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Direita tenta se reerguer, mas sucessão de Bolsonaro é uma incógnita, dizem analistas

Com Bolsonaro inelegível até 2030, personagens como Tarcisio de Freitas e Romeu Zema vão se firmando como seus herdeiros. Enquanto isso, a extrema-direita se mantém viva e mobilizada nas redes sociais

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Bolsonaro, na CPAC: ele não quer dividir espólio eleitoral (Crédito: Divulgação)

Por Gabriela Rölke

Preocupada por ter perdido protagonismo político e diante do fato de que sua principal liderança, Jair Bolsonaro (PL), está inelegível até 2030, a direita tenta se viabilizar, inicialmente para as eleições municipais de 2024, mas principalmente com vistas à corrida pela Presidência da República em 2026. Em São Paulo, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) transformou uma greve do transporte público, que afetou a vida de pelo menos três milhões de pessoas na Grande São Paulo, em palanque para seu projeto político. Com as privatizações como uma das principais marcas do seu governo, ele pretende entregar à iniciativa privada serviços essenciais como a operação de trem, metrô e saneamento. Provocou a ira de servidores do Metrô e da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), que pararam a cidade de São Paulo na terça-feira 3.

“Dizem que são contra as privatizações”, reagiu Tarcísio, em pronunciamento no Palácio dos Bandeirantes, sede do Executivo estadual. “Mas quais são as linhas que estão funcionando hoje? Aquelas concedidas à iniciativa privada.” E dobrou a aposta: “Isso mostra que estamos na direção certa”.

Leite condesado para apoiadores: mau gosto (Crédito:Divulgação)

“Tarcísio sabe como funciona a cartilha do bolsonarismo, como se pode obsevar nesse episódio; e segue à risca”, diz Emerson Cervi, cientista político da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Ele optou por manter-se no binômio ‘conservador nos costumes, liberal na economia’: leva a toque de caixa seu projeto privatista, ao mesmo tempo em que mantém um discurso conservador, tão ao gosto da extrema-direita, especialmente na área da segurança pública”.

À frente da pasta da Segurança Pública, está o ex-deputado bolsonarista Capitão Derrite, para quem o currículo de um bom policial precisa conter pelo menos três mortes em serviço. Já para a Secretaria de Políticas para Mulher, Tarcísio nomeou Sonaira Fernandes, espécie de “Damares Alves paulista” que já declarou que o feminismo é “ideologia imunda” que “mata mais do que guerras e doenças”.

Já o clã Bolsonaro não demonstra muita disposição de dividir o espólio do patriarca. Embora esteja fora das próximas disputas eleitorais, Jair Bolsonaro reinou soberano na última edição brasileira da Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), evento trumpista trazido ao Brasil por Eduardo Bolsonaro e, em 2023, patrocinado pelo PL de Valdemar da Costa Neto, atual partido do ex-presidente.

O capitão foi a estrela do evento, dias 23 e 24 de setembro, no qual houve distribuição de latas de leite condensado com sua imagem e a inscrição “Nosso eterno presidente desde 2019”.

Mas a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro também teve seu espaço garantido: como presidente do PL Mulher, defendeu pautas conservadoras e discursou contra o aborto.

A conferência foi realizada em Belo Horizonte. Convidado para participar, o governador mineiro Romeu Zema (Novo) mal tinha começado a discursar quando foi hostilizado pelos presentes. Assim como Tarcísio, Zema é apontado como possível presidenciável da direita para 2026.

“Acho difícil que surja uma liderança única nesse campo, e que seja apoiada por Bolsonaro nas próximas eleições presidenciais”, diz Emerson Cervi.

“É do perfil do ex-presidente desconfiar de todo mundo; ele teria resistência em apoiar a própria Michelle.”
Emerson Cervi, cientista político da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Cervi prossegue: “E não vai se dedicar tanto assim para transferir a terceiros seu capital eleitoral. Por isso, há uma possibilidade grande de que tenhamos uma pulverização, com mais de uma liderança.”

Tarcísio, na defesa das privatizações: liberal na economia, conservador nos costumes (Crédito:Andre Ribeiro)

“Não vejo hoje o eleitor mais fiel do bolsonarismo aderindo a figuras como Tarcísio de Freitas ou Romeu Zema”, avalia a antropóloga Isabela Kalil, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp/SP) e coordenadora do Observatório da Extrema-Direita.

Ela destaca que, embora na classe política haja uma disputa pelo lugar de Bolsonaro, a base social do movimento — o eleitorado — ainda não identifica lideranças que possam ocupar esse espaço: “Não temos hoje uma figura única identificada pela população como herdeira do bolsonarismo”.

Sobre a disputa por protagonismo nesse campo, a pesquisadora aponta pelo menos dois perfis de atuação política. Romeu Zema, por exemplo, se coloca de forma mais nítida como representante da extrema-direita, como ficou demonstrado em suas recentes declarações xenofóbicas em relação a estados do Norte e do Nordeste. “É um perfil que se assemelha mais com personagens como o deputado federal Nikolas Ferreira (PL), por exemplo, cuja performance bolsonarista é mais óbvia”, diz.

“Já Tarcísio, embora tenha uma postura mais discreta, mais contida, aparentemente mais republicana, aos poucos vai avançando num projeto muito parecido com o do próprio Bolsonaro.”

Enquanto isso, a extrema-direita segue no que sabe fazer de melhor: mantém viva e mobilizada a militância por meio das redes sociais, onde explora com maestria o que a sociologia chama de “pânico moral” — a sociedade estaria sob risco de se desmantelar caso haja avanços em discussões sobre temas como a descriminalização das drogas ou a liberação do aborto.

”Outro tema recorrente nessa agenda é a pedofilia”, lembra Isabela Kalil. Em linha com essa estratégia, o longa patrocinado por conservadores americanos O Som da Liberdade, sobre tráfico sexual de crianças, tenta se impor como líder de bilheteria também no Brasil.

Os números de fato são impressionantes — embora inflados de forma artificial, com ingressos distribuídos de graça. Mas, como é sabido, na estética bolsonarista os fatos são secundários. O que importa é a tal da “narrativa“.

Cena de ‘O som da liberdade’: bilheteria inflada artificialmente (Crédito:Santa Fe Films)