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A guerra que vai mudar o mundo

A maior agressão sofrida por Israel desde 1948 traz instabilidade, coloca a região em convulsão e pode arrastar outros países para um conflito que terá desdobramentos globais

Crédito: Anadolu Agency

Militantes do Hamas capturam um refém civil israelense em 7 de outubro. Abaixo, um ponto da fronteira que foi usado pelos terroristas na invasão (Crédito: Anadolu Agency)

Por Marcos Strecker e Denise Mirás

Ha 50 anos, Israel enfrentou sua maior ameaça existencial quando os Exércitos do Egito e da Síria invadiram o país na guerra do Yom Kippur. A nação triunfou e se fortaleceu. Meio século depois, não há dúvidas da capacidade de Israel em responder militarmente ao maior ataque sofrido em sua história, no sábado, dia 7. Mas essa resposta pode mudar o futuro do país, impactar todo o Oriente Médio e transformar a correlação de forças na geopolítica global. As hostilidades ocorrem em um momento dramático, em que há um grande número de conflitos internacionais. Existe uma disputa crescente entre China e EUA, que cada vez mais se assemelha a uma Guerra Fria e embute a ameaça de invasão em Taiwan. A Ucrânia vive o maior conflito armado em solo europeu desde a Segunda Guerra, invadida pela Rússia que sonha reviver o imperialismo soviético. O populismo de direita e o nacionalismo ameaçam democracias pelo mundo. E é nesse contexto que o Oriente Médio, região que parecia caminhar para uma normalização da relação entre Israel e seus vizinhos árabes, entra em convulsão.

(AP Photo/Hatem Ali)

No último dia 7, num assalto surpresa por terra, ar e mar, o grupo extremista Hamas disparou cerca de 3 mil foguetes da Faixa de Gaza e invadiu o território israelense fazendo disparos a esmo na população indefesa, inclusive mulheres, crianças e idosos. Foi uma chacina.

Apenas no primeiro dia de horror, 600 israelenses foram assassinados a sangue frio e 2.000 ficaram feridos. Cerca de 150 foram sequestrados e levados para a Faixa de Gaza, mantidos em local incerto como escudo humano para evitar a retaliação militar ou como moeda de troca para futuras negociações.

A carnificina teve matanças chocantes, até com bebês degolados. Somente após o avanço das tropas israelenses e das equipes de socorro, cinco dias depois, descortinou-se o rastro de atrocidades e a dimensão mais precisa do massacre: 1.200 mortos.

O presidente de Israel, Isaac Herzog, disse que foi o dia mais sangrento para os judeus desde o Holocausto.

Essa ação covarde chocou o planeta e alarmou a comunidade internacional. “Reconheço as queixas legítimas do povo palestino, mas nada justifica atos de terror e o assassinato, mutilação ou sequestro de civis”, alertou o secretário-geral da ONU, António Guterres.

Após retomar o controle dos vilarejos na fronteira com Gaza, o Exército israelense havia contado 1.500 corpos de militantes palestinos. O país foi pego desprevenido, e as Forças Armadas levaram várias horas para responder de maneira proporcional.

A reação, no entanto, deve ser grandiosa. O país convocou 360 mil reservistas para uma incursão terrestre, que deve ser a maior e mais agressiva no enclave palestino, que também faz fronteira com o Egito.

“O cenário pode escalar de forma que não imaginamos.”
Claudio Lottenberg, presidente da Confederação Israelita do Brasil

Claudio Lottenberg, presidente da Confederação Israelita do Brasil (Crédito:Pedro Dias)

Drama dos reféns

Esse drama humano e a forma como o governo israelense vai responder ocuparão o noticiário mundial nos próximos meses. Trata-se de uma guerra assimétrica, já que a Faixa de Gaza é densamente povoada, com mais de 2 milhões de habitantes vivendo em vielas ou moradias precárias.

Militantes do Hamas tentarão usar táticas de guerrilha, mas enfrentarão um dos Exércitos mais bem preparados do mundo. Um grande número de vítimas é esperado na população civil.

Só nos primeiros ataques aéreos israelenses, mais de 300 morreram. No quinto dia de conflito, esse número já era de 1.055.

Na segunda-feira, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, anunciou que nem energia ou comida seriam autorizados em Gaza. “Estamos impondo um cerco total. Sem eletricidade, sem comida, sem água, sem gás, tudo bloqueado. Lutamos contra animais e agimos em conformidade”, declarou.

