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“Lula precisa ler a constituição quando fala de golpe”, diz Michel Temer

Crédito: Andres Kudacki

“Há um certo cansaço dessa radicalização”, diz o ex-presidente Michel Temer (Crédito: Andres Kudacki)

Por Germano Oliveira, de Milão (ITA)

Aos 82 anos, o ex-presidente Michel Temer preserva o DNA de um incansável pregador da pacificação nacional e do fim da radicalização entre os extremistas da direita bolsonarista e da esquerda petista. Ele acredita que a moderação pode estar presente no processo eleitoral dos próximos anos a partir, sobretudo, da inelegibilidade do ex-presidente. Ele reconhece que o surgimento de candidatos de centro nos próximos pleitos deve ser um fato inevitável. “Sinto que há um certo cansaço dessa radicalização. Por isso é que eu insisto: a próxima eleição vai trazer figuras moderadas para o cenário governativo.”

Temer não acredita que a eventual prisão de Bolsonaro possa vir a tumultuar o ambiente da sucessão eleitoral de 2026. “Não é conveniente uma prisão. Confesso que prender alguém – como o ex-presidente, por exemplo – acaba vitimizando essa pessoa. Convenhamos: temos um exemplo muito recente de alguém que foi preso e se elegeu presidente.”

Apesar de criticar o presidente Lula por sua posição intransigente de dizer que o impeachment de Dilma foi golpe, Temer defende o atual presidente por ele ter oficializado um acordo com o Centrão. “Só governa se tiver o apoio do Congresso. Buscar os apoios e fazer as composições é fundamental para a governabilidade”, diz o ex-presidente em entrevista à ISTOÉ em Milão (ITA), durante o Lide Brazil Conference, realizado nos dias 7 e 8 de setembro.

O sr. disse que se acha um pouco ingênuo ao falar da pacificação do País.
Eu não me acho ingênuo. Acho que as pessoas é que me acham um pouco ingênuo. Porque a pacificação do País, a tranquilização, é uma determinação constitucional. Está dito no preâmbulo da Constituição que os constituintes devem, representantes que são do povo que irá reconstituir o Estado brasileiro, portarem-se pela ideia da paz interna e internacional. E quando você vai ao texto da Constituição, você verifica dispositivos nesse sentido. Vou exemplificar: o Art. 5º diz que ‘todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza’. Qual é a determinação que o povo dá às chamadas autoridades constituídas? Unam-se todos. Significa que não vai haver divergência de ideias e de conceitos? Não. A divergência é fundamental, porque deriva do Art. 1º, que diz que o Brasil é um Estado Democrático de Direito. E democracia envolve exatamente controvérsia, contrariedade, contestação. No plano externo, você tem uma regra, agora que estão falando tanto em artefatos nucleares, dizendo que eles só podem ser autorizados para fins pacíficos, como energia e medicina. Portanto, nada de beligerância com o exterior. Entretanto, como o País está muito radicalizado, às vezes eu falo isso e as pessoas dizem que estou sendo ingênuo. Mas eu insisto. E vejo que no mundo, costumo evocar exemplos de pessoas que são pacifistas e são aplaudidas, como Gandhi e Mandela, e pessoas que, por serem beligerantes, são contestadas, como Hitler e Stalin.

No Brasil, os dois polos de radicalização são os mesmos que já vêm se manifestando há algum tempo. O que precisa acontecer para cessar essa radicalização?
É preciso que haja uma pregação de moderação e equilíbrio.

Nas próximas eleições não teremos Bolsonaro, considerado inelegível. Isso pode diminuir a radicalização?
É difícil dizer. Não se sabe o que vai acontecer com ele até as eleições, esse é o primeiro ponto. Num segundo ponto, estou especialmente impressionado com essa equipe de governadores que assumiram nos últimos tempos: são jovens e bastante combativos – ideologicamente bastante combativos. Não partem para essa agressividade verbal ou física. Quando falo em agressividade física, falo não só em agredir pessoas, em jogar brasileiro contra brasileiro. É também a agressão a espaços públicos. Acho que na próxima eleição a ideia da moderação deverá ser prevalecente.

Temer: “Quando fala em golpe, Lula precisa ler a Constituição. Está dito lá que quando o presidente renuncia ou acontece alguma coisa, quem assume é o vice-presidente” (Crédito:Evaristo Sa)

Acha que com Bolsonaro fora do processo eleitoral pode facilitar o caminho para um candidato de centro?
Acredito que isso será quase inevitável. Pelo menos nos vários contatos que eu tenho feito, sinto que há um certo cansaço dessa radicalização. Por isso é que eu insisto: a próxima eleição vai trazer figuras moderadas para o cenário governativo. De vez em quando eu tomo a liberdade até de invocar uma figura que governou o País há mais de 60 anos: Juscelino Kubitschek. Quero recordar aqui o embate que houve em Jacareacanga. Pouco depois, quando as sedições foram eliminadas, ele anistiou todo mundo e disse “olha, eu quero paz e tranquilidade no País”. É disso que o Brasil precisa.

Quando o sr. fala que não se sabe o que vai acontecer com Bolsonaro até as próximas eleições, acredita na possibilidade de que ele seja preso?
Eu sempre digo que isso não é conveniente. Confesso a você que prender alguém – como o ex-presidente Bolsonaro, por exemplo – acaba vitimizando essa pessoa. Convenhamos: temos um exemplo muito recente de alguém que foi preso e se elegeu presidente. Não vale a pena, é uma coisa que precisa ser levada com muito cuidado. Claro, não estou dizendo se houve fatos gravíssimos que ensejem uma condenação não sejam considerados. Mas não é útil para o País. Tenho absoluta convicção desse fato.

