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Por que Mauro Cid assusta tanto Bolsonaro

A delação premiada de Mauro Cid é uma inflexão nas investigações contra o ex-presidente e será crucial para fazê-lo prestar contas com a Justiça. O acordo do ex-ajudante de ordens poderá esclarecer a participação na tentativa de golpe, implicar Flávio Bolsonaro, ocasionar a perda da patente de capitão e levar o ex-mandatário à prisão

Crédito: Geraldo Magela

Mauro Cid ficou em silêncio na CPMI dos Atos Golpistas, em 11 de julho (Crédito: Geraldo Magela)

Por Marcos Strecker e Gabriela Rölke

Jair Bolsonaro passou os quatros anos de gestão convencido de que ganharia um segundo mandato. Ou melhor, que conseguiria se eternizar no poder, dentro ou fora das quatro linhas da Constituição. A derrota no segundo turno, dia 30 de outubro passado, provocou um baque, levando-o à reclusão. O segundo choque para o ex-presidente aconteceu no último dia 9, quando o ministro Alexandre de Moraes, do STF, homologou a delação premiada do ex-ajudante de ordens Mauro Cid.

Trata-se de figura-chave para esclarecer diversos crimes em investigação. O tenente-coronel acompanhou toda a intimidade do poder nos anos Bolsonaro. Pagava as contas da família, administrava a agenda do ex-mandatário, controlava seus telefones e falava em seu nome.

Bolsonaro não acreditava que seu braço direito fosse delatar. O antigo assistente sempre demonstrou ser fiel. Filho de um general quatro estrelas que foi colega de Bolsonaro na Academia Militar, Mauro Cid pertence ao prestigioso grupo de Forças Especiais, que iria comandar.

Conhecido como “o príncipe” na caserna, estava destinado ao generalato. Isso até ser pego nos casos de fraude em certificados de vacinação e comércio de joias recebidas pelo ex-presidente.

Depois de virar um problema para as Forças Armadas, sem saída jurídica e com sinais de abandono pelo antigo chefe, o ex-ajudante de ordens foi ao STF no dia 6 confirmar a intenção de fazer a delação premiada.

Mauro Cid passeia em Brasília na segunda-feira, 11, dois dias após ser libertado (Crédito:Cristiano Mariz)

Após o endosso do STF, três dias depois, ele deixou o Batalhão do Exército de Brasília onde permaneceu preso por 116 dias. Foi liberado com a condição de cumprir medidas cautelares:
* uso de tornozeleira eletrônica,
* comparecimento semanal em juízo,
* proibição de sair do País,
* não entrar em contato com outros investigados. A exceção é o próprio pai, Mauro César Lourena Cid, que também foi flagrado no esquema de venda de presentes.

O procurador-geral, Augusto Aras, criticou o acordo: “A PGR não aceita delações conduzidas pela Polícia Federal” (Crédito:Eraldo Peres)

Sigilo da delação garante que a produção de provas não seja prejudicada e preserva futuras operações da Polícia Federal

A homologação foi feita depois de ser aceita pela PF, mesmo sem a manifestação da Procuradoria-Geral da República. É um procedimento autorizado pelo STF.

Isso evitou uma provável contraposição do procurador-geral, Augusto Aras, que se notabilizou por blindar Bolsonaro das investigações mais perigosas ao longo do mandato e vai deixar o posto no final do mês. Aras protestou.

A pressa na homologação faz sentido para viabilizar novas investigações. Três influentes advogados ouvidos por ISTOÉ, que não quiseram ser identificados, consideram que a delação premiada deve focar nas implicações de Bolsonaro com as tentativas de golpe.

Um deles lembra que o novo advogado de Mauro Cid, Cezar Bitencourt, é muito bem preparado e, para tentar minorar a pena do cliente, deve oferecer aos investigadores provas do envolvimento de Bolsonaro.

“Tentativa de golpe de Estado é um crime grave, cuja pena é de 4 a 12 anos de prisão. Mauro Cid deve assumir que recebia ordens superiores e que atuava como ‘longa manus’ do ex-presidente”, diz.

