Comportamento

A quem serve uma PRF assassina?

Desde 2019 a quantidade de operações da Polícia Rodoviária Federal triplicou, assim como o número de vítimas fatais

Crédito: Divulgação

Agentes do Bope e da PRF comemoram ação que resultou em oito mortes, no Complexo da Penha, Rio, em 2022. “Sem condições de sair para trabalhar nessa chuva de balas”, escreveu um morador numa rede social (Crédito: Divulgação)

Por Luiz Cesar Pimentel

 

RESUMO

• A Polícia Rodoviária Federal está em xeque após a morte de uma menina de três anos – ou é extinta ou é reformulada
• Um ponto, porém, é pacífico: o rastro de sangue deixado pelo caminho é intolerável

 

No feriado de 7 de setembro, quando a família voltava do Rio de Janeiro para Petrópolis, Heloísa dos Santos Silva, de três anos, foi alvejada por dois tiros de fuzil, na nuca e ombro, no banco de trás do carro em que viajava. O País acompanhou seu estado de saúde até que, nove dias depois, ela faleceu. Foi o primeiro caso de violência e grande repercussão envolvendo a Polícia Rodoviária Federal (PRF) não festejado nas redes sociais pela família Bolsonaro desde 2019, quando Jair assumiu a Presidência, encheu de benesses a força e deflagrou o processo de transformá-la em uma máquina de matança. Em termos comparativos, até 2018 a PRF tinha a função de garantir a segurança viária de 75 mil quilômetros de estradas e rodovias federais no País e era responsável ao final de cada ano por média de dez mortes em ações de enfrentamento. Sob o governo anterior, a função de repressão foi confundida com participação em combates. A missão ganhou linha extra de salvaguarda para abater — e o número de óbitos cresceu até chegar a 44 em 2022.

3.300 operações em 2020 pularam para 9.700 em 2022

Genivaldo foi abordado por estar sem capacete: morte por asfixia (Crédito:Divulgação)

O Ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, pretende que o caso de Heloísa represente uma guinada na corporação. “Medidas estão sendo tomadas relativas à formação desses policiais”, afirmou.

A tarefa de Dino e do atual diretor-geral da PRF, Antônio Fernando Oliveira, irá consumir mais que boa vontade. A morte de Heloísa não demonstra ser um acontecimento fortuito, mas uma prática que contaminou os profissionais desde que lhes foi concedida uma espécie de licença para matar.

Sem contar a forma como agem no desdobramento das ações, como a visita de 28 policiais da corporação ao hospital em que a menina lutava pela vida para vasculhar o carro alvo dos projéteis e, segundo o procurador da República Eduardo Benones, “em tentativa inequívoca de intimidar testemunha e incutir nela a versão sustentada pelos policiais”.

Bolsonaro recebeu presente da empresa que ganhou licitação para fornecer mais de 2600 fuzis para a PRF (Crédito:Carolina Antunes/PR)

O ministro do Superior Tribunal Federal Gilmar Mendes foi mais incisivo nos deveres, atribuições e perspectivas da corporação. “(…)A tragédia do dia recai na menina Heloísa Silva. Para além da responsabilização penal dos agentes envolvidos, há bem mais a ser feito. Um órgão policial que protagoniza episódios bárbaros como esses – e que, nas horas vagas, envolve-se com tentativas de golpes eleitorais –, merece ter a sua existência repensada. Para violações estruturais, medidas também estruturais”, escreveu, em rede social.

O doutor em Ciências Políticas Magno Karl considera que o ministro não deveria opinar sobre fatos que podem “acabar sendo julgados por sua corte”, mas concorda com o teor. “Não há desculpas para disparo de fuzil contra um carro que trafega em via expressa.”

Durante esta reportagem, na tarde de terça-feira (20), uma perseguição na via Dutra, próxima à estrada da trágica morte de Heloísa, terminou com uma criança de sete anos, no caminho para escola, tendo o tênis que calçava baleado em tiroteio entre agentes da polícia rodoviária e criminosos.

50% a mais de verbas foram para a força no governo passado

Vigilantes rodoviários

Em cinco anos, a PRF, que nasceu com nome de Polícia de Estradas, comemorará seu centenário. Foi-se o tempo em que era uma força festejada, principalmente entre as crianças que assistiam ao seriado inspirado nela, Vigilante Rodoviário, estrelada pelo inspetor Carlos e o cão Lobo.

A situação começou a piorar em 1990, quando já carregava o atual nome e tinha poderes de investigação criminal. Saiu do controle do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) e foi ser vizinha da Polícia Federal, no bloco administrado pelo Ministério da Justiça.

Uma situação que, por mais que causasse rixa entre os federais, era administrável, pois a rodoviária compunha o policiamento ostensivo e atuava na prevenção de delitos, enquanto a PF possui caráter repressivo.

Isso até outubro de 2019, primeiro ano do mandato de Bolsonaro, quando o presidente sentiu cheiro de terreno fértil na PRF para se submeter aos seus interesses, mesmo que isso custasse, citando o próprio, jogar fora das quatro linhas.

