Aborto: entenda o que está em jogo na decisão que o STF terá de tomar
O Brasil está dividido, com favoráveis e contrários ao aborto colados, nas pesquisas, na margem de erro das opções. A decisão será do Supremo Tribunal Federal, que terá de pacificar questões morais, jurídicas, de saúde pública, teológicas e até filosóficas sobre o tema
Por Luiz Cesar Pimentel
RESUMO
• STF vota se interrupção da gravidez deve ser descriminalizada
• Pesquisa mostra que brasileiros estão divididos ao meio sobre o tema
• Legislação dos EUA estabeleceu parâmetros em 1973, mas foi revogada em 2022
• Levantamento aponta Brasil como um dos países mais conservadores em relação à questão
• Leia os argumentos prós e contras de especialistas
“Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia. O resto vem depois.” O raciocínio lapidar do escritor e filósofo franco-argelino Albert Camus pode facilmente ser reescrito para o Brasil de 2023 com o termo de atentado à própria vida substituído pelo aborto. Afinal, não há debate social que levante tantas posições distintas quanto a interrupção da gravidez. A abordagem pode ser moral, científica, religiosa, política, de saúde pública ou filosófica. Mas ao final o que prevalecerá é a posição dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, poder republicano para o qual restou a decisão diante da omissão do Legislativo, após os parlamentares driblarem 195 propostas que se encontram em tramitação.
Cabe ao STF a descriminalização ou não de artigo do Código Penal proibitivo que vigora desde 1940. E isso divide a opinião dos brasileiros quase ao meio — 43% são contra a legalização e 39%, a favor, tendo a margem de erro de 3,5 pontos na pesquisa da Ipsos (Global Views on Abortion 2023) os colocados em empate técnico.
É um índice que mostra queda na adesão popular, já que desde 2014, quando o levantamento iniciou, o Brasil só esteve abaixo de 50% de aprovação no ano passado, quando 48% das pessoas compuseram esse contingente.
O fundamental na questão não é somente ter opinião, mas informações completas para que a decisão contemple primariamente a saúde, individual e pública.
A Pesquisa Nacional de Aborto 2021 constatou que uma em cada sete mulheres até os 40 anos já realizou o procedimento. A maioria das que o fizeram voluntariamente cometeram ilegalidade, já que somente três condições excepcionais autorizam a interrupção da gestação no País:
• gravidez em consequência de estupro,
• anencefalia fetal (ausência total ou parcial de encéfalo)
• risco de morte da gestante.
Dentre as que interromperam a gravidez, 39% assumiram terem usado remédio para abortarem e 43% foram hospitalizadas após a ocorrência para finalizarem o procedimento, com curetagem ou esvaziamento do útero.
O retrato das mulheres que passaram por aborto mostra um perfil regular de brasileira:
• a maioria é bastante jovem, sendo que 52% realizaram a primeira interrupção com 19 anos ou menos,
• escolaridade até ensino fundamental,
• são predominantemente pretas, pardas ou indígenas,
• mais de 80% têm religião.
Além disso, há um risco grande quando assumem o procedimento, já que, quando falha a tentativa abortiva, uma em cada 28 internações acaba em morte da gestante.
Na média global, o Brasil se mostra bem mais conservador do que os outros 28 países onde a pesquisa foi realizada. A dianteira favorável traz cinco europeus: Suécia (87% de respostas afirmativas à legalização), França (82%), Holanda (76%), Espanha e Bélgica (com iguais 73%). “No oposto do levantamento, Brasil e Colômbia empatam na quarta maior rejeição à prática (39% favoráveis), superados apenas por Índia (36%), Malásia (29%) e Indonésia (22%).”
Principais argumentos contrários à descriminalização do aborto
• O direito à vida é a base para todas as outras garantias e ele começa na concepção
• Não resolve o sofrimento das mulheres. Existem formas de aliviá-lo sem interromper uma vida
• É uma questão de ordem filosófica e moral. Quem tem o poder de determinar o que é um ser humano?
• Tem consequências físicas e principalmente sócio-emocionais
• Geralmente decorre de gravidez indesejada. É preciso haver políticas públicas para o planejamento familiar
Até 12 semanas
No País, a decisão sobre a descriminalização contempla o período considerado como aborto precoce, as 12 semanas de principal fragilidade da gestação em que 85% das intercorrências espontâneas acontecem e que a interrupção pode ser conduzida de forma medicamentosa (pílulas que bloqueiam os hormônios da gravidez e o próprio organismo da mulher faz o esvaziamento do útero).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) contempla a extração ou expulsão do embrião ou feto dentro do período perinatal da gravidez, até 22 semanas, período em que ele não é considerado “viável”, ou seja, não conseguiria sobreviver por sí só, fora do útero.
O debate legal sobre o aborto é, literalmente, o mais antigo de que se tem conhecimento, já que o primeiro conjunto de leis conhecido, o Código de Hamurabi, na Mesopotâmia, por volta de 1750 a.C., contemplava a interrupção da gravidez condenando-a como crime contra interesses do homem e lesão contra a mulher.
Os séculos passaram e a própria Igreja Católica não tinha posição contumaz sobre a questão, tanto que no século IV um de seus maiores líderes, Santo Agostinho, opinou que se tratava de caso de pecado sexual e não de homicídio por considerar que até os 40 ou 80 dias de gestação o feto ainda não adquirira alma — em Cidade de Deus, Santo Agostinho considera como crime sexual o crime contra Deus.
A teoria da animação, da Igreja, só veio em 1869, quando ela fixou que o início da vida acontece na concepção.
Um dos primeiros países a legalizarem a prática foi a então União Soviética, que o fez nos anos 1920 — segundo o governo, como política social para garantir a saúde da mulher trabalhadora.
