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Entenda por que o plano do governo de combate à criminalidade é um tiro n’água

A violência se tornou a preocupação nº 1 do brasileiro. Não à toa, já que o cidadão assiste inerte a chacinas comandadas por policiais e ações truculentas de criminosos. O que o governo pode e deve fazer para minimizar o perigo que ronda a sociedade?

Crédito:  Leo Correa/AP Photo

Policiais do Rio de Janeiro executam operação no Complexo da Rocinha (Crédito: Leo Correa/AP Photo)

Por Luiz Cesar Pimentel

RESUMO

• O Brasil possui 2,7% da população global e é responsável por um quinto dos homicídios no mundo.
• Eventos recentes de violência no Rio e na Bahia obrigaram o governo a montar um plano de combate ao crime
• Feito às pressas e sem requisitos básicos para enfrentar o problema de forma perene, o projeto recebeu muitas críticas

O colapso da segurança pública no Brasil é fato e o resultado prático é que o cidadão nunca se sentiu tão vulnerável no País. Pesquisa do Datafolha realizada em setembro aponta que 71% das pessoas sentem-se inseguras. Em relação à pesquisa anterior, realizada há menos de um ano, o temor do cidadão com a violência, em resposta espontânea, saltou de 6% para 17% sobre o que o governo deve priorizar, em empate com a saúde. Enquanto assiste ações cada vez mais ousadas de criminosos e vê os gráficos de descrédito sobre a capacidade de resolver a questão subirem, o governo tenta responder com ações pontuais sobre o efeito e não na causa.

O plano de política nacional de segurança, prometido para até o final deste ano, foi precedido por anúncio do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) na segunda-feira, 2, composto por medidas paliativas, para conter um quadro que se agravou em alguns estados.

A esperança era a divulgação de um planejamento estratégico para ter efetividade, mas acabou não passando de ações desordenadas. Afinal, o mapa da violência encontra-se bem desenhado – são conhecidos locais, agentes e motivações, portanto só uma abordagem abrangente surtirá efeito.

Ações da polícia baiana causaram as mortes de mais de 70 pessoas em confrontos em setembro (Crédito:Divulgação)

O principal ponto é que o combate aos crimes é conduzido no País como problema somente de lei e ordem, com protagonismo de profissionais do Direito e de policiais que, na maioria das vezes, possuem formação precária. As ações não contemplam tudo o que envolve o cuidado da garantia pública, que requer:
• medidas voltadas para proteger os cidadãos,
• prevenir delitos,
• e estabelecer ordem e tranquilidade na sociedade.

É necessário investimento tanto em contratação e treinamento de pessoal quanto na:
modernização dos sistemas de investigação,
em equipamentos de segurança,
em melhoria das condições das prisões,
em programas de prevenção.

“A preocupação é legítima. Estamos vindo de processo de desorganização econômica, social e política forte. Essas crises cobram preço alto. Além disso, a violência e o avanço do crime foram potencializados pela política irresponsável armamentista do último governo”, diz o secretário-executivo do MJSP, Ricardo Cappelli.

R$ 900 milhões
é a verba disponibilizada para a estruturação de redes de combate ao crime organizado

R$ 2 bilhões
é a estimativa de prejuízo que o crime organizado teve a partir da operação Hórus, do MJSP

 

A resposta do governo à crise atual foi o anúncio de investimento de R$ 900 milhões até 2026 em programas de combate às organizações criminosas, com deslocamento de 300 homens da Força Nacional e 270 policiais rodoviários para o Rio de Janeiro e 109 agentes e R$ 20 milhões para a Bahia, estados que vivem o caos na segurança pública.

O ministro Flávio Dino (Justiça) apresentou cinco eixos de ação de conotação genérica e nada objetivos. São eles:
• integração institucional e de troca de informações;
• eficiência dos órgãos policiais;
• monitoramento de portos, aeroportos, fronteiras e divisas;
• maior eficiência da justiça criminal;
• e cooperação entre União, estados e municípios, além de intercâmbio com agentes estrangeiros.

