Comportamento

A polêmica dos transplantes: conheça as regras para doadores e receptores

Rejeição familiar é soberana e principal responsável para que não tenhamos melhores índices de transplante de órgãos no Brasil; o “não” de parentes, quando potencial doador não pode decidir, é principal causa de acúmulo de casos

Crédito: Fita Crepe Filmes

Cultura da doação: Fabrício Reis recebeu rim da tia Claudete Marques (à esq.). Anos depois, Cleideonice Barbosa, sua mãe, autorizou a retirada das córneas da filha Vilma Barbosa (no porta-retrato) após óbito em 2019 (Crédito: Fita Crepe Filmes)

Por Elba Kriss e Luiz Cesar Pimentel

Alguns médicos dizem que o transplante de fígado é o procedimento mais complexo da medicina moderna, pela quantidade de funções com que o órgão interage no organismo. Outros dizem que os mais difíceis são pulmão e coração, devido ao número de requisitos de paridade entre doador e receptor para que seja bem-sucedida a operação. A notícia boa é que o Brasil é o segundo maior transplantador do mundo, tendo os EUA em primeiro lugar — aqui, entretanto, possuímos o maior sistema público da modalidade, com fornecimento de assistência integral e gratuita. A notícia ruim é que o Brasil poderia ocupar o posto de maior realizador de cirurgias do tipo e se firmar como referência mundial caso não esbarrasse na parte simples do procedimento, a comunicação.

Sim, o que não deixa a lista de 66.250 brasileiros à espera do transplante diminuir não é a questão científica, mas a cultural. Tendo a maior parte dos procedimentos como fonte morte encefálica, quem decide é a família. E quase metade das cirurgias é impedida pela não aceitação dessa.

Os dados são do Registro Brasileiro de Transplantes. Foi constatado que a negativa familiar equivale a 44% do que chamam de não doações, enquanto o segundo lugar, a contraindicação médica (por doença preexistente, por exemplo), atende por 18% dos insucessos.

No Brasil, a palavra da família é a final. Não importa se a pessoa tenha manifestado em cartório ou de qualquer outra forma a disposição de se tornar doadora, pois se no momento da consulta médica a respeito da doação disserem “não”, é “não” e acabou.

O tema fica ainda mais pesaroso se cruzados dados com análise que entrevistou quase 2 mil pessoas e 67% afirmaram que doariam órgãos se consultadas, mas menos da metade tinha comunicado algum parente próximo da decisão.

“Na nossa lei atual, trabalhamos com a doação consentida. Significa que no momento do nosso falecimento, ela só ocorrerá se um dos nossos familiares autorizar. Diferentemente de muitos países do mundo, que trabalham com a doação presumida: se deu entrada no hospital e é constatada a morte encefálica, não existe entrevista com parentes. É doador”, diz Daniela Salomão, coordenadora-geral do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), à ISTOÉ.

Sistema Nacional de Transplantes: responsável pela regulamentação, controle e monitoramento do processo de doação e transplantes (Crédito:Lalo de Almeida)

A avaliação evoluiu para que os pesquisadores entendessem a falta de motivação em ajudar necessitados.
* Em primeiro lugar ficou o medo de mutilação do cadáver, temor infundado.
* Em segundo e terceiro lugares ficaram a indisposição sobre o tema morte e a religião.

Mitos e verdades

Fosse melhor comunicado o processo, potenciais doadores ou decisores familiares saberiam que um indivíduo com morte encefálica constatada e sem nenhuma doença impeditiva ou falência generalizada tem capacidade de salvar oito vidas, já que pode entrar como fornecedor para esse número de cirurgias:
* dois rins,
* dois pulmões,
* fígado que pode ser repartido entre necessitados,
* pâncreas,
* coração, como no caso do apresentador Fausto Silva, que serviu para levantar o debate.

As primeiras informações e teorias foram de que pela fama, potencial financeiro ou alguma razão ardilosa qualquer o apresentador teria furado a lista e passado à frente. Só que a fila não anda assim.

Não é constituída por ordem de chegada nem admite um espaço Vip, mas parte de inscrição no Cadastro Técnico do Sistema Estadual de Transplantes.

É, então, espelhada junto ao SNT, que avalia fatores como disponibilidade, ordem cronológica, gravidade do caso e viabilidade de tratamentos alternativos, priorizando aqueles em que há risco iminente de morte.

No cômputo dos dados, Faustão ficou em segundo lugar na lista. “Já ocorreu de pacientes com transplante em menos de 24 horas. Acontece”, comenta Daniela.

A engrenagem começa a funcionar a partir do que é chamado de tempo de isquemia, que é a janela de horas entre a retirada do doador e implante no receptor.

No caso do apresentador, de coração, esse prazo é de 4 horas. Para pulmões, são 6 horas, 12 para fígado, 20 para pâncreas e 48 para rins.

Mas o botão de play só é acionado com o “sim” familiar. O doador é encaminhado para captação e o processo só é encerrado com a reconstituição adequada do corpo, para que não apresente deformidade e não demande sepultamento especial.

Caroline Reigada, nefrologista: “Em intervivos, o doador é bem selecionado. Ninguém tirará o rim de uma pessoa que um dia poderá precisar dele” (Crédito:Divulgação)

Do outro lado, a Central de Transplantes realiza a verificação de potenciais compatibilidades entre doador e receptores. Se existir mais de um adequado, o critério de prioridade avalia tempo de espera e urgência do procedimento.