Isso despertou críticas na ONU. “Operações militares precisam ser conduzidas de acordo com as regras estritas da lei humanitária internacional. Os civis precisam ser respeitados e protegidos sempre. A Infraestrutura civil nunca pode ser um alvo”, afirmou Guterres.

De acordo com a ONU, 18 instalações da agência responsável por atender a população palestina já foram destruídas e nove funcionários foram mortos. Mesquitas e hospitais também foram alvo.

O mundo entra em compasso de espera pela possível reação dos demais países da vizinhança. Há temor com o Hezbollah, encastelado no Líbano, esse grupo terrorista também se manifestou com mísseis lançados ao norte de Israel.

Há a possibilidade de uma espiral de violência. Tanto o Hamas como o Hezbollah contam com o apoio do Irã — único país a defender e comemorar a ação do grupo Hamas.

Mesmo assim, o governo teocrático xiita do país se apressou em negar qualquer envolvimento. Quer evitar uma reação de Israel — ou dos EUA. Não se trata de mera simpatia à causa palestina.

O Irã e seus grupos paramilitares satélites têm interesse em frear a normalização diplomática de Israel com seus vizinhos árabes, com o patrocínio dos EUA.

Em 2020, o governo isralense assinou acordos de paz históricos com Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Marrocos. Um tratado com a Arábia Saudita estava em estágio adiantado. Isso será adiado.

Destroços da mesquita Al-Sousi, no campo de refugiados de Al-Shati, bombardeada por Israel (Crédito:Mahmud HAMS / AFP)

Revés para Netanyahu

Seja como for, é evidente o interesse do Hamas em escalar o conflito. Esse grupo fundamentalista islâmico, classificado como terrorista pelos EUA, pela Europa e pelo Reino Unido, passou a administrar a Faixa de Gaza após disputar de forma sangrenta a liderança local com a Autoridade Palestina, que administra a Cisjordânia.

Israel, por sua parte, recebeu apoios importantes. Joseph Biden disse que a nação tem todo o direito de se defender. Os EUA começaram a enviar armamento para reforçar a operação na Faixa de Gaza, assim como despacharam o maior porta-aviões do mundo como força de dissuasão para evitar que forças contrárias a Israel reajam.

O presidente francês, Emmanuel Macron, condenou a ameaça do Hamas de matar os reféns em retaliação aos ataques aéreos israelenses: “É uma chantagem hedionda e inaceitável”.

O ataque ocorreu num momento de vulnerabilidade de Israel. Muitos dos analistas veem em atitudes de Netanyahu o estopim para o conflito. Em 16 anos de poder em Israel, ele abandonou a política de trocar “terra por segurança” por uma política de “segurança acima da paz”.

O saldo trágico das hostilidades estampou o fracasso da estratégia. Agora, se ele optar por uma guerra total, pode levar Israel ao isolamento internacional.

Para voltar ao poder em janeiro passado, aliou-se a grupos radicais que pregam a ampliação dos assentamentos de colonos na Cisjordânia sem concessões aos palestinos. Essa seria uma das razões da ação do Hamas.

Aquele que seria o comandante militar do grupo, Muhammad al-Deif, divulgou áudio no dia 7 dizendo que a invasão foi em resposta ao premiê pelos “ataques diários à mesquita Al-Aqsa” que fica ao lado do Monte do Templo de Jerusalém, uma área sagrada para muçulmanos, judeus e cristãos.

O primeiro-ministro vinha enfrentando manifestações pelas ruas por seu confronto com o Judiciário e tentativas de mudar a Constituição para se livrar da cadeia por investigações de corrupção. Agora, pelo menos no curto prazo, tem a população unida contra os terroristas e, ao mesmo tempo, cética quanto à eficiência do governo na defesa do país, por não ter previsto a invasão do Hamas.

Esse conflito é a maior derrota política da carreira de Netanyahu. Mesmo assim, na quarta-feira, 11, ele conseguiu fechar um acordo com a oposição para formar um governo de emergência e criar um gabinete de guerra.

Irã e Arábia Saudita

Para Vladimir Feijó, professor de Direito Internacional da PUC-MG, há “lideranças radicalizadas dos dois lados”, o que resulta em falta de equilíbrio. Se o Hamas nega o Estado de Israel, há lideranças do atual governo israelense que também se mostram xenofóbicos, sustentadas por ultraortodoxos.

“Vamos lembrar que 48% da população da Faixa de Gaza tem menos de 14 anos de idade. Sob pressão, Netanyahu responde duramente. Mas fez vistas grossas ao Egito, que diz ter alertado Israel sobre a possibilidade do ataque.”

