Mauro Cid x Bolsonaro: fatos indicam que a delação está a caminho. Confira
Ex-ajudante de ordens muda a conduta de proteção a Bolsonaro e colabora com os investigadores. Ele já estaria negociando sua delação premiada, cuja homologação pode ser adiada até a mudança na chefia da PGR. O silêncio é vital para evitar que o acordo seja anulado

Mauro Cid deu mais de 24h de depoimentos à PF. Quer proteger a família e preservar a reputação do pai, general Mauro Lourena Cid (Crédito: Marcos Corrêa/PR)
Por Regina Pitoscia e Gabriela Rölke
A delação premiada de Mauro Cid é dada como certa em Brasília, apesar de não ser confirmada pela PF, pelo STF e pelo advogado do ex-ajudante de ordens. Fontes com acesso ao caso confirmam que Cid estaria colaborando com os investigadores, inclusive negociando os termos da delação premiada. O sigilo faz parte da conduta dos investigadores, porque a delação só pode vir a público depois de efetivada.
Esse silêncio é previsível. Repete o roteiro de outros processos de delação que foram fechados nos últimos anos, inclusive na Lava Jato, e tem uma razão de ser. Os termos são dacronianos e detalhados minuciosamente.
O colaborador precisa entregar provas contundentes dos crimes em que se envolveu.
Há outra obrigação. Precisa revelar o papel de um superior no esquema criminoso. E essa condição está apavorando Jair Bolsonaro. Ser “traído” pelo seu braço direito nos quatro anos em que permaneceu no poder pode expor todas a sua responsabilidade nos eixos de investigação do inquérito das Milícias Digitais:
* negociatas com joias,
* articulações golpistas,
* uso de cartões corporativos para pagar despesas pessoais,
* fraude em certidões de vacinação e responsabilidade pela inação na pandemia.

Uma das evidências de que esse desfecho já está em curso foram as longas sessões de interrogatório de Mauro Cid à PF, nos dias 25, 28 e 31 de agosto.
No dia 31, em especial, enquanto Bolsonaro e outros depoentes ficaram calados em oitivas simultâneas seguindo uma estratégia comum, Cid falou. E disse muito.
Em três dias, o tenente-coronel depôs por mais de 24 horas à PF. E o potencial de danos a Bolsonaro é gigantesco.
Por isso, a equipe do ex-presidente tem insistido em obter as transcrições e o teor do inquérito que está sob a relatoria de Alexandre de Moraes no STF.
Até agora sem sucesso, já que a peça está sob sigilo, blindada pelo ministro, que terá de homologar a delação premiada.
A confidencialidade é estratégica para o sucesso das investigações. E é a única esperança de Mauro Cid se livrar das condenações que o ameaçam. Em troca da delação premiada, o tenente-coronel pode receber perdão parcial ou total das penas, pegando só um ou dois anos de detenção, uma parte com uso de tornozeleira e outra com prisão domiciliar.
Também pode preservar a família, já que o pai, o general de 4 estrelas Mauro Lourena Cid, também foi arrastado para o escândalo das joias.
O filho estaria preocupado em preservar a reputação do pai, figura até então muito respeitada nos círculos militares. O ex-ajudante de ordens teria ficado especialmente tocado com a reação da mulher, Gabriela Santiago Cid, que estaria inconformada com a prisão do marido e com o fato de ele aparentemente ter sido jogado aos leões pelo antigo chefe.
Para que Mauro Cid decida contar tudo, pesam ainda questões relacionadas à segurança e à integridade física de seus familiares – e dele próprio.

Defesa desconversa
Tentar adivinhar o que se passa pela cabeça do tenente-coronel preso há cinco meses tem sido um exercício diário para os advogados de defesa de Bolsonaro e sua mulher, que até então vinham sendo mantidos blindados, já que Cid vinha demonstrando grande fidelidade.
Mas seu comportamento e seu discurso não são mais os mesmos. Teria “caído a ficha” de que, ferido, foi abandonado no meio do caminho pelo ex-comandante. Seu advogado, Cezar Bitencourt, tem mantido suspense sobre que linha de defesa deverá seguir, em meio a uma sequência de mudanças de estratégia.
Inicialmente, disse que Cid confirmava os fatos relacionados às joias, mas que teria agido a mando do ex-presidente. Depois, voltou atrás e disse que Cid “assumiu tudo, não colocou Bolsonaro em nada”. Isso pode ser estratégia para despistar a delação.


