Cultura

Livro resgata a vida do rei da dor de cotovelo

A trajetória pessoal e artística de Lupicínio Rodrigues, um dos principais compositores e cantores do Brasil, que expôs em suas músicas e letras, com lirismo e requinte, o sofrimento por amor

Crédito: Acervo Instituto Moreira Salles

Lupicínio Rodrigues: contador de histórias e sambista fora do eixo Rio-São Paulo (Crédito: Acervo Instituto Moreira Salles)

Por Felipe Machado

Em 1940, aos 26 anos, Lupícinio Rodrigues se apaixonou por Mercedes, uma “mulher da vida”. Contrariando as recomendações de amigos e familiares, convidou a moça para morar com ele. Cinco anos depois, o cantor foi abordado por um funcionário da chácara onde o casal morava. Ele alegava que Mercedes teria tentado assediar seu sobrinho, mas, preocupado com a repercussão no trabalho do tio, o rapaz teria recusado. Furioso, Lupícino expulsou a a mulher de casa e, como resposta, escreveu um de seus maiores sucessos, “Vingança”: “Mas enquanto houver força em meu peito/eu não quero mais nada/e para todos os santos vingança/vingança clamar”.

O episódio é um dos muitos que marcaram a trajetória desse grande compositor brasileiro. Nascido em Porto Alegre, negro, de classe média baixa, ele é homenageado em Lupicínio Rodrigues: Uma Biografia Musical, de Arthur de Faria.

A primeira pergunta que a obra busca responder é: como um jovem e desconhecido compositor gaúcho, fora do eixo Rio-São Paulo, conseguiu que seus sambas fossem ouvidos em todo o País? A história parece ficção, mas é real.

Os responsáveis pela disseminação de seu primeiro hit, “Se Acaso Você Chegasse”, foram os marinheiros que abarcavam na região Sul. Vendo que muita gente cantava aquela música, resolveram incluí-la no repertório da orquestra dos navios, espalhando-a para todo o Brasil.

Francisco Alves: ele quis cantar ‘Nervos de Aço’ para competir com Orlando Silva, que gravara ‘Brasa’ (Crédito:Divulgação)

Ao ver que a canção havia caído nas graças do público, uma gravadora a registrou, porém com autor anônimo. “Foi com grande dificuldade que consegui provar que a música era minha, porque ninguém acreditava que um gaúcho pudesse compor um samba tipicamente carioca”, afirmou Lupicínio, em entrevista no início dos anos 1960.

Se “Acaso Você Chegasse” também foi inspirada em uma traição — dessa vez, o compositor é que teria roubado a namorada de seu amigo carioca Heitor Barros.

Lupi, como era carinhosamente chamado, não escrevia letras, mas crônicas repletas de muita emoção. Reais ou inventadas, eram casos que podiam acontecer com qualquer um e que conquistavam a empatia de todos.

“Lupicínio era um grande contador de histórias”, afirma Faria. “Suas composições quebraram o esquema de verso e refrão, que era comum à época. No caso dele, a música é que tinha que se adaptar à letra, característica que tornava suas canções únicas.”

O destaque que Lupicínio ganhou também foi surpreendente pelo contexto regional. Para ser um sambista bem-sucedido, era preciso estar no Rio de Janeiro. Ary Barroso e Ataulfo Alves eram mineiros; Assis Valente e Dorival Caymmi, baianos. Mas todos eles haviam se mudado para o Rio, ao contrário de Lupi, que permanecera em Porto Alegre.

O gaúcho também se diferenciava pelos temas: ao contrário dos cariocas, que valorizavam a figura do malandro, quase sempre associada à vida no morro, Lupi era o porta-voz dos boêmios “pais de família”, que sofriam quando não conseguiam levar dinheiro para casa ou quando, por paixões arrebatadoras, se viam envolvidos em casos de traição.

Surgido em plena Era Vargas, sob o autoritarismo do Estado Novo, Lupi só se tornou um nome nacional após o fim do regime, em 1945.

O País passara a valorizar outras regiões além do Rio de Janeiro, principalmente o Nordeste. Inspirada nos ritmos nordestinos, “(Xote da) Felicidade”, lançada pelo Quarteto Quitandinha, estourou nas paradas. O embalo atraiu a atenção de Francisco Alves. Como Orlando Silva havia gravado “Brasa”, Alves brigou para ficar com a nova composição de Lupi, “Nervos de Aço”: “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma mulher? E depois encontrar esse amor, meu senhor, nos braços de outro qualquer?”, diz a letra. Mais uma obra-prima dramática do rei da dor de cotovelo.

Sucesso na voz dos outros

Maria Bethânia: timbre sob medida para regravar Lupicínio (Crédito:Divulgação)

Lupicínio Rodrigues morreu em 1974, mas sua obra segue viva nos registros da época e, principalmente, graças à reverência com que é tratado por grandes artistas da atualidade.

A campeã de regravações de sua autoria é “Vingança”, clássico de 1952. É possível encontrá-la na voz de Jamelão, Adriana Calcanhotto, Elza Soares e Maria Bethânia, entre outros. “Felicidade” é outra favorita: teve versões de Caetano Veloso e Moraes Moreira, passando por nomes do sertanejo, entre eles Leonardo e Sérgio Reis. Já “Nervos de Aço” ganhou releitura de diversos cantores, mas principalmente de dois representantes da Portela: Paulinho da Viola e Marisa Monte. Há quem defenda, no entanto, que sua composição mais cantada é outra: o hino do Grêmio, entoado por milhares de pessoas a cada partida da equipe gaúcha de futebol.