Feijó não vê abertura para negociações, “talvez uma janelinha”, como observa, “se conseguirem tratar de troca de reféns por prisioneiros palestinos, que chegam a 4 mil”.

O professor destaca que o Hamas não é só um grupo militar, mas um partido político terrorista, que também se vale do aspecto midiático. E por isso não tem escrúpulos em divulgar cenas de mortos e feridos pelos bombardeios israelenses em favor da própria causa.

Ou de usar os sequestrados como escudo humano, escondidos em túneis, ruelas ou apartamentos de difícil acesso, destacando, como já fez, que quatro haviam morrido pelos mísseis israelenses. “Agora, temos a guerra de quinta geração, híbrida, com novas tecnologias somadas a mais volume de soldados e onde se ignora qualquer humanização.”

Benjamin Netanyahu (esq.) e o ministro da Defesa Yoav Gallant (ao seu lado) no quartel- general das Forças Armadas de Israel (Crédito:Divulgação)

Repercussão no Brasil

Presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib), Claudio Lottenberg diz que à parte a tristeza da perda de seres humanos barbaramente mortos em um dos momentos que classifica de “mais atrozes da humanidade”, também “não restou qualquer dúvida de que o Hamas é um movimento terrorista e braço estendido do Irã, mas não do povo palestino”.

Para ele, ficou mais longe o entendimento, porque o Hamas criou mecanismos que não respeitam a criação de um Estado Islâmico e quer “varrer” Israel do mapa. “Estou bem preocupado, porque o cenário não tem uma limitação previsível. Pode escalar de forma que não imaginamos, se o Irã entrar no conflito”, diz.

Com seu fundamentalismo xiita, o Irã está ficando isolado do mundo árabe. “É um momento ótimo para governos mostrarem que estão, de fato, compromissados com a democracia.”

O cientista político André Lajst, presidente-executivo da ONG StandWithUs, prevê que a ação israelense em Gaza deve levar meses, pois o objetivo deve ser destruir totalmente a infraestrutura militar do Hamas. “Me parece que não há outra alternativa. Ainda pode haver uma solução de dois Estados, mas não com o Hamas.”

Tanguy Baghdadi, professor da Casa do Saber, diz que o ataque do Hamas “foi na hora exata para abalar, dificultar a aproximação da Arábia Saudita com Israel”. Ele diz que há uma mudança na geopolítica “em que a guerra na Ucrânia perde a centralidade, o que é melhor para a Rússia”.

VanDyck Silveira, PhD em economia e CEO da Humaitá Digital, lembra que o conflito impacta a economia mundial, com consequências que ainda dependerão de reações dos envolvidos. “Se ficar configurado que o Irã contribuiu, Israel pode retaliar com bombardeio em refinarias de petróleo iranianas e localidades onde se desconfia que exista enriquecimento de urânio para a produção de armas nucleares. Essa é a grande preocupação.”

A invasão de Israel, para ele, tem o Irã como grande vencedor, se quebrado o acordo de paz e cooperação entre Israel e Arábia Saudita. “Tudo o que o governo iraniano não quer é seus dois inimigos se juntando.”

O Brasil, que teve um papel importante na fundação de Israel, também se viu com um papel destacado no atual conflito, já que assumiu poucos dias antes a presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU.

Logo no sábado, o presidente Lula tuitou: “Fiquei chocado com os ataques terroristas realizados contra civis em Israel, que causaram numerosas vítimas. Ao expressar minhas condolências aos familiares das vítimas, reafirmo meu repúdio ao terrorismo em qualquer de suas formas”.

Foi uma manifestação irretocável, que se contrapôs na prática a outras afirmações que procuraram legitimar moralmente a barbárie terrorista. O ex-ministro Zé Dirceu, por exemplo, disse que é “contraditório” chamar o grupo Hamas de terrorista e citou ataques sionistas antes da criação de Israel.

O deputado Guilherme Boulos perdeu um aliado de campanha para a prefeitura paulistana ao omitir o nome do Hamas em uma declaração. Depois disso, foi claro em condenar o grupo.

Militantes do Hamas participam de desfile em 20/7 para celebrar o conflito com os israelenses que durou 51 dias em 2014 (Crédito:SOPA Images)

Lula também defendeu o cessar-fogo entre Israel e Hamas e fez um apelo pela segurança de crianças. O Conselho de Segurança se reuniu no dia 8, mas o encontro não resultou em nenhum comunicado.

