédia está longe do fim, o nível da água no rio Solimões vem baixando de 5 a 7 centímetros por dia”, avalia.

Para o engenheiro ambiental, o enxugamento na Amazônia é um alerta para a crise climática. “É preciso tomar medidas urgentes para combater o desmatamento e as mudanças climáticas, a fim de proteger a floresta e a biodiversidade que ela abriga”, alerta o climatologista José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemadem).

O ambientalista Rômulo Batista, do Greenpeace, corrobora com as certezas do engenheiro Fleischmann, e do climatologista Marengo. “Estamos vivendo uma crise climática extrema que a gente nunca passou”, avalia.

“Eventos climáticos desse porte serão cada vez mais extremos. As consequências dessa crise no clima são imprevisíveis para este e para o próximo ano”, alerta o pesquisador do Cemadem.

Para ele, não existe um motivo principal para toda essa tragédia.

“É um combo de motivos: forte desmatamento nos anos anteriores que resultaram em grandes queimadas agora; aquecimento das águas do Oceano Atlântico, em suas porções tropicais e norte – levando baixa umidade para a Amazônia, e o aquecimento global.”
José Marengo, pesquisador do Cemadem

O porta-voz do Greenpeace não está blefando quando afirma que o cenário é catastrófico. Com efeito, a situação do estado do Amazonas é mesmo muito grave. Para se ter uma ideia, na terça-feira 17, a vazante (descida das águas) no rio Negro, com 2.300 quilômetros, chegou ao nível de 13,49 metros – o menor em 121 anos, desde que a medição foi iniciada, em 1902, no Porto de Manaus.

O recorde anterior é de 24 de outubro de 2010, quando o manancial atingiu 13,63 metros. “A estiagem severa levou 59 dos 62 municípios do Amazonas ao estado de emergência”, diz Batista. Em algumas cidades e comunidades ribeirinhas, a falta de chuvas deixou os rios, lagos e igarapés tão secos que parte das comunidades rurais está isolada pela via fluvial.

População ribeirinha é obrigada a cavar o leito do rio à procura de água para uso doméstico (Crédito:Sandro Pereira/Fotoarena/AgÍncia O Globo)

Os problemas com as restrições de navegabilidade, além de isolar comunidades inteiras, elevam o tempo dos percursos fluviais, o que também implica no custo maior de transporte e afeta os carregamentos de alimentos, soja, combustível e gás de cozinha.

“Já voamos 8.200 km entre Manaus, médio Rio Solimões e Alto Rio Madeira. Foram sete comunidades atendidas, beneficiando mais de 350 famílias na Floresta Nacional de Tefé e três comunidades indígenas, que ainda não tiveram sua demarcação finalizada no município de Tefé, com mais de três toneladas de alimentos” conta o ambientalista.

Manauara, o defensor público Carlos Alberto de Almeida Souza resolveu acionar a Procuradoria-Geral da República (PGR) solicitando a intervenção federal no estado por conta da fumaça, decorrente das queimadas na região, que tomou conta de Manaus na última semana.

“Nunca tinha vivido uma situação como essa. A capital do Amazonas chegou ao topo do ranking das cidades com pior qualidade de ar do mundo. Respirar em Manaus chegou a ser considerado perigoso”, diz.

“Estamos vivendo um inferno. Parece que a gente está na boca de uma chaminé.”
Defensor público Carlos Alberto de Almeida Souza, sobre Manaus

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou o aumento do número de focos de calor causados pelas queimadas. Em agosto eram 4.127 focos. Em outubro, já são cerca de 6.991 – o pior resultado do ano no Amazonas e o segundo pior desde setembro de 1998.

A seca está provocando o isolamento de centenas de milhares de pessoas em comunidades rurais, o que dificulta o acesso a alimentos, água e serviços básicos. Segundo o Inpe, o Amazonas tem o pior outubro de queimadas dos últimos 25 anos. “Se continuar dessa maneira, um grande naco da Amazônia irá desaparecer”, diz o defensor público.

O jornalista e escritor brasileiro Euclides da Cunha (1866-1909), autor de Os Sertões, obra fundamental na literatura brasileira, disse que “a Amazônia é a última página do Gênesis, que Deus deixou para os homens escreverem”. O livro de Euclides, além de narrar a guerra, relata a vida e sociedade de um povo negligenciado e esquecido pela metrópole.

A realidade de Canudos contada no livro nos permite traçar um paralelo com a situação trágica do Amazonas, do clima, das águas e da população. Canudos resistiu à desigualdade social e à opressão, mas sucumbiu diante do poder militar da época. A Amazônia, por sua vez, enfrenta uma luta contra a ganância e a exploração desmedida de recursos naturais. O Sertão, palco de resistência e destruição, continua a dar lições que não podemos ignorar. Ao certo, a última página do Gênesis não deve nem tampouco pode continuar a ser escrita com letras espelhadas ou garranchos.