Ou seja, nenhum objetivo concreto foi apresentado.

Policiais federais vigiam as fronteiras marítimas em porto localizado na costa paranaense (Crédito:Claudio Neves)

Na Bahia e no Rio

Nada se falou também sobre o envolvimento de profissionais de outras disciplinas que tem a ver com segurança, como Ciências Sociais, Tecnologia ou Sociologia. Muito menos da participação da sociedade civil, com abertura de canais de comunicação eficientes e conscientização da importância da participação em projetos coletivos.

A ação prevê apenas a aplicação de mecanismos para dar uma resposta rápida à sociedade. Choveram críticas à falta de plano integrado e pedidos de divisão da pasta entre Justiça e Segurança Pública.

“Há um ponto positivo que é assumir a dimensão do problema, não esconder e falar abertamente, após 30 anos de omissão do governo”, pondera o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP Bruno Paes Manso.

“Existe uma relação entre planejamento e ação, uma corrige e aperfeiçoa a outra. Vivemos uma sucessão de crises desde o 8 de Janeiro. Enquanto agíamos, planejávamos. Enquanto planejávamos, agíamos”, diz Cappelli.

Não que o Brasil seja um exemplo a ser seguido pela melhora mínima nos índices de violência em 2022. Até porque esta é ilusória e os casos de maior repercussão, como atentado com granada a ônibus no Rio de Janeiro ou a recente pilha de 70 mortos em confrontos na Bahia, ofuscam o restante do aglomerado de problemas que levam medo à população.

O Brasil possui 2,7% da população global e é responsável por um quinto dos homicídios no mundo. E histórico não falta para que se desenvolva plano efetivo. Basta análise dos casos mais representativos atualmente.

O tamanho do desafio

O Brasil tem 23 mil km de fronteiras, marítimas e terrestres e 13 mil policiais federais para cuidar dessa extensão

Amapá lidera violência com taxa de 50,6 mortes por 100 mil pessoas. São Paulo está em último, com 8,4 mortes a cada 100 mil

Cotado para vaga no STF, o atual ministro Flávio Dino diz que tem plano pronto para estabelecer a paz (Crédito:Wallace Martins)

Ranking da violência

A Bahia carrega o triste posto de líder em violência no País desde 2011, quando o monitoramento iniciou. Só perdeu o primeiro lugar nesses 12 anos em 2018, quando o Rio a superou em mortes violentas intencionais.

Em 2022 foram 6.659 casos, acima dos 4.485 do Rio, 3.423 de Pernambuco e 3.735 de São Paulo. Também é a primeira em morte decorrente de intervenção policial, com 1.464 casos em 2022, acima dos 1.330 do Rio e 419 de São Paulo.

Seis das 10 cidades mais violentas são baianas – Jequié lidera seguida por Santo Antônio de Jesus, Simões Filho e Camaçari a completar o top 4. Feira de Santana e Juazeiro estão em 9º e 10º lugares, respectivamente, e a capital, Salvador, em 12º.

Projeto de recuperação deveria contemplar a geografia da região, já que o estado é estratégico para o tráfico de drogas tanto como porta para o Nordeste quanto pelas fronteiras que faz com Sudeste e Centro-Oeste.

“Nos primeiros nove meses de 2023, as forças de segurança prenderam 13 mil pessoas envolvidas em crimes. Quatro mil armas de fogo foram apreendidas”, responde a Secretaria da Segurança Pública baiana ao questionamento sobre os índices.

Mesma argumentação da sua congênere em São Paulo: “Trabalhamos com emprego de inteligência, tecnologia e cooperação entre as polícias. Como resultado, em oito meses deste ano, mais de 189,2 toneladas de drogas foram apreendidas e 7,5 mil armas ilegais foram retiradas das ruas do Estado”.

