Cultura

“Com o sistema atual vai ser impossível viver de música”, diz Ivan Lins

Crédito: Fábio Cordeiro

Ivan Lins: meio século de uma premiada carreira e grande sucesso internacional (Crédito: Fábio Cordeiro)

Por Felipe Machado

Ivan Lins é um patrimônio da música brasileira — e não é de hoje. Sua trajetória impressiona: são mais de 600 composições, dez indicações ao Grammy e quase cem trilhas sonoras para filmes e novelas, muitas delas marcadas até hoje no imaginário do público. Aos 78 anos e com mais de meio século de carreira, é um dos artistas nacionais mais regravados no exterior. Entre todas essas versões, há uma que ele guarda com carinho especial: “Madalena”, que Ella Fitzgerald interpretou em 1972. Foi o pontapé para sua carreira internacional, que não parou mais. Embora os brasileiros o vejam como um ícone da MPB, no exterior ele é visto com jazzista. A fama entre os experts do gênero lhe rendeu um convite da Resonance Records, de Los Angeles, para gravar o novo álbum, My Heart Speaks. O músico carioca conversou com ISTOÉ sobre a indústria musical, criticou as plataformas digitais de streaming e lembrou os duros tempos da ditadura.

Gravadora norte-americana, parcerias internacionais… ainda considera o Brasil a sua casa?
Eu nunca deixei de morar no Brasil. Tenho fases onde passo mais tempo em determinados países. Tive meu período norte-americano, mas agora estou na minha fase europeia. Fico em Lisboa para facilitar o trabalho na Europa, e mais para frente vou decidir se me mudo para outro país. Mas a minha morada, de verdade, continua sendo o Rio de Janeiro.

Como a música brasileira é vista no exterior hoje? Acredita que, na percepção do público, essa imagem se alterou ao longo dos anos?
A música brasileira continua em alta. Há um apreço e um respeito muito grande pela MPB inspirada nos artistas dos anos 1960 e 1970, que consolidaram a qualidade da nossa produção no mercado internacional. Foi quando veio a Bossa Nova, a Pós-Bossa Nova, o Tropicalismo. Depois, nos anos 1970, veio a minha geração, com João Bosco e Djavan. Todos nós seguimos a influência daquela música. Já os anos 1970 foram importantes por causa do crescimento do samba, que hoje também é muito apreciado, graças a nomes como Martinho da Vila, Paulinho da Viola e outros grandes compositores.

E as novas gerações? Há espaço para nomes recentes?
Sim, quando seguem essa trilha eles conseguem entrar com mais facilidade no mercado internacional. Estou falando de um nicho mais sofisticado, não tão popular, como a Anitta, o sertanejo e o pagode, que tem um destaque maior nas comunidades brasileiras fora do País. Isso é bem compreensível, aliás, porque existe a saudade, é natural. Mas na visão dos estrangeiros, o que prevalece mesmo é a música inspirada no que era feito nos anos 1960 e 1970, com uma roupagem e melodia mais moderna, mas melódica e harmonicamente inspirada naquelas gerações.

Seu novo álbum, o disco de jazz My Heart Speaks, contou com participações de diversas artistas estrangeiras. Como essas convidadas foram escolhidas?
Foram sugeridas pela gravadora Resonance Records, de acordo com o meu histórico artístico. A Tawanda foi ideia do produtor George Klabin, que achou legal ter uma cantora nova. Dianne Reeves e Jane Monheit são amigas de longa data, já dividimos o palco muitas vezes. O arranjo de cordas foi do alemão Kuno Schmid. Deu tudo super certo.

“Vejo a mudança de governo com otimismo, porque começou logo com a volta dos investimentos e do Ministério da Cultura, com Margareth Menezes à frente” (Crédito:Divulgação)

Sua carreira sempre foi marcada pela MPB, mas de uns tempos para cá seu estilo se aproximou do jazz. Foi influência da vida no exterior? Como foi essa transição?
Esse novo disco foi uma proposta específica que recebi da gravadora Resonance, que tem um selo dedicado ao estilo. Mas não é novidade, tenho esse lado há muitos anos, meu show sempre tem improvisos e um rastro nessa linha. Sigo a influência do jazz nos acordes, na harmonia, nas apresentações dos solos dos músicos. Essa é uma coisa que eles já sabiam.

Nos EUA e na Europa seu som é classificado como jazz?
No exterior meus discos costumam ficar expostos nas prateleiras dos instrumentistas, sou muito convidado para eventos de jazz. Tenho trabalhado muito na Europa por conta dos festivais do verão europeu, que são muitos. No Brasil, às vezes meu trabalho é visto até como pop.

A cultura brasileira passou por um período sombrio nos últimos anos. Sua visão do cenário atual é positiva?
Certamente está mudando para melhor, mas não é uma mudança rápida. Tenho visto artistas novos influenciados pela bossa nova. Me dá a impressão de que o estilo está voltando, mas de uma outra maneira, com uma sonoridade diferente, mais moderna. Outro dia vi a Luísa Sonza cantando uma melodia com arranjos nesse estilo, achei muito legal. É muito bacana ver esse respeito nas novas gerações. Eles têm outras informações e sabem incorporar o que a tecnologia oferece. Com isso, podem dar outras cores a uma música que já fez muito sucesso no passado. Acho essa forma de se renovar extremamente interessante. A qualidade varia, mas o fato de quererem fazer já é um passo enorme.

