Comportamento

Os enigmáticos túneis sob Buenos Aires

Reforma em um casarão arruinado abriu rede subterrânea e portal da história argentina — responsável pela descoberta mantém o tesouro como museu privado há 38 anos

Crédito: Lucia Galluzi

Em 1985, Jorge Eckstein (abaixo) descobriu um um dos sítios arqueológicos mais importantes de Buenos Aires: o portal para um labirinto subterrâneo, que vem sendo restaurado desde então (Crédito: Lucia Galluzi)

Por Luiz Cesar Pimentel

Em 1985, o engenheiro químico Jorge Eckstein comprou uma mansão em ruínas no bairro de San Telmo, local do primeiro assentamento em Buenos Aires, em 1536, e que mantém até hoje o charme de tradição da cidade. A ideia era transformar o espaço em restaurante. Ao iniciar a fundação no terreno, encontrou uma rede de túneis que o fez abandonar a ideia inicial e criar um museu subterrâneo que conta tanto a história da capital quanto a dos argentinos.

Até agora foram restaurados 150 metros de túneis, embaixo da casa de 1830 e de vizinhas. Eles serviam como canais de escoamento de córrego que passava por ali para o Rio da Prata.

As inundações eram constantes, então, por volta de 1780, começou a ser construída uma rede de passagens sob as propriedades. Daí o nome el zanjon, que significa “valas ou fossos grandes”.

As galerias formam parte de intrincada teia de túneis que data do início do povoamento de Buenos Aires. Entre 1661 e 1767, foi construída uma rede de ligações sob a área onde fica San Telmo pelos jesuítas para fugirem de perseguições de indígenas, que passavam por tentativa de conversão e domínio.

Eckstein: rede de túneis é “combinação de genética e acidente” (Crédito:Divulgação)

Desde 2004, os canais foram convertidos no museu privado “El Zanjón de Granados”. A mansão adquirida por Eckstein era originalmente familiar, onde seis escravos viviam em um dos 20 cômodos.

O achado conta também a história do tango, que à ocasião nascia como manifestação de música e dança proibidas em público. Somente era conduzido em bordéis, que os argentinos chamam de quilombos, ou em ambientes privados pelos escravos — a palavra tango significa “lugar fechado”.

Em 1860, porém, uma epidemia de febre amarela em San Telmo levou os moradores originais a abandonarem a região para irem para o Norte da cidade.

Durante 20 anos Eckstein não sabia o que faria da descoberta, apenas que tinha a missão de preservá-la. Quando recebeu a visita de um arquiteto belga, em 2004, perguntou ao profissional se gostaria de fazer o tour com explicação histórica, arqueológica, arquitetônica ou filosófica. Ao responder a última opção, o químico teve o clique de qual era sua atribuição.

“O museu é uma combinação de genética e acidente. Acidente, porque em qual outro lugar do mundo você encontra sítios antigos como este? E genética, porque nós, argentinos, descendemos de europeus com séculos de luta histórica e, ao mesmo tempo, de penúria”, diz Eckstein, atribuindo a preservação do local a esses dois itens.

A visita dá a sensação de fazer parte da história e pisar em outra era enquanto se caminha. É um projeto de conciliação entre a preservação da memória e o propósito filosófico de seu descobridor, daí a manutenção do espaço em caráter privado.

Hoje o museu tem sua receita originada de ingressos, mas também realiza eventos de porte reduzido, para evitar danos. A rede de canais é bem iluminada e corre projeto de preservação da memória em paralelo, pela narração de histórias do local por antigos habitantes, já que até meados da década de 1980 o espaço funcionou como cortiço.

O esmero é justificado por Eckstein. “Qualidade não se pode pagar com dinheiro; você só pode pagá-la com tempo, e é o que dedicamos aqui. Não é o destino que importa, mas como se faz a viagem.”