O sr. tem acompanhado o caso das joias? Acha que é um desses fatos gravíssimos?
Houve várias disciplinações referentemente a esses presentes que o presidente da República recebe. É claro que, em princípio, devem ser todos incorporados ao patrimônio público. Mas eu me recordo de portarias anteriores que tratavam como presentes personalíssimos alguns itens. Essa mesma portaria foi revogada em 2021, no governo Bolsonaro. Acho que não vale a pena o presidente receber joias e tê-las como patrimônio próprio.

O sr. disse que o STF tem sido acionado para tratar dos mais diversos temas, como se viu no caso da apreciação da descriminalização do porte de maconha. O STF está legislando?
Não acho. Pelo seguinte: é claro que, se houvesse uma disciplinação dessa matéria pelo Legislativo, o Supremo não entraria na discussão. O que acontece é que o STF, muitas e muitas vezes, é provocado sobre vários assuntos, e é obrigado a decidir. E, obrigado a decidir, também conta o que se chama de interpretação sistêmica do texto constitucional – ou seja, quando a literalidade do texto não é expressiva, não é aplicável imediatamente, e o Supremo acaba decidindo sistematicamente. Veja você o caso da fidelidade partidária: houve uma interpretação sistêmica, não há literalidade sobre isso. Quanto à anencefalia, também não há regra. Há então uma interpretação sistêmica do Tribunal. O que é preciso, isso sim, é que os demais Poderes, em particular o Legislativo, tomem conta de todas as questões e legislem. Porque daí o Supremo não pode, ainda que provocado, decidir sobre a matéria.

Qual é a sua avaliação sobre a declaração do presidente Lula de que votos individuais dos ministros do Supremo deveriam ser mantidos sob sigilo?
É impossível a aplicação no Brasil. Em primeiro lugar, porque realmente todos se acostumaram à publicidade das decisões do STF. Um segundo ponto é que a nossa Constituição determina a publicidade de todos os atos públicos – do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Eu devo dizer até que há sistemas em que não há discussão em plenário. No próprio sistema americano, na Corte Suprema, os ministros decidem antes, e levam as decisões com os votos divergentes para o plenário. Mas aqui no Brasil, eu acho inteiramente inviável. A meu ver, seria inconstitucional.

Como o sr. avalia a proximidade do governo Lula com o Centrão?
Acho que Lula tem que fazer acordo com o Centrão. Pelo seguinte: quem está no Congresso não chegou lá levado por uma centelha divina, mas sim pelo voto popular. Democracia é precisamente isso. Um segundo ponto é que o presidente só governa se tiver apoio do Congresso Nacional. Diferentemente do que muitos pensam, o Executivo federal não governa sozinho. Só governa se tiver o apoio do Congresso. Buscar os apoios e fazer as composições é fundamental para a governabilidade.

Como o sr. avalia a proposta de Reforma Tributária em tramitação no Congresso?
A Reforma Tributária ainda está em andamento e haverá muitas modificações a serem feitas no Senado. De qualquer maneira, ela traz uma hipótese de simplificação, de desburocratização, o que eu ao longo do tempo sempre preguei. Agora, eu tenho uma observação: ela não será aplicada imediatamente. Era o caso de ter algumas normas que entrassem em vigor já.

Prega-se a necessidade de uma Reforma Administrativa. O Congresso tem interesse de fazer essa reforma?
Olha, eu fiz uma reforma administrativa silenciosa. Havia muitos cargos em comissão que estavam desocupados, em torno de 3 mil; e, estando desocupados, poderiam ser eliminados por decreto. E foi o que fiz. Também o Banco do Brasil eliminou várias agências que eram desnecessárias, e abriu um plano de demissão voluntária. Portanto, digo que no meu governo houve uma Reforma Administrativa silenciosa. Agora, uma reforma para aplicação imediata não é fácil, porque o lobby do funcionalismo público no Congresso é muito forte. Daí, penso eu, não é fácil levar adiante.

O Tribunal Regional Federal da 2ª Região extinguiu uma ação movida contra Dilma Rousseff pelas chamadas pedaladas fiscais, que resultaram no impeachment da então presidente, em 2016.
As pessoas na verdade não leem aquilo que está acontecendo. Você veja que a decisão do TRF2 apenas disse que não era apenável o mesmo fato, a pedalada fiscal, porque ela já foi apenada no crime de responsabilidade. Portanto, não era possível aplicar novamente uma pena sobre o mesmo fato. Não houve decisão de mérito, e, portanto, não houve absolvição alguma de Dilma. Houve, sim, um não exame da matéria, por causa da condenação que se deu anteriormente no chamado crime de responsabilidade.

“Depois do embate de Jacareacanga, Juscelino Kubitschek anistiou todo mundo e disse: ‘olha, eu quero paz e tranquilidade no País’. É disso que o Brasil precisa” (Crédito:Divulgação)

O presidente Lula fala que houve golpe.
Lula precisa ler a Constituição. É tão singelo o que está no texto constitucional. Está dito que, quando o presidente renuncia ou acontece alguma coisa, quem assume é o vice-presidente. Simplesmente isso, nada mais. Quando ele fala isso, acredito que fala para uma certa militância, porque o País não acredita nisso. Golpe haveria se tentassem evitar que o vice-presidente assumisse, como já aconteceu no Brasil em outras ocasiões.

Apesar do discurso do golpe em 2016, Lula hoje tem o MDB em sua base aliada. É incoerente isso?
Várias manifestações se verificaram no MDB. Uma da Juventude do MDB se insurgindo contra isso. Outra, da Fundação Ulysses Guimarães, dizendo que se rebelava contra essas expressões do presidente porque isso não ajuda em nada. O presidente tem que chamar os partidos para estar com ele para ter governabilidade, e tais expressões, quando ele as usa, prejudicam a relação do MDB com o governo.