Brasil

Guerra entre poderes: legislativo e judiciário brigam por ‘quem pode mais’

Pautas que mexem na composição do Supremo são sacadas às pressas e ameaçam o equilíbrio e a independência entre os Poderes. Elas não visam melhorar a Corte, o objetivo é emparedar ministros

Crédito: Brenno Carvalho

Rodrigo Pacheco (esq.) acompanha a posse de Luís Roberto Barroso na presidência do STF, dia 28: relação tumultuada (Crédito: Brenno Carvalho)

Por Marcos Strecker

O Supremo Tribunal Federal passou quatro anos sob ataque de Jair Bolsonaro, que encontrava na Corte um obstáculo para suas ações antidemocráticas. Numa prova de solidez das instituições, o STF resistiu ao assédio do Executivo e teve atuação fundamental para garantir a ordem constitucional. Passados apenas dez meses da transição de governo, o Supremo volta a ser alvo de ataques, desta vez do Legislativo, que desengavetou às pressas normas para limitar a ação dos ministros.

A mais recente investida ocorreu na quarta-feira, 4. A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou uma PEC que limita decisões monocráticas (individuais) e pedidos de vista nos tribunais superiores. Passou sem discussão do texto e por votação simbólica, num prazo recorde de 42 segundos.

O projeto precisa passar pelo plenário da Casa e também da Câmara, mas há um ambiente favorável nas duas Casas. Para o senador Oriovisto Guimarães (Podemos), autor da PEC, “o Supremo precisa aprender a ser um colegiado. Quando um único ministro decide sozinho, fica com um poder absurdo”.

“É o momento de iniciarmos a discussão e buscarmos a elevação da idade mínima para ingresso no STF e a fixação de mandatos.”
Rodrigo Pacheco, presidente do Senado

Esse debate não é novo. A rigor, discutir os limites institucionais dos Poderes à luz da experiência acumulada em 35 anos da Constituição seria uma providência saudável. Essa mesma PEC, porém, já havia sido apreciada e rejeitada em 2019. O que mudou o clima entre parlamentares é a insatisfação de setores do Congresso com decisões recentes do Judiciário.

A agenda de enfrentamento ao STF busca conter o avanço de pautas progressistas e ao mesmo tempo intimidar os ministros que estão julgando os golpistas do 8 de Janeiro. No final do mandato de Rosa Weber, que acaba de se aposentar, a Corte colocou em votação a descriminalização da porte e posse de maconha e a permissão para o aborto até as 12 semanas de gravidez.

Essas duas teses ainda estão em deliberação, mas tudo indica que serão aprovadas. No dia 27, foi derrubada a constitucionalidade do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, que afeta fazendeiros e irrita a bancada do agronegócio.

“Respeito, mas não concordo. O Supremo foi a instituição que melhor serviu à democracia e portanto não é hora de mexer com isso.”
Luís Roberto Barroso, presidente do STF

Essas pautas foram colocadas em votação antes de Rosa Weber passar a cadeira de presidente do STF a Barroso. Ele compartilha com a ex-colega o apreço pela agenda progressista e social, assim como dever agir o novo ministro a ser indicado por Lula.

Esse cenário é “sombrio” para os conservadores. Por isso, é como se o Legislativo conservador eleito em 2022, em que os bolsonaristas se destacam e as bancadas do “boi, da bala e da bíblia” têm voz ativa, quisesse dar o troco à pautas da esquerda que foram derrotadas para o Congresso e ressuscitaram pelas mãos do STF.

Há ainda as antigas queixas de excesso de ativismo judicial, atitude política por parte de ministros e decisões volúveis ao sabor do governo de plantão. Mas cercear um dos Poderes por oportunismo político não é nenhuma solução. Representa o caminho mais nefasto.

Davi Alcolumbre aprovou medida contra ministros em 42 segundos na CCJ (Crédito:Pedro França)

Pautas progressistas

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), queixou-se a aliados de que “conteve” o assédio bolsonarista durante o governo Bolsonaro, tendo sido surpreendido pela votação no STF de pautas que sempre foram prioritárias à esquerda.

Teria se sentido atropelado. Em reação às decisões do STF, ele já tinha botado para tramitar uma emenda de sua própria autoria que torna crime todo porte de drogas.

O Senado também aprovou em 27 de setembro um projeto de lei que regulamenta o marco temporário, na contramão da decisão tomada pelo Supremo no mesmo dia (ainda depende da sanção do presidente Lula).

Mas a reação mais forte ocorreu para interferir no funcionamento e na autonomia dos ministros do STF. Nesta semana, Pacheco prometeu colocar em discussão um mandato para os ministros (atualmente precisam sair apenas quando se aposentam, aos 75 anos), tema de uma PEC que está em fase de coleta de assinaturas.