Ou seja, o tenente-coronel era o mero executor das ordens de Bolsonaro. De fato, um dos requisitos para o instrumento da delação premiada é que o colaborador entregue o superior na cadeia criminosa. Essa pode ser uma das chaves para o desfecho da delação, cujos detalhes são desconhecidos.

Íntimo de negociações palacianas, Flávio Bolsonaro pode ser citado nas investigações (Crédito:Evaristo Sa)

O processo ainda é mantido em sigilo, e há razões para isso. É importante que as evidências já apresentadas sejam confrontadas. Materiais apreendidos estão sendo analisados e servirão para corroborar as apurações. Uma revelação prematura alertaria alvos de futuras operações da PF. A produção de provas seria prejudicada.

Se esse protocolo não for seguido pelos investigadores, ou as medidas cautelares forem desobedecidas, a delação pode ser anulada. Neste momento, os investigadores descartam a necessidade de novos depoimentos. Apenas se forem necessários esclarecimentos adicionais ou se surgirem novos indícios de crimes.

Afinal, em três ocasiões, a PF ouviu o militar por mais de 24 horas. Ele foi confrontado com documentos, perícias em celulares, planilhas de computadores apreendidos e respondeu a questionamentos. Daqui para a frente, os próprios negócios de Mauro Cid serão escrutinados. Em especial, os imóveis nos EUA que pertencem à sua família: uma mansão na Califórnia, outro imóvel em Miami.

A PF suspeita que foram pagos em dinheiro vivo. Familiares do ex-presidente podem ser citados, especialmente Flávio Bolsonaro, que era o mais próximo do pai e esteve intimamente ligado às negociações palacianas.

A forma como o governo anterior utilizou veículos de imprensa para difundir fake news também deve sair da delação. Personagens fora dos holofotes devem surgir, como políticos e militares.

Acordo afeta militares

Para as Forças Armadas, a delação é um ponto de inflexão. Serve para virarem a página da adesão aos movimentos golpistas.

Por um lado, a implicação de um tenente-coronel em vários crimes, e a possível extensão das investigações para generais quatro estrelas, cria um constrangimento e atiça a insatisfação da corporação, que em grande medida era simpática a Bolsonaro e vê o PT e Lula com reservas.

Mas é uma oportunidade também para que os militares reforcem o compromisso com a Constituição e as instituições. Parece ser esse o caminho escolhido. Assim que foi anunciado o acordo, o Exército informou que cumpriria a decisão judicial e que Mauro Cid ficaria agregado ao Departamento-Geral do Pessoal, sem ocupar cargo ou exercer função (ele vai manter o salário de R$ 27 mil).

Depois da derrota eleitoral em 2022, a confirmação da delação de Mauro Cid foi o maior choque sofrido por Bolsonaro (Crédito:Silvio Avila)

Já os antigos generais palacianos podem definitivamente entrar no radar das investigações. A quebra de sigilo telefônico de Braga Netto na Operação Perfídia, na última terça- feira, aumentou a tensão com a ala militar que apoiou Bolsonaro.

Os generais mais próximos do ex-presidente não sabem se foram implicados. Há a convicção de que ainda serão alvos os generais Augusto Heleno, ex-chefe do GSI, e Luiz Eduardo Ramos, antigo secretário- geral da Presidência.

Para se proteger, estes devem dizer que foram relegados por Bolsonaro a segundo plano mais de um ano antes do fim do governo, enquanto o general Braga Netto era o oficial mais próximo do ex-presidente. Braga Netto é um alvo óbvio. Foi ministro da Defesa, titular da Casa Civil e, por fim, concorreu a vice-presidente na chapa da reeleição.

É possível que outro general entre na mira dos investigadores: Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ex-titular da Defesa, que, a pedido de Bolsonaro, organizou uma equipe de militares para fiscalizar a integridade das urnas eletrônicas (foi a membros desse grupo que o hacker Walter Delgatti Neto teria se reportado, a pedido de Bolsonaro, após reunião em que Mauro Cid esteve presente). Isso não aliviará a situação do ex-presidente.

