Cultura

Dois cineastas brasileiros vão em busca da vida como ela era

Dois dos maiores diretores brasileiros da atualidade trocam a ficção por excepcionais documentários sobre suas origens

Crédito: Kristy Sparow

Kleber Mendonça Filho: “Não brigo com o tempo, ele passa e as cidades mudam” (Crédito: Kristy Sparow)

Por Felipe Machado

Resumo
* Documentários em salas de cinema não são comuns. E dois grande diretores brasileiros optam pelo formato, mergulhando no passado atrás das próprias origens.
* Em ‘Retratos Fantasmas’, o pernambucano Kleber Mendonça Filho volta à casa onde cresceu, em Recife, para criar uma sofisticada metáfora de resgate da memória.
* Já Karim Aïnouz, filho de uma cearense com um argelino, viaja até o país africano para filmar ‘O Marinheiro das Montanhas’, em que aborda a relação entre a guerra da Argélia e o casamento de seus pais

Entrevista com Kleber Mendonça Filho

“NÃO BRIGO COM O TEMPO, ELE PASSA E AS CIDADES MUDAM”

O diretor teve seu filme ‘Retratos Fantasmas’, sobre os cinemas do centro de Recife, escolhido para disputar uma vaga nas indicações do Oscar em 2024.

Retratos Fantasmas mostra o apartamento onde você cresceu, em Recife, entre outras cenas familiares. Por que quis fazer um projeto tão intimista?

Meus outros filmes também abordam arquivos e memórias, mas de outra forma. Agora, apesar de ter minha voz como narrador, não vejo como uma experiência tão diferente assim. Não é um documentário sobre mim, é sobre o apartamento. É um filme sobre o espaço físico e como ele vem mudando ao longo do tempo.

Quanto tempo levou para filmá-lo?

Ele foi construído aos poucos. Passei muito tempo planejando como fazê-lo, e sete anos dedicados a filmá-lo.Seu filme mostra a decadência dos cinemas do centro de Recife. É uma crítica a esse novo mundo digital? Não, são observações. Não brigo com o tempo, ele passa e as cidades mudam. A indústria cultural também altera formatos. É uma característica do capitalismo: para que um novo padrão se consolide, é preciso destruir o anterior.

“Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho: longa sobre os cinemas do centro de Recife foi escolhido para disputar uma vaga nas indicações do Oscar em 2024 (Crédito:Divulgação)

Como a tecnologia impactou os cinemas e o centro das cidades?

Isso aconteceu não apenas em Recife, mas em São Paulo, Nova York, Munique. As grandes salas de cinema desempenhavam papéis interessantes. Cabiam 800, 1200 pessoas. Eram responsáveis pelo encontro de milhares de pessoas, que traziam vida cultural ao centro das cidades. Hoje temos o desafio de pensar como revitalizar os centros. São Paulo enfrenta isso com a cracolândia, entre outros problemas.

Por que achou importante contar essa história agora? Foi nostalgia?

Fiz 54 anos. Acho que nessa idade temos a sensação mais clara do tempo passado e percebemos melhor as alterações de percurso. Cresci no período militar, depois veio a democracia, Lula, Bolsonaro, Lula novamente. As fases ficam mais distintas, mais claras.

Entrevista com Karim Aïnouz

“NA VIAGEM À ARGÉLIA, DESCOBRI UMA CASA QUE NUNCA FOI MINHA”

O diretor foi até o país africano para filmar o road movie ‘O Marinheiro das Montanhas’.

O que fez voltar para esse passado?

Acho que tudo começou com meu sobrenome. Se fosse diferente, eu jamais teria feito essa viagem. Sempre quis saber de onde veio “Aïnouz”, sonhava em ir à Argélia para entender. Quando as pessoas vão ao cemitério visitar parentes, vêem diversas inscrições com seus sobrenomes. Em Fortaleza não existe nenhum “Aïnouz”, então sempre fui muito curioso, não existe no Brasil.

Por que fez a viagem apenas agora?

Esse desejo sempre me assombrou, mas o tempo foi passando. Nas décadas de 1980 e 1990 a Argélia passava por sérios problemas, seria impossível. Essa era uma viagem que eu sempre quis fazer com minha mãe, mas ela faleceu em 2015 e decidi ir sozinho.

Karim Aïnouz: “Documentário é uma aventura” (Crédito:Andreas Rentz)

A ideia era fazer uma filme sobre a origem familiar ou sobre a Argélia?

Viajei sem saber se valeria fazer o filme ou não. A gente nunca sabe, mas na viagem descobri uma casa que nunca foi minha. Um bom “road movie” é mais sobre o percurso do que sobre o destino. Quando analisei as imagens, vi que tinha um material interessante em mãos.

‘O Marinheiro das Montanhas’, de Karim Aïnouz: viagem que deu origem ao “road movie” seria realizada com a mãe do cineasta, mas ela faleceu em 2015 (Crédito:Divulgação)

Como a guerra influenciou sua vida?

Minha mãe fez doutorado nos EUA, onde conheceu meu pai. Ela voltou grávida para o Ceará e criou o filho sozinha. Ela só conheceu meu pai porque ele havia fugido para estudar. A ideia dele era voltar e trabalhar na Argélia após a independência. Vi que havia ali um cruzamento entre a história com “h” minúsculo, da minha família, com a história com “h” maiúsculo.

Aos 57 anos, buscar as origens tem a ver com essa fase?

Tem alguma coisa da idade, sim. Quando você entra no segundo tempo, você olha de forma diferente para o primeiro. Documentário é uma aventura. Iniciar um projeto, que você não sabe no que vai dar, traz um novo fôlego.