“O sistema trabalha para encontrar o melhor órgão possível para a necessidade do paciente. São critérios técnicos que permitirão o ‘casamento’ entre a demanda do paciente e o órgão doado.”
Daniela Salomão, coordenadora-geral do Sistema Nacional de Transplantes (SNT)

Doação em vida

Outra modalidade, menos comum, é a doação em vida. O fornecedor pode prover um dos rins, medula óssea, partes do fígado, intestino, pulmão ou pâncreas, sendo mais raros os quatro últimos.

Para essas ocorrências o doador deve ser parente em até quarto grau do receptor, possuir compatibilidade sanguínea ou, não sendo da família, requerer a condição mediante autorização judicial.

Outra diferença com a cirurgia pós-morte é a inexistência da preservação de anonimato do provisor, dada por questões éticas.

Em São Paulo, a família do vendedor de automóveis Fabrício Reis, de 32 anos, é o retrato do que se espera da cultura da doação. Em 2011, exames de rotina mostraram que havia “algo” nos rins do rapaz. “A urina estava com mais espuma do que o normal”, relembra ele. No ano seguinte, o que não andava bem evoluiu para a perda da função renal.

Ele se viu diante da hemodiálise e da necessidade do transplante. “Os médicos me falaram que se eu tivesse um doador seria rápido. Foi aí que veio a comoção da família”, conta. Parentes se mobilizaram e encararam bateria de exames.

A investigação apontou a tia Claudete Marques, 61, como compatível. “Foi uma emoção para todos. Fiz apenas seis meses de hemodiálise, pois logo transplantei”, relembra. “Meu sobrinho é muito querido e amado. Quando meus exames disseram que eu poderia doar um rim, nem pensei duas vezes”, conta a aposentada.

Tia e sobrinho hoje são porta-vozes em defesa do procedimento. “Ainda existem muitos mitos em relação a isso. Eu tenho vida normal e até esqueço que doei. Só lembro quando vejo a cicatriz”, afirma Claudete.

A nefrologista Caroline Reigada reconhece que o temor de conceder um órgão paira na sociedade. “Em intervivos, o doador é muito bem selecionado. Ninguém tirará o rim de uma pessoa que um dia poderá precisar dele. Exemplos: pessoas com tendência para diabete, pressão alta e sobrepeso são descartadas, e sabemos que obesidade aumenta a incidência renal crônica. Se a pessoa já é saudável e se mantém com esses hábitos pelo resto da vida, vive bem”, explica.

Reis viveu pouco mais de dois anos estável após o procedimento. Em 2014, no entanto, contraiu uma infecção renal e recebeu o temido diagnóstico de rejeição. Desde então, entrou para a lista de transplantes — não é um caso prioritário. “Faço hemodiálise três vezes por semana, e estou bem”, diz.

A segunda espera o assustou no início, mas o respeito pelo democrático SNT prevalece. A fé na medicina e o foco na saúde mental o fortalecem. “Tenho cabeça boa para lidar com essa situação. Transplante não é a cura, mas é a melhor parte do tratamento. É o que nos tira da máquina.”

Solidariedade

Em 2019, Reis vivenciou outra situação que envolve a cultura da doação quando a irmã, Vilma Barbosa, não resistiu a um câncer de pâncreas aos 42. “Constatado o óbito, os médicos explicaram que as córneas poderiam ser aproveitadas. Minha mãe [Cleideonice Barbosa, 67] disse ‘sim’”, relembra ele. “Inclusive, é comum achar que uma córnea é para uma pessoa. Não. Os médicos explicaram que uma pode servir para até seis pessoas. Por isso, é importante falar sobre tudo isso”, encerra Claudete.

A quase totalidade de transplantes dos chamados órgãos sólidos é realizada pelo Sistema Único de Saúde e não onera os envolvidos. “Mas existe um preceito na medicina: o doador é um filantropo”, enaltece Caroline.

O SUS também é responsável pelos processos de retirada e implante de tecidos:
* córneas,
* válvulas,
* ossos,
* músculos,
* tendões,
* pele,
* veias
* e artérias.

Felizmente, a curva de registros está em alta. No primeiro semestre deste ano, o Estado de São Paulo realizou 5.760 até o começo desta semana, um aumento de 10,5% sobre o mesmo período em 2022 no principal realizador de cirurgias. Houve também crescimento no número de doadores em 13,5%, um dado positivo mas que ainda nos coloca muito longe de países referência nesse quesito.

Os dados globais posicionam a Espanha na liderança entre doadores per capita. São 49 espanhóis potenciais por milhão de habitantes. Atrás, vem os EUA com 37 a cada milhão de norte-americanos, seguidos por Croácia (35), Portugal (34) e França (33).

Nós ainda estamos lá embaixo na listagem. Nem na América do Sul garantimos ouro ou prata, já que o Uruguai tem 21,4, Argentina, 19,6, e só então o Brasil, com 17,7.

É o caso de aprendermos com o país ibérico em relação à educação fornecida sobre o procedimento para a população e considerar a mudança de regra para a doação. Ao contrário do Brasil, por lá o “sim” é garantido pelo consentimento presumido.

A ala médica reforça que hoje o essencial é notificar familiares sobre a opção de ser doador de órgãos — e pedir em vida para que o desejo seja respeitado após a morte.

“Essa é uma conversa que poucos têm. Acontece muito: a família está numa situação sofrida quando alguém está indo embora ou morrendo que não querem nem saber da doação. Se você tem isso especificado em vida, avise os seus parentes, pois será uma decisão mais fácil para eles”, aconselha Caroline.