Já no Rio de Janeiro, a questão da segurança está fora de controle.

Inacreditáveis 72,9% da extensão territorial da capital estão sob domínio ou da milícia ou das três organizações criminosas dominantes – 57,5% em mãos de milicianos e o restante dividido entre Comando Vermelho (11,4%), Terceiro Comando (3,7%) e Amigos dos Amigos (0,3%).

Em fatia populacional, um terço dos cariocas (2,2 milhões) vive em áreas milicianas e 18,2% (1,2 milhão) em espaços das facções. O mapeamento foi feito pelo Instituto Fogo Cruzado e por grupo de estudos da Universidade Federal Fluminense.

Significa que de um lado existem as organizações criminosas e do outro, grupo paramilitar que extorque o cidadão com serviços que cabem ao estado, como
• segurança,
• transporte e habitação,
• além de intermediar gás, eletricidade e TV a cabo.

Ou seja, a ação mafiosa ocupa o vácuo onde o governo deveria agir.

Quando o Fantástico, da Rede Globo, exibiu reportagem no Rio com treinamento de guerrilha no Complexo da Maré, onde vivem 140 mil pessoas, e a Bahia atingiu 70 óbitos em confrontos policiais em um mês, o ministro Flávio Dino reuniu os governadores dos dois estados, o diretor-geral da Polícia Federal e determinou a utilização dos instrumentos disponíveis: os agentes da Força Nacional, fiscalização da PRF em vias de acesso às cidades, portos e aeroportos, e inteligência da PF.

Disse que 90% do seu tempo ministerial é dedicado à segurança pública e lamentou que a maior parte das ações não são da alçada federal.

Bandidos cariocas chegaram ao ponto de atacar um ônibus lotado de passageiros com granada (Crédito:Fabiano Rocha)

205 estupros por dia

Nenhuma palavra, porém, sobre a explosão de outras modalidades criminosas que atingem sem distinção geográfica o cidadão brasileiro. Em 2022, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em toda a federação foram 999.223 registros de roubos e furtos de celulares, crescimento de 16,6% sobre o ano anterior.

Carros também foram mais roubados, com um aumento de 8% que resultou em 373.225 veículos.

Já os estelionatos apresentaram a maior explosão, em curva que parte de 523 mil casos em 2019 para quase 1 milhão em 2020 e 1,8 milhão em 2022. Entre o ano passado e o anterior, o aumento foi de 38%, com 208 casos registrados por hora no País.

Foi registrado também o maior número de casos de estupro, com média de 205 por dia.

Nos crimes cibernéticos, o problema é que os autores perceberam que o risco é bem menor do que se praticado fisicamente e estão se especializando no universo virtual mais rapidamente do que a população.

“Não tivemos na escola uma matéria que explicasse os perigos digitais. Temos que criar campanhas educativas, para que a sociedade entenda os riscos que estão carregando no celular”, diz Rafael Narezzi, mestre em cibersegurança.

Reflexo disso está na recente pesquisa Global Advisor – Crime, realizada pela Ipsos em 29 países, com 23.039 entrevistados. Mais da metade dos nossos compatriotas (53%) afirmou que viu ou ouviu falar sobre assaltos em sua vizinhança nos últimos 12 meses. Nesse quesito, o Brasil é o 5º colocado do ranking.

Seis em cada dez afirmam que ouviram falar sobre delito relacionado ao tráfico de drogas em sua área de moradia. Sobre violência de gênero, 63% viram ou escutaram falar sobre violência contra a mulher em seus bairros, o que coloca o País em 3º colocado do ranking global empatado com o Peru.

Nenhuma surpresa também sobre o caso do perfil das vítimas principais de violência no País: 76,5% dos mortos com intenção são negros.

O índice sobe para 83,1% sobre os punidos com violência policial, sendo que o percentual na composição demográfica da população é de 55,8%.