Em relação à política cultural, como vê a transição do governo Bolsonaro para o de Lula?
Vejo a mudança de governo com otimismo, porque começou logo com a volta dos investimentos no setor e no Ministério da Cultura, com Margareth Menezes à frente. Isso era uma coisa que havia praticamente desaparecido nos últimos quatro anos. O que aconteceu, aliás, foi um absurdo. Se houvesse mais quatro anos daquele governo, acho que iam conseguir eliminar a cultura brasileira, seria algo bastante melancólico. Tivemos até um militar, que não sabia nem engraxar o próprio coturno, ocupando a Secretaria de Cultura.

Nos anos 1990 o senhor criou a Velas, gravadora independente que fez história ao injetar uma nova consciência na indústria musical tradicional. O que acha do cenário atual, cada vez mais dependente da tecnologia?
A Velas é a mãe de todas essas gravadoras independentes, da Trama à Biscoito Fino. Antes disso já existiam selos independentes, mas eram ligados a grandes distribuidoras. A Velas foi a primeira realmente independente. Tínhamos todos os departamentos e distribuíamos discos de outros selos também. Quando a Velas provou que era possível sobreviver, começaram a aparecer as outras. Fechamos por problemas administrativos, mas foi uma ideia maravilhosa.

Hoje as plataformas de streaming são tão poderosas que podem se dar ao luxo de pagar uma remuneração absurdamente baixa aos artistas e todo mundo aceita. Como vê essa questão? As gravadoras poderiam incentivar a divisão mais justa dos lucros?
As gravadoras são aliadas das plataformas, não vão fazer nada para mudar o sistema atual. Atuam de forma unida, ficam com 80% do mercado. De todo o dinheiro que se ganha na internet, a maior parte fica com as gravadoras e as plataformas. O resto fica para nós, os compositores. Fomos jogados para o final da fila, somos os últimos a receber. As plataformas dividem o lucro com as multinacionais, porque elas são proprietárias dos catálogos e fizeram um acerto bem vantajoso.

Há uma saída para essa situação?
Não sei. Alguém teria de intervir, o governo interfere, a ONU, algum órgão internacional. Precisam acabar com essa divisão injusta, porque acho que é um assalto à mão armada. É uma falta de respeito com quem produz a matéria que enriquece essas empresas. As plataformas ficam ricas com o que a gente faz e nos botam no final da fila. É um problema sério e a tendência é piorar com a chegada da inteligência artificial. Já está ruim e, se não tomarem providências sérias, jurídicas, de proteção, de leis, a coisa vai ficar inviável. Com o sistema atual vai ser impossível viver de música.

Durante a ditadura, sua canção O Amor é Meu País foi acusada de ser ufanista. Hoje vemos um renascimento distorcido do nacionalismo. Cantaria essa música novamente?
Essa visão muda sempre, depende de quem está no poder. Mesmo nos últimos quatro anos, continuei cantando “O Amor é Meu País” porque entendi que estava dando importância demais para quem não havia entendido a letra. Não é uma canção ufanista, é sobre o amor, como qualquer outra. A infelicidade foi o último verso, que dizia que eu era um “cidadão do amor”, não do Brasil. Essa foi inclusive uma imagem que, quando a música foi inscrita no Festival Internacional da Canção, em 1970, passou despercebida e eu recebi muitos elogios dos jurados que a classificaram.

O Brasil vivia uma fase ufanista, a Seleção Brasileira conquistava o tricampeonato no México…
O presidente na época, o general Emílio Garrastazu Médici, divulgava os slogans “Ninguém segura esse país”, “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”, essas coisas. A palavra “País” ganhou uma conotação muito nacionalista. Começaram a me criticar, fiquei uns dois anos traumatizado. Quem me salvou foi o presidente Sindicato dos Operários de Volta Redonda.

“A gente sabia que o negócio estava muito feio. O general Médici foi o pior de todos da ditadura, o nosso Pinochet. Minha canção ‘Corpos’ é um registro histórico daquela época” (Crédito:Folhapress)

Como foi esse episódio?
Fui fazer um show no estádio para dez mil pessoas e não cantei “O Amor é Meu País”. Havia tirado do repertório quando começaram a me criticar. As pessoas pediam, mas eu não cantava, estava traumatizado. Quando acabou o show, o presidente do sindicato da CSN entrou no camarim e me disse: “O senhor não cantou ‘O Amor é Meu País’ e eu sei o porquê. Mas ela não pode ficar de fora, é a canção mais linda. O povo precisa de amor nesse período barra pesada e quer ouvir você cantá-la”. Foi uma lição de moral, ele me dizendo que o povo sabia que era uma canção de amor, não sobre política. Daí eu a incluí no repertório novamente.

Você chegou a ser censurado?
Há duas músicas no disco novo, ‘Não há Porque’ e ‘Corpos’, que são daquela época. São de 1975, porque em 1974 o presidente ainda era o Médici, e as letras iam ser censuradas. Esperamos entrar o general Ernesto Geisel, que era mais leve, e aí as gravamos. São bem políticas, principalmente ‘Corpos’. Tínhamos medo, porque ela diz que “existem mais corpos vivos e mortos entre eu e você”. Estava falando sobre os assassinados nos porões da ditadura. A gente sabia que o negócio estava muito feio. O general Médici foi o pior de todos os militares, o nosso Pinochet. Minha canção ‘Corpos’ é um registro histórico. Hoje as pessoas querem saber o que eu queria dizer com aquilo. Na época, eu não podia explicar.