O cientista político Francisco Carlos Teixeira, da UFRJ, lembra que foi encontrada uma minuta de golpe no celular do ex-ajudante de ordens, assim como na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres.

“No segundo turno das eleições, estavam previstas intervenções no TSE e até mesmo no STF e a formação de uma espécie de junta militar e civil para anular as eleições ou dar a vitória ao candidato que ficou em segundo lugar. Há o rascunho de um golpe de Estado no dia 30 de outubro, e o Mauro Cid tinha uma cópia do plano”, afirma.

Para o especialista, o documento encontrado com Mauro Cid é mais detalhado do que o de Torres e o depoimento dele pode trazer novidades.

“Ele poderia dizer que aquilo foi feito a pedido do presidente, ou pelos generais palacianos, envolvendo Luiz Eduardo Ramos, Braga Netto, Augusto Heleno e mesmo Paulo Sérgio Nogueira, então ministro da Defesa. Isso sim seria um terremoto, porque estaria envolvendo as patentes mais elevadas do Exército e os conselheiros diretos do Palácio”, diz o cientista político Francisco Carlos Teixeira.

Se Mauro Cid de fato implicar Bolsonaro, como é a expectativa do especialista, isso levaria o tenente-coronel a romper inteiramente com o Exército. Ele estaria entregando nomes muito fortes. E seria um gesto muito significativo, contra os princípios da caserna.

“Essa questão de não delatar companheiros é muito importante para um oficial do Exército – ainda mais um oficial de Forças Especiais.”
Francisco Carlos Teixeira, cientista político

E há a questão também de que essa é uma geração que participou das missões de paz no exterior, como no Haiti e Sudão. Teixeira, que foi professor de Mauro Cid na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército por dois semestres, lembra que o ex- aluno fez “uma bela tese” sobre a intervenção no Haiti.

“Foi essa experiência de militares brasileiros naquele país, aquilo que a gente chama de state-building, reconstrução do Estado, que deu a eles a ideia de que poderiam agir em qualquer esfera. É o que chamamos de ideologia do Haiti. Ela impregnou toda uma geração de oficiais.”

Para o professor, assim como para uma parcela importante das Forças Armadas, Mauro Cid “tem uma visão que se poderia dizer majestática do poder presidencial, como se o presidente fosse um monarca que pode tudo”.

Isso faz com que Teixeira tenha dúvidas, por outro lado, se Mauro Cid de fato vai implicar o ex-chefe. “A delação vai contra a visão desse grupo. Ele ficaria absolutamente isolado.”

Delação de Mauro Cid pode implicar generais próximos a Bolsonaro: Augusto Heleno (à esq., ex-GSI), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral) e Paulo Nogueira (Defesa) (Crédito:Evaristo Sa;)

Mas Mauro Cid já se comprometeu a falar, e a homologação da delação evidencia que fatos inéditos devem aparecer. As motivações para o acordo, tudo indica, têm a ver essencialmente com um cálculo da defesa.

As provas de peculato e associação criminosa no caso das joias já eram suficientes para condená-lo. E as revelações dos últimos meses foram muito comprometedoras para sua a imagem e a do próprio pai, que vinha fazendo um périplo, passando por generais em todas as regiões para fazer lobby em favor do filho e apresentá-lo quase como um preso político.

Tudo isso caiu por terra com o flagrante do próprio general tentando vender uma das joias, assim como a evidência de que dinheiro passou pela sua conta.

O envolvimento de Mauro Cid com o advogado Frederick Wassef também é muito mal-visto pelos militares, porque desde o caso Fabrício Queiroz ele é percebido nas Forças Armadas como um operador de questões suspeitas.

Pessoas do entorno da família Cid dizem que o pai, Lourena Cid, está recolhido e evita falar sobre o assunto, inclusive com pessoas próximas. “Ele não quer falar nada. Está encerrado, sem interesse de falar”, diz um conhecido.

