Brasil

Lula na ONU: o discurso e as negociações que seduziram gregos e troianos

Se o presidente Lula conseguiu arrebatar a atenção com um discurso universal e inovador na ONU, o encontro bilateral com o colega americano Joe Biden foi de importância fundamental para o futuro dos dois líderes e mesmo de correlações políticas globais

Crédito: Ricardo Stuckert / PR

Discurso de Lula na abertura da 78ª Assembleia Geral da ONU foi interrompido sete vezes por aplausos (Crédito: Ricardo Stuckert / PR)

Por Denise Mirás

À parte a volta do Brasil como parceiro estratégico na geopolítica internacional, como ficou claro na recepção ao presidente Lula na 78ª Assembleia Geral da ONU, o que se viu durante a semana em Nova York foram pontos fundamentais do que o mundo pode esperar do País nos próximos anos.

Das questões pontuadas mais evidentes, encadeadas no discurso que entra para a história como inédito, “sete vezes interrompidos por aplausos”, as cobranças mais veementes foram voltadas para o que hoje se chama oficialmente de “trabalho decente” e uma reforma da governança global que de fato atue sobre as questões climáticas com urgência.

Lula recebeu ao menos 60 pedidos de audiência, sendo 50 de chefes de Estado e dez de instituições internacionais, segundo a diplomacia brasileira, e conseguiu participar de importantes encontros bilaterais, começando pelo colega americano Joe Biden e abrindo brecha também para o ucraniano Volodymyr Zelensky, sem ir além do que vem reafirmando: o compromisso de negociar pela paz.

Como destaque, o encontro de Lula com Biden se mostrou em defesa veemente da Meta 8 da Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável, que trata sobre Trabalho Digno e Crescimento Econômico.

Por razões semelhantes – e mesmo políticas, contra a extrema-direita, como Lula alertou –, o que se viu foi um “nivelamento de jogo”, como definiu Roberto Goulart Menezes, professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB.

Biden, que segue para a reeleição à Presidência dos EUA em 2024 e poderá enfrentar Donald Trump novamente, tem todo interesse na agenda trabalhista, depois de acionar várias ações que acabam barradas pelo Congresso, e o encontro bilateral com Lula jogou holofote no tema.

Biden chegou a dar um “soquinho” no ar e até sorriu quando as palavras do colega brasileiro reforçavam apoio a suas mensagens, como a importância dos sindicatos na formação da classe média americana. Biden, que aumentou imposto para quem recebe mais de US$ 400 mil/ano, ganhou estofo para pressionar o Congresso: sua proposta de dobrar o salário/hora americano para US$ 15, por exemplo, nunca chegou a ser votada, como lembra Menezes – continua em US$ 7,25/hora, conforme o Relatório Mundial de Desigualdade Social de 2022, que detectou aumento de apenas US$ 200 no salário médio do país entre 1980 e 2016.

Esse é um ponto nevrálgico, e não apenas para Biden. A Meta 8 da ONU para 2030 também pressupõe eliminação de trabalho infantil e escravo, como nos casos de denúncias que havia contra empresas que se isentam de fiscalização e responsabilidades por subcontratadas.

Tornaram-se conhecidos os relatos desse tipo de atuação por parte de Zara e Nike em países do Oriente, mas também há casos brasileiros como de exploração de costureiros no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, ou mais recentes, como dos apanhadores de uvas em vinícolas gaúchas.

Para Lula, a conversa com Biden foi de encontro à proposta de reindustrialização do Brasil e de geração de empregos, parte de suas promessas de campanha. O presidente se empenha em atrair mais investimentos americanos, mas já sinalizou que o interesse é pelo “trabalho decente”, termo que pressupõe contratos diretos entre empresas e empregados, por exemplo, e é contrário à “uberização” extenuante e mal remunerada.

O professor da UnB explica que são US$ 122 bilhões em “estoque de investimento” hoje, de tudo o que as empresas dos EUA têm no Brasil.

