Índio não quer apito, quer a terra a que tem direito

Crédito:  Ton Molina/Fotoarena

Carlos José Marques: "O reconhecimento do que está previsto em Lei e do papel essencial das tribos, como autênticas guardiães da conservação das florestas e fauna, é tão elementar que custa acreditar na resistência daqueles que somente enxergam lucros na exploração predatória" (Crédito: Ton Molina/Fotoarena)

Por Carlos José Marques

Foi uma vitória histórica, beneficiando não apenas os povos indígenas como também os brasileiros em geral, no que tange ao conceito elementar da propriedade privada, princípio lapidar a reger o capitalismo aqui e no mundo. A derrubada do Marco Temporal pelo Supremo Tribunal corrige uma injustiça praticada há décadas e, de alguma forma, significa uma reparação. O veredicto do STF gera naturalmente uma série de conflitos e alimenta outros já em andamento. Os assentamentos irregulares devem passar por uma revisão jamais vista, envolvendo cifras gigantescas em indenizações. A decisão da Corte coloca em xeque o aval do Congresso favorável à limitação dos direitos dessas comunidades. Os parlamentares já disseram: não devem aceitar passivamente a interpretação legal dos magistrados. Movidos à base de lobby pesado – especialmente por parte das bancadas da bala e ruralista –, sinalizam agora a alternativa de uma PEC para mudar a Carta Magna e adaptar os artigos aos seus interesses. Sempre assim. Não gostam de capítulos da Constituição, resolvem mexer. É do mais puro casuísmo político o esquema em curso. Enquanto o planeta avalia as ameaças climáticas, a necessidade de garantir o uso sustentável da terra e a atenção aos povos originários (essencialmente vulneráveis), os deputados e senadores daqui pensam em adotar a direção contrária. Receita para o retrocesso. Envoltos na demarcação das terras indígenas estão fundamentos de respeito à biodiversidade, aos biomas, ao clima e à economia em geral, tudo que importa nos dias de hoje. O reconhecimento do que está previsto em Lei e do papel essencial das tribos, como autênticas guardiães da conservação das florestas e fauna, é tão elementar que custa acreditar na resistência daqueles que somente enxergam lucros na exploração predatória. É preciso bom senso. O triunfo do movimento indígena não representa apenas uma consagração de valores culturais e ancestrais. Implica uma repercussão maior, do ponto de vista de impacto geracional no sentido mais amplo. É urgente a mudança de enfoque e de prioridades quanto ao uso da terra, para uma transição econômica, energética e humanitária adequada aos novos tempos e desafios que se apresentam pela frente. A pacificação de interesses será difícil? Sem dúvida. Mas passava da hora de encarar tamanha pendência. Por falta de influência e força de articulação junto aos congressistas, os indígenas vinham de derrotas fragorosas nessa seara e a Justiça, obedecendo ao que estava previsto em Lei – e jamais cumprido – tinha, em algum momento, de prevalecer. Os ministros do Supremo mostraram-se magnânimos nas argumentações. O marco temporal foi negado, todavia os proprietários afetados – muitos deles de baixa renda e que ocuparam aquelas localidades por décadas a fio, é bem verdade – serão ressarcidos. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) estima em 867 o número de áreas indígenas impactadas pelo julgamento ou algo em torno de 63% do território que esses povos detinham, encarando pendências administrativas intermináveis. Na prática, o que lhes foi tirado à força durante séculos, à revelia dos preceitos constitucionais, terá de ser finalmente reposto. Dados do Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, publicado pelo Conselho no ano passado, dão conta de um quadro dramático que envolve, para além das tomadas de propriedades, um rastro de assassinatos, estupros e crueldades de toda ordem com o objetivo de subjugar essas populações. Aldeias inteiras chegaram a ser dizimadas e os moradores deixados à própria sorte, sem a devida proteção policial por parte do Estado. O drama se agravou rapidamente nos anos mais recentes, durante a gestão do governo Bolsonaro, quando o garimpo ilegal imperou, avançando de maneira indiscriminada, sem qualquer freio. O relatório de atividades do MapBiomas aponta que, somente em 2022, os garimpeiros tomaram, na base da brutalidade, com armas e facas, uma área equivalente à cidade de Curitiba inteira. Dá para se ver, os enfrentamentos nesse sentido assumiram proporções épicas, tais quais os das sangrentas batalhas medievais. O povo Yanomami, para ficar apenas em um exemplo, vivenciou no período mais recente provações desumanas, sendo quase exterminado, extinto com as suas reservas – peixes, rios, florestas – absolutamente contaminadas ou devastadas. O descalabro é imensurável e foi registrado em pleno século 21, denunciado ao Tribunal de Haia, que segue na investigação do caso. O genocídio Yanomami não encontra explicação em qualquer lógica civilizatória e figura como emblema das recorrentes explorações e ataques covardes praticados por aqui contra a nação indígena. Barrando a injúria do Marco Temporal, o STF acabou por reparar parte desse erro.