Mas quem mais se preocupa com a delação, evidentemente, é o próprio Bolsonaro. Quando a prisão de Mauro Cid se estendia, as provas se multiplicavam e passou a crescer o risco de uma colaboração com a Justiça, o ex-presidente passou a sinalizar mais distanciamento, dizendo que o tenente-coronel tinha “autonomia” para agir no Planalto.

Com a revelação da delação, antes de submeter a uma intervenção cirúrgica na última semana, ele tentou aparentar tranquilidade e elogiou o ex-auxiliar em entrevista ao jornal “Folha de S.Paulo”. Mas disse que ele demonstrava “vontade de resolver as coisas”. Ou seja, pode se preparar para atribuir ao ex-faz-tudo a iniciativa pelos malfeitos.

Organização criminosa

O ex-presidente está ameaçado por seu papel em uma organização criminosa com cinco eixos que está no âmago do inquérito das milícias digitais:
* ataques virtuais a opositores do governo,
* ataques às instituições e ao sistema eletrônico de votação,
* golpe de Estado,
* ataques às medidas sanitárias contra a Covid,
* uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens.

É neste último item que o tenente-coronel está mais implicado, por enquanto. Ele inclui falsificação de certificados de vacina (que o levou à prisão), a venda de presentes oficiais e o uso de cartões corporativos para o pagamento de despesas pessoais.

Mas a delação vai abarcar todos os aspectos. Com isso, Bolsonaro pode ser implicado como líder dessa organização criminosa. E não é apenas a chance de ir para a cadeia que o preocupa. Pelo Código Penal Militar, o capitão reformado pode perder a patente ao ser condenado por crimes.

Depois de escapar de uma pena severa nos anos 1980, quando foi julgado pelo envolvimento em um atentado, ele agora pode ser punido e expelido da corporação depois de ter chegado ao posto mais alto da Nação.

O STF já começou a julgar os vândalos que atacaram as sedes dos Três Poderes no 8 de janeiro. O primeiro dos 1.345 réus, Aécio Pereira, foi condenado na quinta-feira à pena mais dura de 17 anos, inclusive por golpe de Estado. Isso deve começar a fechar o círculo aos golpistas. Falta a punição ao grande mentor.

Braga Netto vira preocupação
Ex-chefe da Casa Civil de Bolsonaro é investigado em um caso de superfaturamento quando era interventor no Rio, em 2018

General Braga Netto (Crédito:Mauro Pimentel)

A investigação sobre o general Braga Netto, que foi Chefe da Casa Civil de Jair Bolsonaro e seu vice de chapa presidencial do ano passado, é mais um fator de risco e preocupação para Jair Bolsonaro.

Na segunda-feira, 12, foi deflagrada a Operação Perfídia, que investiga fraudes na compra de coletes balísticos em 2018 durante a intervenção federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro. Braga Neto era o interventor e esteve à frente da aquisição de equipamentos de segurança.

Em cooperação com autoridades dos EUA, a PF encontrou irregularidades em todo o processo, como dispensa de licitação, contratação indevida, e organização criminosa.

Operação da PF no dia 12 apurou a compra suspeita de coletes durante a intervenção militar na Segurança Pública do Rio de Janeiro e quebrou sigilo telefônico de Braga Netto (Crédito:Fabiano Rocha)

evidências de corrupção entre a empresa norte-americana CTU Security, fornecedora dos coletes, e servidores públicos federais, com superfaturamento estimado pelo TCU em cerca de R$ 4,6 milhões, em uma compra total de R$ 40 milhões.

Vetada pelo TCU, a transação não foi concretizada. O fio da meada foi puxado por investigações do departamento de segurança norte- americano sobre o assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, em 2021.

Descobriu-se que a CTU Security forneceu apoio militar ao assassinato, assim como a existência de um contrato superfaturado com o Brasil.

Não bastasse isso, conversas foram interceptadas em que empresários brasileiros, do comércio de proteção balística, afirmam que Braga Netto atuaria a favor da compra. A má fase para Bolsonaro e seus aliados só piora.