Como parte do grupo que possui legislação restritiva, realizar um aborto induzido no Brasil é ainda considerado crime contra a vida, conforme o Código Penal, desde 1984.
A gestante que provocar ou consentir com a ação pode ser punida com detenção de um a três anos. A pena oscila entre três e dez anos para o profissional que realizar o procedimento sem o consentimento da mulher, e de um a quatro anos quando é realizado com a anuência.
É isso o que está sendo tratado no STF, o que não significa que a partir de eventual decisão favorável o procedimento passe a ser disponibilizado no Sistema Único de Saúde (SUS).
Principais argumentos favoráveis
• Deve ser tratado como um problema de saúde pública
• Proibir a prática não significa que deixará de acontecer e 88% dos casos de aborto ocorrem em países em desenvolvimento
• Obrigar gestação por meio da lei é violar os direitos sexuais e reprodutivos da mulher
• Problema é interseccional. Mulheres em situação de vulnerabilidade são as que
mais abortam
• Estima-se que 94% das que procuram abortar foram vítimas de estupro. 29% delas tinham entre 12 e 19 anos
Definidor de parâmetro
O imbróglio sobre legalização teve caso determinante em 1973, quando a Suprema Corte dos EUA concedeu o direito às mulheres. A decisão ponderou a privacidade feminina e o direito do feto a partir de quando pudesse ser considerado humano (capaz de sobreviver fora do útero).
Acreditava-se em 28 semanas da gravidez. Pesquisas posteriores constataram que a régua deveria baixar para 22 semanas, pois existe apenas um caso conhecido de bebê que nasceu antes desse prazo e sobreviveu, ocorrido em julho de 2020, no Alabama.
E mesmo os 154 dias de gestação do feto não são garantia de sucesso vital, já que nessa fase somente 17% dos bebês nascidos nos EUA sobreviveram.
Há que se considerar também que até essa fase o córtex cerebral ainda não se formou — parte responsável pela maior fatia de pensamentos, sensações e sentimentos.
Também que o vínculo com a mãe, decisivo para o desenvolvimento saudável, não pode ser estabelecido, pois o prematuro tem que ficar conectado a aparelhos, já que sua pele é fina como papel e pulmões não apresentam capacidade respiratória por conta própria.
Diariamente, cerca de 830 mulheres são vítimas de complicações durante e após o período gestacional, sendo o aborto um dos principais catalisadores das mortes maternas em todo o mundo.
Além do pensamento, há estudos avançados sobre a capacidade do feto de sentir dor, ter emoções ou minimamente consciência. Foram obtidas imagens cerebrais nessa fase por meio de ressonância magnética especial e as conexões neuronais captadas são desprovidas da complexidade e riqueza que apresentam em órgãos formados.
Não é possível, porém, afirmar que os fetos não possuam essas capacidades. Além de os resultados não serem amplamente divulgados sob o risco de utilização desvirtuada por motivação política.
É esse todo o problema que a Suprema Corte brasileira decidiu absorver quando sua ex-presidente Rosa Weber se posicionou favorável à descriminalização, a poucos dias de se aposentar. A ação, aberta pelo PSOL, questiona a lei que consta do Código Penal e pede explicação se é compatível com os princípios da Constituição de 1988, já que no entendimento da proposta violaria dignidade, liberdade e igualdade.
O Poder Judiciário assume à frente do Legislativo a questão, contando as 195 propostas sobre o tema que tramitam entre Câmara dos Deputados e Senado Federal. Durante o processo, especialistas e técnicos poderão apresentar pontos de vista, dado que a ação passou por audiência pública.
Pesquisa do Instituto Datafolha apontou conservadorismo público na opinião, pois somente para 44% das pessoas consultadas o aborto é uma prerrogativa da mulher. Ou seja, que ela tenha o direito de decidir, enquanto 52% discordam.
O México passou por decisão parecida recentemente e o procedimento foi descriminalizado, no caminho contrário aos EUA, em que a decisão de 1973 que garantia jurisprudência foi revogada em junho do ano passado.
As posições invertidas criaram fluxo migratório, segundo o jornal The New York Times, de grávidas estadunidenses a cruzarem a fronteira mexicana para realizarem aborto naquele país.
Nenhum debate, por enquanto, é suficiente para mudar a estatística que aponta quatro milhões de abortos realizados anualmente entre América Latina e Caribe. Com ou sem concordância popular.
EUA mudaram opinião
Caso que legalizou procedimento e estabeleceu régua moral foi anulado no ano passado
O litígio que determinou a forma como se encara a questão do aborto aconteceu há exatos 50 anos, nos EUA, quando a Suprema Corte estabeleceu o direito constitucional da mulher à realização, no caso batizado Roe v. Wade.
A decisão se baseou em equilíbrio da virtude à privacidade da grávida com o direito hipotético do feto a partir do momento em que ele pudesse ser considerado uma pessoa, mesmo dentro do útero materno. Esse prazo foi considerado até a 28ª semana de gravidez.
De lá para cá, as pesquisas neonatais evoluíram e estabeleceram novo parâmetro, que é o de 22 semanas (adotado pela OMS) para considerar que o feto já apresenta característica de ser pensante e sensível, em condições de sobreviver fora do ventre.
A Suprema Corte voltou atrás em junho de 2022 e decidiu que o aborto não era mais um direito constitucional das mulheres no país.
Dos 50 estados norte-americanos, hoje 14 proíbem o aborto e outros 12 impõem restrições em intervalo entre a 6ª e 26ª semana de gestação. Cinco estados aplicam restrições leves, enquanto em 20 estados o aborto é legal.
Colaboraram Ana Mosquera e Elba Kriss