Também acenou com a revisão da idade mínima para um ministro assumir vaga na Corte (é de 35 anos). O STF acusou o golpe. “A proposta transforma o Supremo em agência reguladora desvirtuada. Após vivenciarmos uma tentativa de golpe de Estado, por que os pensamentos supostamente reformistas se dirigem apenas ao Supremo?”, protestou o decano da Corte, Gilmar Mendes.

“Respeito, mas não concordo. O Supremo foi a instituição que melhor serviu à democracia e portanto não é hora de mexer com isso”, reforçou Barroso.

Sucessão no senado

Nos corredores do Congresso, não há apenas incômodo por uma suposta invasão de competências do Supremo sobre o Congresso. Existe uma mal ajambrada tentativa de influir na sucessão da presidência do Senado. Ela ocorrerá em 2025, mas o jogo já começou – e é pesado.

Pacheco quer ser sucedido por seu maior aliado, Davi Alcolumbre (União), senador do Amapá que já havia presidido o Senado no começo do governo Bolsonaro.

E Alcolumbre quer se viabilizar com o apoio da bancada bolsonarista do Senado, além de contar com a simpatia da base governista.

Alcolumbre foi o campeão de emendas no governo Bolsonaro. Negociador “duro”, fez dois ministros no governo Lula, Juscelino Filho (Comunicações) e Waldez Góes (Desenvolvimento Regional).

Mesmo assim, vive uma relação tensa com Lula. Presidente da CCJ, foi ele que pilotou a votação relâmpago de 42 segundos. O desejo de agradar a base bolsonarista também é compartilhado por Pacheco, que já se movimenta para as eleições de 2026, quando estará em fim de mandato e não terá mais a cadeira de presidente do Senado.

Sua maior aposta é concorrer ao governo de Minas Gerais, onde enxerga o apoio do público bolsonarista como crucial (o governador Romeu Zema, que disputa o público conservador e frequentemente elogia Jair Bolsonaro, já se reelegeu e não poderá concorrer).

Mas essa disputa não poderia afetar o equilíbrio harmônico dos Poderes, princípio fundamental preconizado pela Constituição. Ameaçar aprovar leis que constrangem os limites de um Poder para viabilizar pretensões políticas é um desserviço colossal à democracia.

Trata-se de uma guinada inesperada no comportamento de Pacheco, que sempre manteve boas relações com o Supremo (ele mesmo chegou a sonhar com uma cadeira de ministro no início da gestão Lula).

De 2019 a 2023, como presidentes do Senado, Pacheco e Alcolumbre receberam 85 pedidos de impeachment de ministros do STF. Os dois agiram de forma a garantir a estabilidade institucional e não deram seguimento aos pedidos. Isso pode estar mudando.

Entre as propostas em debate, há uma que tramita na Câmara e tem um poder mais corrosivo ainda. Ela permite ao Legislativo reverter decisões do STF.

Essa PEC prevê a possibilidade de congressistas anularem decisões do STF que tenham transitado em julgado, mas “extrapolem os limites constitucionais”.

Seria o fim do equilíbrio entre os Poderes e tiraria do STF o papel de ter sempre a palavra final sobre a Constituição. Barroso lembrou que essa medida já existiu em outra época histórica: na Constituição de 1937, da ditadura de Getúlio Vargas. “Não me parece um bom precedente”, reagiu diplomaticamente, mas de forma assertiva.

O ex-ministro do STF Celso de Mello foi mais enfático. Alertou que se trata de um “retrocesso histórico”, pois converte o Congresso em instância revisora.

“Após vivenciarmos uma tentativa de golpe de Estado, por que os pensamentos supostamente reformistas se dirigem apenas ao Supremo?”
Gilmar Mendes, ministro do STF

O governo Lula não quer entrar nessa briga, apesar de acompanhar com atenção. Para o ministro Alexandre Padilha, das Relações Institucionais, essas pautas não estão na “agenda prioritária” do Executivo no Congresso.

Os ministros do STF ainda apostam que Pacheco está “jogando para a plateia” e voltará discretamente à relação amistosa com o STF.

Barroso já demonstrou que busca uma relação harmônica com os presidentes da Câmara e do Senado e ressaltou o papel do Congresso de legislar, inclusive sobre a Constituição.

Na gestão Rosa Weber, inclusive, a Corte já vinha se adiantando a temas que agora os parlamentares correm para normatizar, limitando as decisões monocráticas e reduzindo os prazos para os pedidos de vista.

O Supremo deveria avançar nessas medidas que garantam maior transparência e reforcem o poder colegiado. Esse é o maior antídoto contra ataques de ocasião que visem vergar a democracia.