Comportamento

O ‘mugshot’ de Trump: como foto na delegacia vira peça de marketing

Fotos dos presos foram usadas historicamente nos EUA para divulgar causas políticas, projetar rebeldia ou aumentar popularidade de artistas. Ao ser indiciado no dia 24, Donald Trump conseguiu preservar o terno e se mostrou contrariado, mas capitalizou o constrangimento: usou a imagem para levantar fundos para a campanha

Crédito: Mario Anzuoni

“Jamais se render!” e “Procurado... Para presidente” ilustram publicações e produtos do Trump preso (Crédito: Mario Anzuoni )

Por Ana Mosquera

A imagem policial mais esperada nos últimos anos nos EUA foi divulgada no último dia 24, quando o ex-presidente Donald Trump foi indiciado no condado de Fulton, na Geórgia (apresentou-se às autoridades policiais e foi liberado após pagar fiança, conforme as regras do país). No mugshot, a imagem icônica tirada nas delegacias de polícia, o ex-presidente pôde manter seu terno e gravata, dispensando a plaquinha que identifica o detento (seu número é P01135809).

O registro foi saboreado pelos que aguardam o acerto de contas do ex-mandatário com a Justiça após a tentativa de melar o resultado das eleições em 2020 e contrariou os trumpistas. Mesmo irritado, o ex-presidente foi pragmático, seguindo seu faro midiático. Transformou a fotografia em peça publicitária para arrecadar dinheiro para a campanha do próximo ano.

Meses antes do clique, artigos e charges que simulavam o close já pipocavam na mídia. Nos memes, ele apareceu fichado em ilustrações, comendo um hambúrguer ou bebendo Coca-Cola. Com a efetiva prisão, a imagem oficial viralizou.

Nas primeiras 24 horas, a cara emburrada do magnata teve 10 milhões de visualizações por hora no antigo Twitter (atual X). Uma semana depois, os fundos para a campanha tinham engordado mais de US$ 9 milhões.

A venda de canecas, adesivos, camisetas e coolers com seu rosto engordou as doações para a próxima candidatura, que vinham caindo desde julho.

Em 1881, foi o assassino do presidente James Garfield, Charles Julius Guiteau, que vendeu fotos autografadas para custear a própria defesa.

Mugshot, em tradução livre, significa retrato falado. Esse instantâneo que marca para sempre a vida dos presos norte-americanos nasceu nos primeiros anos do século XIX, com mais caráter de arte do que de ficha policial.

Acessórios, roupas e fotógrafos profissionais faziam parte do protocolo das primeiras imagens dos criminosos, o que pouco ajudava na identificação.

Foi com o criminologista Alphonse Bertillon, em 1882, que a ferramenta tomou seriedade, perdendo as alegorias e ganhando informações como medidas do corpo, e a opção frontal e lateral.

Donald Trump: imagem policial mais esperada nos últimos anos nos EUA 

Os mugshots passaram a identificar os suspeitos com precisão, bem como apresentá-los de forma natural, como chegavam à delegacia (com isso, artistas presos embriagados viraram um hit).

Com o tempo, o registro ficou a cargo dos próprios policiais e a postura assumida foi caracterizada como cold and hard (fria e dura), como disse o artista, fotógrafo e diretor de cinema George Seminara no livro Mug Shots: Celebrities Under Arrest, de 1996.

As novas determinações facilitaram o processo, mas não conseguiram tirar a subjetividade dos registros mais famosos. Ao longo do século XX, artistas e celebridades enquadradas foram burlando o sistema “careta”, natural ou intencionalmente.

Artistas

Estrelas de Hollywood, músicos e políticos passaram a usar como peça de publicidade as fotos em que aparecem desgrenhados e com uma placa oficial da polícia contendo seu número de prisioneiro.

Entre a ideia de projetar uma imagem de rebeldia e ativismo político, algumas imagens históricas seguem dissipando seu impacto até os dias de hoje.

Em frente às câmeras, a atriz Jane Fonda aproveitou a detenção por porte de remédios, entre outros motivos, para levantar os punhos contra a Guerra do Vietnã, enquanto o músico James Brown saía sempre sorrindo, talvez crente da comoção dos fãs que o livraria de acusações como posse de drogas e fuga em alta velocidade da polícia.

O mugshot do ex-jogador e ator O. J. Simpson levantou discussão racial ao virar capa da revista Time, enquanto um registro de Janis Joplin, de corpo inteiro, destacava os longos cabelos e roupas típicas da contracultura hippie.

Mais recentemente, o rosto do produtor de cinema Harvey Weinstein, condenado por estupro, passou a simbolizar a origem do movimento #Metoo.

A palavra “mug” acumula tantos significados quanto o número de réus que tiveram seus rostos propagados na história americana. Além de careta, otário e, como verbo, ter sentido de assaltar, está no dia a dia da população como a volumosa caneca de café.

É nos postos de estrada, nos restaurantes do tipo diner e também nas delegacias e prisões, como a que o ex-presidente esteve por 20 minutos antes de ser salvo pela fiança de US$ 200 mil, que o objeto aparece com frequência.

A caneca com o rosto de Trump, vendida por US$ 25, agora toma espaço na mesa de apoiadores do acusado de conspirar contra a democracia.

Republicanos contrários a ele também vestem a camisa da viralização: em painéis da Times Square e vídeos em canais de TV, a foto vem acompanhada das 91 acusações criminais que recaem sobre o ex-mandatário e de frases como “Ninguém está acima da lei”.

Trump não inventou o espetáculo midiático com seus problemas na Justiça, mas boa parte da população americana espera que ele inaugure uma nova tradição: a dos ex-presidentes que conhecem uma cela de prisão. Seu primeiro julgamento foi marcado para o dia 4 de março, um dia antes da “superterça”, marco importante da corrida presidencial do próximo ano.