Coluna

O arrumador oficial

Crédito: Divulgação

Mentor Neto: "O tempo não melhorou muito minha habilidade em arrumar coisas, mas, mesmo assim, montei minha oficina em casa" (Crédito: Divulgação)

Por Mentor Neto

Tenho certeza de que na sua família tem um arrumador. Sempre tem.

Um avô, um irmão, um cunhado que não é família mas também atrai coisas quebradas.

Geralmente o sujeito tem uma oficininha em casa, cheia de potes com sobras dos trecos que trouxe de volta à vida
e expõe sob o álibi de um dia precisar, mas que, no fundo, são os troféus de suas conquistas.

O arrumador da família sente orgulho quando mandam coisas quebradas confiando em seu talento de ressurreição.

Humilde, invariavelmente diz que vai “tentar” arrumar. Que “tem que ver o que é”.

Mas todo mundo sabe que, no máximo em uma semana, o aspirador, o carburador ou a boneca de braço quebrado voltarão novinhos. As vezes até melhores do que antes.

Meu tio sempre foi o arrumador oficial da minha família.

Tinha um tapete persa no porta-malas do carro para a eventualidade de encontrar um carro quebrado no caminho e precisar entrar embaixo para conferir um vazamento.

Em seu apartamento, sequestrou um dos quartos e construiu sua oficina, para desespero de minha tia.

Converteu o que seria um ótimo escritório, sala de brinquedos ou de tv em uma oficina completa, composta por uma infinidade de caixas, caixinhas, caixotes, ferramentas e, é claro, objetos que teimavam em permanecer quebrados, pacientemente esperando a hora em que cederiam suas peças para uma missão maior.

Além de tudo isso, conseguiu enfiar lá dentro uma bancada enorme, de madeira pesada, com um torno, desafiando a estrutura do prédio.

É assim com arrumadores. Conseguem coisas que a física não explica.

Com o torno ele fabricava qualquer peça que por acaso não estivesse mais disponível.

Já eu, coitado, desde criança achava que tinha o mesmo talento e desmontava meus brinquedos para ver como eram por dentro.

Só que quando montava de volta, sempre sobrava alguma peça.

Se fosse brinquedo à pilha, invariavelmente não funcionava mais.

Até meu tio arrumar, claro.

Quando tinha uns 8 anos, ganhei um tanque de guerra. Brinquedo japonês, de controle remoto. Perguntei como
é que aquilo funcionava.

— É que dentro dele tem um monte de soldadinhos. — alguém respondeu, de farra.

Para que? No dia seguinte estava lá, sobre a bancada, um tanque de guerra respirando por instrumentos.
O tempo não melhorou muito minha habilidade em arrumar coisas, mas, mesmo assim, montei minha oficina em casa.

Ao invés do torno, uma impressora 3D.

Outro dia meu tio veio me visitar.

Se você também tem uma oficina, sabe que visitas de arrumadores sempre começam pelo cômodo que mais lhes interessa. É ali que atualizam as últimas novidades sobre as ferramentas, óleos, colas e parafusos.

Meu tio, que nunca tinha visto uma impressora 3D, ficou maravilhado com a capacidade de produzir peças e objetos em poucos minutos, com precisão milimétrica.

Toda família tem seu departamento de manutenção

Imprimi um barquinho vermelho. Ele pegou a peça nas mãos e colocou os óculos de perto para ver em detalhes.

— Bacana, hein? — girando o objeto com as mãos para uma análise mais apurada de 360º. Não se engane. Meu tio é discreto. “Bacana, hein?” deve ser entendido como um grito de euforia.

Aproveitando os óculos, começou a fuçar uma prateleira cheia dos meus fracassos de arrumador.

Achou uma sanduicheira, enferrujada, até.

— Isso deve ser a resistência. — diagnosticou.

— Pode levar…vê se você consegue arrumar…

Ele não vai conseguir.

Não é mais o mesmo. Não por falta de talento, mas por falta de paciência.

De um tempo para cá, não tem mais animação de arrumar o que não funciona. E a visão também não ajuda.

É sempre assim com os arrumadores. Cansam de arrumar as bugigangas alheias.

Mas levou a sanduicheira. Afinal, tem o orgulho. E porque, segundo ele, ferramentas são como as pessoas: se não usar, estragam.