“O racismo molda a cultura das instituições públicas, como as forças de segurança. É preciso controle social externo das ações policiais, postura mais ativa do Ministério Público, investimento em inteligência e desarmamento da população”
Nathalia Oliveira, socióloga e co-fundadora da Iniciativa Negra por uma Nova Política Sobre Drogas

Ricardo Capelli (à esq.), segundo no MJSP, fala sobre a situação do Rio ao lado do governador Cláudio Castro (Crédito:Charles Sholl)

Ricardo Cappelli, que pode assumir a pasta caso Flávio Dino seja indicado ao STF, projeta um Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) para integrar unidade federativa, estados e municípios.

“Estamos construindo centro nacional integrado de inteligência, além de um mecanismo para inibir roubos e furtos de celulares. As operadoras, a Anatel, a Febraban estão colaborando e também estamos conversando com as big techs. Não há bala de prata para a questão. Ninguém vai resolver sozinho”, afirma o secretário.

Quando assumiu a presidência do STF, Luis Roberto Barroso ofereceu outra coordenada: “O combate à criminalidade não é incompatível com respeito aos direitos humanos”. Correto. Afinal, o enfrentamento da violência está justamente na defesa de tais direitos. Mas a vitória só virá quando for corrigida a atual miopia.

Mais um banho de sangue no RJ

Médicos que participavam de congresso no Rio de Janeiro são mortos durante happy hour em barraca à beira-mar

À 1h da manhã desta quinta-feira (5), quatro ortopedistas conversavam em frente ao hotel onde estavam hospedados quando três foram assassinados. Marcos de Andrade Corsato, Diego Ralf Bomfim, e Perseu Ribeiro Almeida, foram executados com mais de 30 tiros em um quiosque na Barra da Tijuca, zona Oeste e nobre da capital fluminense.

Daniel Proença, o quarto, foi ferido no ataque. Eles estavam na cidade para um congresso internacional da especialidade médica do grupo.

O ataque durou 14 segundos. As portas de um carro branco estacionado abrem, três pessoas com roupas escuras descem e disparam à queima-roupa sobre o grupo.

Segundo testemunhas, não anunciaram assalto, o que é confirmado pelo vídeo da matança, já que não levam objetos das vítimas. Dois ainda fazem segunda investida para garantirem as mortes.

Como foi caracterizada execução e uma das vítimas, Diego, era irmão da deputada Sâmia Bomfim e cunhado do também deputado Glauber Braga, ambos líderes do PSOL, o ministro da Justiça, Flávio Dino, ordenou investigação da Polícia Federal sobre o caso.

O PSOL era o partido da vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018 na cidade. Segundo a deputada Fernanda Melchionna, “Sâmia está devastada”. O presidente Lula emitiu mensagem de pesar em rede social: “Recebi com grande tristeza e indignação a notícia da execução”.

Os 7 pontos-chaves de plano de segurança
Segundo especialistas, para uma estratégia robusta de proteção à população é preciso adotar as seguintes condutas

Roteiro estratégico
Definição de metas claras e objetivos mensuráveis, tanto para a prevenção quanto para a repressão ao crime

Avaliação das necessidades
Levar em conta fatores como vulnerabilidade social, taxas de criminalidade, geografia e características demográficas

Inteligência e tecnologia
Investimento em sistemas de inteligência policial, apuração e análise de dados, tecnologias de monitoramento e comunicação entre pares e com a sociedade civil

Hierarquização de ações por evidências
É preciso basear as decisões de alocação de recursos e mão-de-obra em dados concretos

Parcerias
Promoção da colaboração entre instituições governamentais, agências, organizações da sociedade civil e comunidade

Investimento em prevenção social
Destinar recursos para programas sociais que abordem causas paralelas da criminalidade, como desigualdade, falta de acesso a serviços básicos, pobreza, desemprego e exclusão social

Monitoramento contínuo
Estabelecer mecanismos de avaliação recorrente para acompanhar eficácia e impacto das ações de segurança

Colaborou Elba Kriss