A PRF faz operação para dificultar trânsito de ônibus com eleitores de Lula: o ministro Alexandre de Moraes ameaçou prender o diretor da PRF (Crédito:Divulgação)

Seu ministro da Justiça à época, Sergio Moro, assinou portaria para que a força atuasse diretamente no combate, autorizando-a a agir junto “às demais instituições de segurança pública na prevenção e no enfrentamento ao crime”.

A força ganhou poderes de atuação no cumprimento de mandados judiciais, o que principiou a escalada da violência. “A especialidade das polícias serve para que cada uma exerça sua função cada vez melhor. A PRF não tem aptidão para exercer o policiamento ostensivo nas cidades”, opina o doutor em Direito Penal José Carlos Abissamra Filho.

A Associação dos Delegados da Polícia Federal entrou com ação no STF e conseguiu em janeiro de 2021 anular a portaria, mas o então Ministro da Justiça, André Mendonça, manteve a abertura para que os rodoviários atuassem em conjunto com outras polícias em operações.

Não por acaso, o número de mortes atribuídas à PRF cresceu de 17 em 2020 para 40 em 2021, e fechou o ano passado com 44. A situação melhorou na gestão Dino, mas não completamente, já que Heloísa foi a oitava vítima fatal da PRF em 2023.

É preciso romper um padrão de naturalizar e, principalmente, celebrar atos de matança cometidos pela corporação nos últimos anos, especialmente sob a gestão do ex-diretor geral e atualmente presidiário Silvinei Vasques, que assumiu por recomendação de Flávio Bolsonaro em abril de 2021.

A primeira ação conjunta de porte sob a gestão de Vasques estabeleceu a régua que a força seguiu até sua saída, no final de 2022. As duas polícias federais começaram a investigar suposto líder do que era chamado “novo cangaço”, o mineiro Ítalo Dias Alves, em Varginha (MG).

Agentes instalaram ilegalmente aplicativo de monitoramento de conversas no celular do suspeito e passaram a vigiá-lo. A PF não concordou com o modus operandi e tirou o time de campo, mas alertou a PM de Minas Gerais da iminência de assalto na cidade e esta colocou viaturas para circularem em tentativa de intimidação.

No mesmo tabuleiro, Vasques juntou seu time ao Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) mineiro e ficaram à espera do comando de ataque. Bope e PRF fizeram investidas em duas chácaras nas quais mataram 25 integrantes da quadrilha.

Vasques tentou falar com Bolsonaro, pois sabia que ficaria exultante com a ação. Não o encontrou mas os filhos mandaram recados via redes sociais. “Nenhum policial morto. Parabéns PRF e PM-MG. Fiquem tranquilos, só vagabundos reclamarão. #GrandeDia”, tuitou Eduardo, o filho 03.

O primogênito considerou o timing adequado para fazer graça: “Apreensão de fuzis, munições, granadas, explosivos e, após confronto, 25 criminosos tiveram a conversa antecipada com o Capiroto”, escreveu Flávio.

Divulgação

Set/23 :Heloísa Silva, 3 anos, morre vítima de dois tiros de fuzil de policial rodoviário (Crédito:Divulgação)

O modo com que celebravam ações traduz uma resposta aos investimentos do ex-capitão na força policial ao perceber que esta se mostrava suscetível aos seus impulsos populistas.

“Governadores, secretários de segurança e políticos com discurso bélico implicam em 30% mais de pessoas mortas pela polícia. Portanto, a valorização do confronto explica a letalidade. O caso da PFR é mais uma evidência clássica nesse sentido”, avalia o cientista político e professor Emmanuel Nunes. “A PFR pode contribuir muito mais para a segurança pública realizando sua verdadeira finalidade — o patrulhamento das rodovias para incrementar a apreensão das armas de fogo.”

Até a operação em Varginha, nos três primeiros anos do governo, a PRF havia recebido injeção de R$ 700 milhões, um aumento superior a 50% em relação a igual período de Michel Temer na Presidência.

Pelo orçamento secreto de 2022, Flávio e Eduardo Bolsonaro conseguiram agradecer os préstimos com polpudos R$ 3,6 milhões em recursos destinados, e a corporação passou de 10 mil policiais para 12.200 no período.

Não é de se estranhar que tenham atendido à vista grossa pedida pelo mandatário sobre infrações de uma de suas principais bases, os caminhoneiros. Por outro lado, a quantidade de operações de combate em outras frentes além das estradas triplicou – de 3.300 em 2020 para 9.700 em 2022.

Número alcançado porque o ex-mandatário tinha a pessoa certa, Silvinei Vasques, para o lugar errado, a cadeira de diretor-geral.