“É um indicador do vínculo econômico de um país com o outro — que não devem tolerar o que agora se chama de ‘capitalismo de plataforma’. São serviços temporários, como dos entregadores por aplicativos, que não têm direitos básicos em um mundo que, mesmo integrado à Inteligência Artificial, está sob uma enxurrada de desemprego e afundando em crises sociais.”

O professor exemplifica citando pesquisadores da UCLA que detectaram uma pandemia de overdose de Fentanil, que está levando a 300 mortes/dia nos EUA.

Bem amarrado

Sobre o discurso “completo, apurado, refinado e muito bem amarrado” de Lula na abertura da Assembleia Geral da ONU, Menezes observou que, pela primeira vez, o país deixou clara sua insatisfação quanto à ordem internacional e cobrou reformas de instituições que reproduzem desigualdades.

Falou da distorção do FMI (que em 2022 disponibilizou US$ 160 bilhões a países europeus e US$ 34 bilhões para os africanos) e blocos que surgem “na esteira do imobilismo”, como os BRICS.

Enumerou a necessidade de:
• combate à fome (que hoje atinge 735 milhões de pessoas),
• combate à desigualdade em suas diferentes dimensões, que vem conectada da infância;
• atitudes impositivas que, de fato, encarem a urgência das questões climáticas,
• um tema inovador: a justiça tributária.

“Não foi uma lista de reclamações, mas de temas conectados do Brasil com o mundo: desmatamento, racismo e outras desigualdades. Falou dos esquecidos do mundo, da Palestina ao Haiti, do risco de golpe na Guatemala, do embargo a Cuba, do Iêmen e países africa­nos”, especificou o professor.

“Mencionou Julian Assenge, detido em Londres, quando fez a defesa da liberdade de imprensa e da democracia contra extremistas, e ainda disse que são as grandes potências que estão fazendo as guerras.”

Sobre a fala na abertura da Assembleia Geral, Menezes ainda destacou o universalismo, “peça fundamental na política externa brasileira”, e resumiu: “Lula misturou razão e emoção na ONU, com um discurso inovador”.

DIPLOMACIA BRILHA
Ministro das Relações Internacionais, Mauro Vieira destacou interesse de pelo menos 60 chefes de Estado e instituições internacionais em falar com Lula em Nova York

(Jim Watson)

Destaques na semana foram os encontros entre Lula e Biden, com o lançamento da “Iniciativa Global Lula-Biden para o Avanço dos Direitos Trabalhistas na Economia do Século XXI”, e com o ucraniano Volodymyr Zelensky a portas fechadas, por mais de uma hora.

De acordo com Dmytro Kuleba, ministro de Relações Exteriores, a conversa foi “calorosa e franca”.

Mas o Brasil não ultrapassou a linha de se oferecer para trabalhar com um grupo que negocie pela paz, tratando de outras questões posteriormente.

Com o primeiro-ministro alemão Olaf Scholz e o presidente suíço Alain Berset, o tema foi o acordo entre Mercosul e União Europeia, e com o colega paraguaio Santiago Peña, a energia da Usina de Itaipu.

Lula com Biden e Scholz: temas foram de política global a relações entre blocos como Mercosul e União Europeia (Crédito:Michael Kappeler)

O ministro Mauro Vieira destacou reunião do G4, com Japão, Alemanha e Índia, que pleiteiam vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU com poder de veto.

Fernando Haddad, da Fazenda, anunciou a emissão de “títulos verdes” na Bolsa de Nova York, ao lado de Marina Silva, do Meio Ambiente, que espera a captação de RS$ 10 bilhões.

Lula chegou a Nova York vindo de Havana, onde esteve na Cúpula do G77+Cuba, com o presidente Miguel Diaz-Canel – que agradeceu o brasileiro por condenar o embargo dos EUA contra seu país.

Com Zelensky, Lula se alinhou contra a invasão russa mas insistiu com o ucraniano por negociações (Crédito:Ricardo Stuckert / PR)