Essas declarações do defensor não têm qualquer valor no âmbito do processo. “É difícil antecipar se há alguma negociação nesse caso concreto, se existe ou não a intenção da defesa de seguir por esse caminho”, contemporiza o advogado Pierpaolo Bottini, professor de Direito da USP. “Mas quando se fala em colaboração premiada, em primeiro lugar o colaborador precisa apontar fatos novos ou desconhecidos”, diz. “Em segundo lugar, é preciso que o Ministério Público (MP) tenha interesse nessas novas informações, se esses dados serão úteis”.
De acordo com Bottini, em casos de delação premiada, o caminho mais “consistente” é fazer acordo com o MP, sempre apresentando informações e provas de alguém superior ao réu.
O MP atua no processo penal até o fim, para garantir a aplicação dos benefícios negociados. “Mas a homologação do acordo sempre vai depender do juiz da causa”, explica.
“Para uma delação premiada, não basta a versão dos fatos apresentada pelo colaborador. É preciso ter provas e documentos que corroborem essa versão.”
Pierpaolo Bottini, professor de Direito da USP
Nesse sentido, o depoimento do também ajudante de ordens Osmar Crivelatti é tido pelos investigadores como mais um fator que aponta para a delação premiada de Mauro Cid. As informações de Crivelatti ratificaram e deram mais credibilidade ao que foi revelado pelo ex-braço-direito de Bolsonaro. Sobre as idas e vindas do advogado Cezar Bitencourt e suas mudanças de estratégia, juristas ouvidos por ISTOÉ sob a condição de anonimato apontam que não se trata necessariamente de uma tentativa de despiste – mas que ele pode ainda estar na fase de aprimorar a tese de defesa, uma vez que aparentemente ainda não teve acesso à totalidade dos autos. “Mudanças de versão podem acontecer. Muitas vezes a defesa entende que, diante do surgimento de novas provas e novos depoimentos, o que vinha sendo dito até então pode não se sustentar”, explica um experiente advogado. “Na fase da investigação ainda não há acusação formal. É o período em que a tese da defesa vai sendo consolidada, já que os fatos são revelados aos poucos”, diz um especialista. “Na verdade, a versão definitiva de defesa é apresentada apenas no momento em que há uma denúncia formal contra os investigados.”

“Arrastado para a lama”
Em mensagens trocadas com Fabio Wajngarten, advogado e ex-secretário de Comunicação do governo Bolsonaro, Mauro Cid reconheceu que as joias eram de interesse público e portanto deveriam ser devolvidas imediatamente ao Tribunal de Contas da União.
Posteriormente, ele admitiu que se sentiu “arrastado para a lama” por Bolsonaro. Outro advogado do ex-presidente, Frederick Wassef, também apresentou várias versões e chegou a viajar aos EUA para recomprar um relógio Rolex e devolvê-lo ao TCU.
Nos bastidores, Wassef trava uma batalha com Wajngarten na disputa por quem deve representar os Bolsonaro como advogado, provocando um racha na defesa e criando mais um ponto de tensão para o ex-presidente.
Se confirmada, a delação premiada também será uma boa notícia para os militares. As Forças Armadas estão interessadas em limpar a imagem da corporação. Ao mesmo tempo, receiam a dimensão das revelações, que podem acertar em cheio os generais Braga Neto e Augusto Heleno em relação ao episódio de 8 de janeiro.
O mutismo dos envolvidos também pode ter a ver com a mudança prevista na Procuradoria-Geral da República. O atual PGR, Augusto Aras, prestou grandes serviços a Bolsonaro ao longo do mandato, livrando-o de investigações perigosas. Sua equipe também deu o argumento jurídico para ele se manter em silêncio na PF no dia 31, ao indicar que o caso das joias deveria sair do STF e seguir para a primeira instância (no STF, essa tese não é levada a sério).
Como Aras encerra seu mandato no final do mês, pode ser conveniente atrasar o desfecho da delação premiada por algumas semanas. “Eu não faria a delação agora se fosse o advogado dele”, diz um especialista.
“Para que haja mais segurança em relação ao cumprimento dos termos que beneficiem o colaborador é preciso contar com a participação do MP, mas a PGR, sob Augusto Aras, tem uma participação muito tímida nessas investigações até agora. Eu esperaria a definição do sucessor de Aras antes de qualquer acordo”, afirma. Os novos lances serão conhecidos em breve.