“O Bolsonaro tentou fazer o mesmo com a Polícia Federal e não conseguiu. Pegou a PRF, que vinha em trajetória virtuosa na década passada, com muito investimento em inteligência, só que infelizmente a diretriz política impactou o modelo e vimos o que aconteceu – uma polícia atuando nas periferias urbanas, totalmente fora dos parâmetros constitucionais”, diz Luís Flávio Sapori, sociólogo e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Bolsonaro tentara criar seu protocolo com Adriano Furtado e com Eduardo Aggio de Sá no posto, mas o primeiro foi demitido por lamentar a morte de policial por Covid e o segundo por anunciar operação que não era de sua competência.

Aos 46 anos, Vasques possuía currículo na corporação que incluía:
• extorsão,
• espancamento de frentista,
• oito sindicâncias internas.

Mas, com o comando da PRF no Rio e tendo se aproximado de Flávio, ao oferecer proteção pessoal ao senador quando no Estado, ele foi naturalmente recompensado com a principal cadeira. E correspondeu.

Uma de suas iniciativas foi dar um banho de loja de operações especiais na corporação e adquirir uma frota de blindados, sendo 12 dos 69 veículos os temíveis “caveirões”, que fazem incursões em locais de alta periculosidade.

A licitação que levou 69 veículos para a tropa é investigada atualmente por suspeita de fraude, enquanto veículos estão parados em pátios. “Antes mesmo da distribuição e da utilização, alguns desses veículos começaram a apresentar problemas recorrentes e desempenho abaixo do esperado”, justifica a assessoria da PRF.

Morte por asfixia

Em maio de 2022, os agentes de Vasques promoveram em 24 horas dois dos casos de maior repercussão no ano. No dia 24, tropas invadiram junto ao Bope a comunidade da Vila Cruzeiro, com saldo final de 23 mortes. “Parabéns aos guerreiros do Bope e da PM do Rio, que neutralizaram pelo menos vinte marginais ligados ao narcotráfico em confronto, após serem atacados a tiros. A ação contou com apoio da PF e da PRF”, festejou Jair Bolsonaro no Twitter.

Na manhã seguinte, agentes da força pararam Genivaldo de Jesus Santos em Umbaúba, interior de Sergipe, por estar pilotando moto sem capacete. Ele foi revistado, espirraram gás pimenta em seu rosto e o jogaram na traseira de viatura. Atiraram bomba de gás lacrimogêneo e fecharam a mala do camburão. O rapaz morreu em cerca de um minuto, em ação filmada e compartilhada nas redes como “câmara de gás” da PRF, em referência a um dos métodos de assassinato nazista.

A corporação soltou nota tentando amenizar onde diz que agentes usaram “instrumentos de menor potencial ofensivo para contenção” e que “o abordado veio a passar mal na viatura durante deslocamento até a delegacia, sendo socorrido de imediato”. Tudo isso no mesmo mês em que o diretor geral extinguiu as Comissões de Direitos Humanos da PRF.

17 óbitos em operações em 2020 subiram para 44 no ano passado

O último ato de Silvinei na gestão Bolsonaro foi promover blitzes no Nordeste no dia do segundo turno da eleição presidencial para dificultar o deslocamento de eleitores de Lula às cabines. Havia mapeamento prévio de onde o hoje presidente recebera mais votos no primeiro turno.

Vasques ainda usou sua conta pública para fazer campanha para o ex-capitão, ao postar: “Vote 22, Bolsonaro presidente”. Menos de um mês depois, ele se tornou réu por improbidade administrativa, uso indevido do cargo assim como de símbolos e imagem da instituição durante as eleições.

Foi dispensado, mas recebeu aos 47 anos benefício de aposentadoria voluntária. Desde 9 de agosto, porém, ele cumpre prisão preventiva determinada pelo STF.

O ministro Gilmar Mendes: sugestão para que a corporação tenha “sua existência repensada” (Crédito: Pedro Ladeira)

A bucha na atual gestão foi assumida por Antônio Fernando Oliveira, com 29 anos de carreira na corporação, tendo sido superintendente da PRF no Maranhão, Estado de Flávio Dino. Foi ainda assessor parlamentar do ministro quando ele era deputado federal.

Em sua primeira aparição pública após a morte de Heloísa, comentou: “A PRF tem sua razão de existir, que é preservar a vida nas rodovias. Fazemos todos os esforços, mas onipresença e onisciência são qualidades divinas que nós, humanos, não temos”.

“Eu discordo da extinção da PRF, acho que não é o remédio. Mas repensar, nós estamos repensando.”
Antônio Fernando Oliveira, diretor-geral da PRF

E recebeu promessa de reparo de imagem da corporação de seu chefe. “Nós estamos fazendo não só um curso de reciclagem, mas um estudo para mudança da doutrina de atuação da PRF”, disse Dino.

Para Sapori, três pontos são cruciais na reformulação da corporação: “É preciso atuar com repressão qualificada aos delitos, ter um programa de qualificação de agentes intensivo e tolerância zero com desvios de conduta da tropa, com policiais rodoviários que insistirem nesse modelo de guerra contra o crime”.

Colaborou Elba Kriss