Cultura

Literatura infantil “sombria” é resgatada pelo cinema e o streaming

O autor britânico Roald Dahl, que teve sua obra reescrita para atender à pressão do politicamente correto, ganha incríveis versões para as telas feitas por Wes Anderson — o diretor se recusou a realizar mudanças e manteve os textos originais

Crédito: Divulgação

'A Incrível História de Henry Sugar': enredo em formato de fábula surrealista (Crédito: Divulgação)

Por Felipe Machado

Amados pelo público em todo o mundo, os livros do britânico Roald Dahl, sempre presentes nas listas de best-sellers, voltaram às manchetes no início de 2023 por outra razão: a editora Puffin, responsável por suas obras, anunciou que reescreveria suas histórias para remover trechos de linguagem considerada ofensiva. O objetivo era garantir que eles “poderiam continuar a ser apreciados por todos hoje em dia”. Entre as palavras cortadas, estavam adjetivos como “gordo” e “feio”. A decisão, que dividiu o mundo editorial, foi criticada por diversos artistas, entre eles o diretor Wes Anderson. “Ninguém que não seja o autor deveria modificar o livro de alguém que está morto”, disse, no Festival de Veneza.

Anderson não é apenas uma das milhares de crianças que cresceram lendo as tramas sombrias e divertidas de Dahl. O cineasta acaba de concretizar o sonho de levar às telas quatro adaptações de suas histórias menos conhecidas — e sem mexer em uma vírgula no conteúdo original.

A Incrível História de Henry Sugar, O Cisne, O Caçador de Ratos e Veneno, como todas as grandes obras, podem ser vistas como fábulas infantis, mas também permitem interepretações bem mais complexas, o que enaltece o valor de Dahl como criador.

Henry Sugar conta a trajetória de um mágico de circo que consegue ver sem abrir os olhos — e do farsante que descobre o segredo do mestre e usa esse talento para trapacear nos jogos de cartas.

Em Veneno, um homem rico acredita que tem uma cobra debaixo de seu lençol. Quando o médico levanta o tecido, não encontra nada. “Está me chamando de mentiroso?”, retruca, para em seguida atacar o médico e o acusar de ser de uma classe inferior. A ameaça em questão aqui é o veneno do réptil, mas também o da mentira e do preconceito.

Não são tramas fáceis, nem sempre há finais felizes. Mas é aí que reside a força e a atemporalidade desses textos: assim como na vida, o maniqueísmo é desnecessário mesmo quando o público é majoritariamente infantil.

O que torna esses curta-metragens memoráveis não são apenas as narrativas, mas a forma como elas são contadas. É aí que entra o estilo inconfundível de Wes Anderson.

Conhecido por seus longas de visual colorido e atuações milimetricamente coreografadas, ele usa o material quase surrealista de Dahl para extrapolar.

Essas produções contam com apenas quatro atores, que se revezam interpretando diversos papéis. Ralph Fiennes, Ben Kingsley, Benedict Cumberbatch e Dev Patel, figuras constantes nos filmes de Anderson, parecem crianças em um playground cinematográfico.

Suas atuações são caricaturais, de tão exageradas. E o roteiro favorece o ritmo de fantasia: os diálogos são encerrados com “disse ele” e “declarou ele” ao final das frases, como se os atores estivessem lendo um livro, não um roteiro de cinema. Homenagem a Dahl ou sofisticado recurso estético? Provavelmente ambos.

Roald Dahl: “complicado e tempestuoso”, segundo seu biógrafo (Crédito:Divulgação)

Em alta

Os filmes contam com a participação ficcional do próprio autor, interpretado por Ralph Fiennes. “Tentamos recriar o o quarto em que ele trabalhava exatamente como era”, diz Anderson. “Usamos objetos que o Museu Dahl nos emprestou, embora tenhamos evitado pegar muita coisa emprestada porque não queríamos perder ou danificar algo.”

O Roald Dahl Museum & Story Centre, em Buckinghamshire, é outra prova de que o sucesso de Dahl permanece superior às críticas. Mesmo localizado em uma pequena cidade inglesa, atrai visitantes de todo o mundo ao proporcionar uma experiência interativa que encanta crianças e adultos. Há manuscritos, ilustrações originais e outros objetos pessoais que permitem aos visitantes mergulharem no univesro criativo do escritor.

A prova de que Dahl está de volta aos holofotes, ao contrário do que gostariam seus detratores, é o anseio do público pelo lançamento de Wonka, com Timothée Chamelet.

O filme conta a infância de Willy Wonka, protagonista de A Famosa Fábrica de Chocolate e chega aos cinemas ainda esse ano. Até no Brasil seu trabalho está em alta: o musical Matilda, inspirado na obra homônima, estreia esse mês no Teatro Claro, em São Paulo.

Em sua biografia, o autor Jeremy Treglow descreveu Dahl como um homem “complicado, controverso e tempestuoso”. Isso revela apenas que, mais uma vez, a vida do criador se confunde com as suas criações.

Wonka, papel de Timothée Chamelet, e o Museu Dahl (abaixo), em Buckinghamshire: público fiel apesar dos críticos
(Robin Millard / Afp)

Autor banido vai ao streaming

Onde Vivem os Monstros, de Maurice Sendak, foi eleito em uma pesquisa realizada por especialistas indicados pela emissora britânica BBC como o maior livro infantil de todos os tempos. Em 2022, a biblioteca pública do Brooklyn, em Nova York, celebrou seus 125 anos divulgando uma lista em que cita a obra publicada em 1963 como a mais emprestada da história.

Apesar disso, o livro segue banido em diversos estados americanos. Por quê? Porque sua trama seria sombria demais para as crianças.

O enredo é aparentemente simples: após desobedecer os pais, o bagunceiro garoto Max é mandado para a cama sem o jantar. Ali sonha que está em um lugar repleto de monstros divertidos, mas que aos poucos incorporam sua tristeza.

Apesar da crítica dos conservadores, porém, a obra de Sendak também está sendo resgatada. O autor morreu em 2012, mas a AppleTV+ negociou com seus herdeiros os direitos não apenas de Onde Vivem os Monstros, que já tinha ganhado versão para as telas em 2009, pelas mãos do diretor Spike Jonze, mas de todos os seus 17 títulos. Entre eles estão The Night Kitchen, Outside There e Bumble-Ardy. Certamente será mais difícil censurar as ideias de Sendak no streaming.