Cultura

Noruega: uma potência literária muito além do Nobel

O prêmio Nobel ao escritor Jon Fosse consolida a Noruega, pequeno país nórdico com apenas seis milhões de habitantes, como um poderoso centro criativo — tradição que remonta ao século 19, quando o dramaturgo Henrik Ibsen foi considerado o sucessor de Shakespeare

Crédito: Tom A. Kolstad

Jon Fosse: abordagem local para falar de temas universais (Crédito: Tom A. Kolstad)

Por Felipe Machado

Talvez seja o clima gelado, que obriga seus habitantes a privilegiar as atividades em locais fechados, ou o investimento maciço em educação, que faz com que 82% da sua população adulta chegue ao final do ensino médio. Provavelmente, entre outras razões, há uma combinação dessas duas características. A verdade é que a Noruega, pequeno país nórdico com apenas seis milhões de habitantes, acaba de consolidar sua posição como poderoso centro criativo mundial ao ganhar o Nobel de Literatura. O país de Henrik Ibsen, dramaturgo do século 19 considerado por muitos o maior autor de teatro desde William Shakespeare, voltou a ocupar o centro das atenções.

Ao saber da vitória — e do prêmio de US$ 1 milhão —, Jon Fosse, de 64 anos, celebrado por seus trabalhos como dramaturgo, poeta e romancista, disse que estava “arrebatado e um pouco assustado”. Traduzido para mais de 50 idiomas, ele é a maior prova de que os grandes autores universais escrevem sempre a partir de um ponto de vista hiperlocal.

Os exemplos são inúmeros, da relação entre James Joyce e a cidade de Dublin, na Irlanda, a Guimarães Rosa e suas narrativas inspiradas pela região ao norte de Minas Gerais ou Jorge Amado, que construiu sua obra baseada na geografia do litoral baiano.

Fosse nasceu e cresceu na pequena cidade de Haugesund, região dos fiordes noruegueses, grandes paredões de pedra entrecortados por rios gelados e árvores de troncos retorcidos.

O autor tem três livros publicados no Brasil. Melancolia, É a Ales e Brancura. São obras de difícil classificação, pois combinam elementos de romance e poesia por meio de linguagem e gramática que fogem do convencional.

As frases não têm letras maiúsculas e são pontuadas por dezenas de vírgulas, com raros pontos finais.

É a Ales conta a história de uma mulher que passa a vida esperando o marido voltar de uma pescaria no fiorde. A saga, no entanto, é contada de maneira metafísica, por meio de cenas que se repetem ao longo do tempo com antepassados e personagens do presente, sempre tendo os fiordes e a velha casa como observadores.

Não sabemos bem onde termina a realidade e começa a viagem na cabeça da esposa.

Em Brancura, o protagonista se perde ao atravessar de carro a floresta sob uma nevasca. Quando a neve o impede de continuar, ele deixa o veículo e decide se aventurar, caminhando pela mata.

Fosse escreve em Nynorsk (neonoruguês), um dos muitos dialetos do país. O velho ditado diz que esses pequenos idiomas mudam a cada vinte quilômetros — ou de acordo com o movimento das águas dos fiordes.

O novo Nobel estudou Literatura Comparada na Universidade de Bergen, onde dividia o tempo entre os livros e a banda de rock. Em entrevista à revista New Yorker, afirmou que a música ainda exerce influência sobre seu trabalho.

“Para mim, escrever é escutar. É um ato mais musical que intelectual.”
Jon Fosse, Nobel de Literatura 2023

Sua obra mais famosa, Septologia, é divida em sete volumes que contam a história de Asle, pintor que torna-se religioso após o falecimento da mulher.

Apesar da morte estar presente em quase todas as suas histórias, ele diz que não pensa muito no assunto. “Acho que, à medida que você envelhece, você pensa menos na morte”, afirmou. “O filósofo Cícero dizia que a filosofia era uma forma de aprender a morrer. A literatura também é.”

Karl Ove Knausgard, autor de ‘Minha Luta’ (Crédito:Thomas Karlsson/Dn)

“Meu mundo não é minimalista e minha vida não é perfeita. Então por que diabos minha
escrita deveria ser?.”
Karl Ove Knausgard, autor de Minha Luta. Dividida em seis
partes, sua obra autobiográfica possui mais de 3500 páginas

Fosse não é o único norueguês a conquistar fama na atualidade. Com a hexalogia Minha Luta, Karl Ove Knausgard elevou a escrita autobiográfica a alturas inéditas.

Seu estilo narrativo, comparado ao do francês Marcel Proust, conquistou o mundo ao oferecer uma exploração brutalmente honesta da vida e das experiências de um homem.

Em estilo diametralmente oposto, Jostein Gaarder, autor do popular O Mundo de Sofia, traduziu aos leitores os conceitos da filosofia por meio de uma narrativa envolvente e imaginativa.

Sua capacidade de tornar ideias filosóficas complexas acessíveis a um público amplo lhe garantiu sucesso no mercado editorial.

Há ainda Jo Nesbo, com seus thrillers detetivescos que remetem a versões nórdicas dos enredos de Agatha Christie e vendem milhões de cópias. Assim como seus colegas noruegueses, Nesbo escreve sobre temas universais a partir de problemas locais — o que, como se vê, é receita garantida para o sucesso.

País também ganha destaque no cinema

Edvard Munch: filme sobre o pintor de ‘O Grito’ revela sua luta para manter a sanidade (Crédito:Divulgação)

Não é apenas a literatura da Noruega que vem chamado a atenção do mundo. Seu cinema é conhecido por contar histórias profundas e cativantes, sempre explorando a rica cultura do país.

Um exemplo é o filme Munch, dirigido por Henrik Martin Dahlsbakken e destaque recente no Festival de Roterdã, na Holanda. O longa mergulha nas complexidades da vida e obra do maior pintor norueguês, Edvard Munch, e oferece uma visão fascinante e emocional sobre sua arte e sua vida.

Munch é famoso por sua pintura O Grito, que se tornou um ícone da arte expressionista. Por meio da lente sensível de Dahlsbakken, somos levados em uma jornada por sua batalha com a saúde mental e as diversas fases de sua carreira artística.

Para marcar essas diferenças, o diretor divide as oito décadas de trajetória do artista entre quatro atores: Alfred Ekker Strande, aos 21 anos, Mattis Herman Nyquist, aos 30, Ola Furuseth, aos 45, e a atriz Anne Krigsvoll (foto), no final da vida.