A diplomacia brasileira tentou articular uma moção de repúdio aos ataques do Hamas que também incluísse o pedido por um acordo de paz com os palestinos. Esse é o verdadeiro nó da questão. Para a busca de uma solução de longo prazo que contemple a criação de um Estado palestino convivendo em harmonia com Israel, é necessária uma liderança única e legítima dos palestinos.

Era o espírito do finado Acordo de Oslo, que foi celebrado a duras penas nos anos 1990 e acabou abandonado por ação de extremistas nos dois lados.

Tudo o que o Hamas não deseja é promover a paz e a convivência. Seu objetivo é impedir a harmonia e sabotar o caminho da paz — à custa de vidas inocentes de israelenses e palestinos.

Conflito atinge brasileiros

Israel diz que há reféns do Brasil mantidos em cativeiro em Gaza. Duas mortes foram confirmadas, de vítimas que estavam em um evento de música eletrônica criada no País

Ao menos dois brasileiros estão entre os 260 mortos pelo ataque do Hamas a uma rave que era organizada no deserto, a cinco quilômetros da Faixa de Gaza, de acordo com as investigações das autoridades israelenses: o gaúcho Ranani Nidejelski Glazer, de 23 anos, e a carioca Bruna Valeanu, de 24.

Eles estavam em uma festa de música eletrônica organizada pelo DJ Swarup — o brasileiro Juarez Petrillo, pai do DJ Alok. Esse evento virou palco de uma das piores chacinas no conflito.

Karla Stelzer Mendes, de 41 anos, que também estava no festival, está desaparecida. O Exército israelense divulgou que há reféns brasileiros mantidos em cativeiro em Gaza, muitos com dupla nacionalidade.

O enterro de Bruna virou uma comoção. Com apenas mãe e irmã vivendo em Israel e precisando de pelo menos dez homens maiores de 13 anos em seu funeral, conforme a tradição judaica, um chamado por redes sociais reuniu uma multidão. Um engarrafamento de dois quilômetros se formou no acesso ao cemitério de Petah Tikva, próxima de Tel Aviv, na terça-feira, 10.

Chegada do primeiro avião da FAB com 211 brasileiros que estavam em Israel, na quarta-feira, dia 11 (Crédito:Ueslei Marcelino)

Outros brasileiros conseguiram escapar. Rita Cohen Wolf relata ter ouvido uma sirene tocando às 6h30 do sábado, dia 7, quando ainda dormia em sua casa na cidade de Raanana, a 20 quilômetros de Tel Aviv, e achou que só poderia ser um problema técnico.

Nos últimos dias, de festas judaicas praticamente emendadas, não havia qualquer sinal no ar que pudesse sugerir uma emergência.

Em Israel há 30 anos, voltou a dormir, antes da insistência dos alarmes empurrar moradores ao subsolo blindado do prédio. Em Israel desde 1994, Rita conta que Raanana, onde vive, virou a cidade dos brasileiros.

Ela diz que é relativamente normal descer para abrigos, mas já fazia dois anos desde sua última vez. “Os edifícios construídos antes de 1992 tinham quartos blindados. Os mais novos têm área blindada no subsolo.”

Bruna Valeanu e Ranani Nidejelski, que foram assassinados. Abaixo, momento do ataque à rave de brasileiros (Crédito:Divulgação)
(Divulgação)

Durante toda a semana relatos do pavor inundaram as redes sociais, como da atriz Gabriela Duarte e seus filhos. Ela contou que um dia antes do ataque o clima era tranquilo, da mesma forma que outra brasileira, Carina Elrich. Como moradora do kibutz Givat Oz, ao norte do país, Carina explica que o local mantém soldados em prontidão, pela proximidade com o Líbano, onde estão militantes do Hezbollah.

Enquanto isso, Rita Cohen Wolf se dizia preparada para se integrar aos reservistas convocados pelo Exército. “Estou pronta para viver ou morrer por Israel”, declarou a mineira de 22 anos, que mora no país desde os 14.

Cerca de 14 mil brasileiros vivem em Israel e 6 mil na Palestina, segundo o Itamaraty — a maioria fora da área de conflito. Pelo menos 2.300 tinham pedido a repatriação até terça-feira.

A prioridade era trazer primeiro os que estavam em viagem e não moravam no país. A FAB montou uma grande logística para a retirada emergencial, e 211 vieram no primeiro voo, que chegou na quarta-feira, 11. Um grupo de evangélicos da Igreja Batista de Contagem, na Grande Belo Horizonte, conseguiu embarcar. Estavam previstos pelo menos mais cinco voos até o dia 15, trazendo até 900 brasileiros.