A difícil governabilidade: entenda os entraves com que Lula terá de lidar até o fim do ano
Negociações tensas conduzidas por Lula preparam uma nova fase do governo com mais apoio no Congresso e blindagem no Judiciário. Mas para isso o presidente precisará ceder mais do que gostaria ao Centrão e domar o seu próprio partido
Por Germano Oliveira e Marcos Strecker
Brasília atravessa um momento decisivo para a governabilidade. Negociações frenéticas conduzidas pelo Planalto envolvem os Três Poderes e vão determinar a nova cara da gestão Lula. São decisões que acontecem em várias frentes. No Judiciário, a escolha do nome que substituirá a ministra Rosa Weber no STF ao final deste mês virou uma questão crucial, já que o presidente vive enxurrada de críticas do PT pela escolha de Cristiano Zanin. Na economia, com o aval de Lula, o ministro Fernando Haddad manteve a meta de zerar o déficit público em projeto de Orçamento enviado ao Congresso na quinta-feira, 31. Isso irritou novamente a ala esquerdista do PT, que é contra a política de contenção fiscal do titular da Fazenda. E a reforma ministerial avançou passos decisivos, caminhando para consolidar o espaço do Centrão na Esplanada.
As duas primeiras disputas descritas viraram um problemão para Lula, que passou os últimos dias sob fogo amigo. O pivô dos problemas chama-se Zanin. Depois de virar um herói dos petistas ao livrar o mandatário na Lava Jato, o novo ministro chocou a esquerda com suas posições conservadoras: votou contra a descriminalização da maconha e contra a equiparação de ofensas anti-LGBTQIA+ à injúria racial.
A discussão sobre o marco temporal em terras indígenas, que foi retomada na própria quinta-feira, deixou o clima ainda mais tenso, já que ele poderia se posicionar a favor dos ruralistas. Isso azedou o clima no PT, que vive uma guerra interna.
Petistas influentes reclamam que pela primeira vez um titular do STF foi indicado por Lula sem consultar o partido. “Ele escolheu alguém com perfil conservador. O sentimento é que só atendeu ao desejo pessoal. As instâncias partidárias não conseguem entender”, confidencia uma fonte.
Zanin é considerado um peixe fora d´água. Há um senão nessa tese da “traição”. O ministro não escondeu seu perfil conservador quando passou pelo crivo dos senadores, apesar de ter sido contido e cuidadoso nas palavras em sua sabatina.
Todos sabiam que era uma sugestão “personalíssima” do mandatário. A reação, portanto, indica principalmente um mal-estar dos petistas com os rumos do governo e o quinhão que cabe a eles na Esplanada. Mas as consequências são concretas para Lula.
O presidente está sendo abertamente questionado no partido que fundou, e isso é inédito. Ele é criticado em mais de 50 grupos de militantes nas redes sociais, que incluem governadores, deputados, senadores e filiados.
A reação forte fez grupos de apoio do PT na esfera judiciária e o próprio partido exigirem controle sobre as próximas indicações. Além da nova vaga no STF, há postos no STJ e também nos tribunais regionais a serem preenchidos.
A própria escolha do Procurador-Geral da República que vai herdar a cadeira de Augusto Aras é crucial. “O PT usará mais malícia nas indicações, para que não seja surpreendido”, diz um membro influente.
Pressionado, Lula criou um conselho que ficará encarregado de avaliar o currículo e a trajetória dos candidatos a cargos no Judiciário e terá a palavra final na escolha dos novos indicados. Fazem parte Rui Costa (Casa Civil), Alexandre Padilha (Relações Institucionai), Flávio Dino (Justiça) e Jorge Messias (Advocacia-Geral da União).
Os nomes também serão submetidos previamente à presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e ao grupo Prerrogativas, que é próximo ao partido. “Reconhecemos o esforço do presidente em construir um sistema de Justiça mais inclusivo e diverso por meio de um processo amplo de escolha materializado no Conselho interministerial”, diz Marco Aurélio de Carvalho, do Prerrogativas.
Candidato ao supremo
Essa pressão sobre o presidente não significa, evidentemente, que ele perdeu o controle sobre a legenda. Como evidência disso, a cúpula do PT lançou uma resolução na quarta-feira defendendo a reeleição em 2026, ainda que indiretamente critique a performance de Zanin.
Ninguém duvida que Lula mantém controle inquestionável sobre o partido. Mas as novas indicações, inclusive na reforma ministerial, terão um acompanhamento mais cerrado. E o STF concentra as principais preocupações.
O presidente exige um nome de confiança e próximo a ele (a reivindicação de que seja uma mulher, como querem apoiadores do petista, pouco conta nessa lógica).
* Jorge Messias é o favorito, e sua presença no conselho para referendar os nomes é um evidente “conflito de interesses” (ou prova da sua influência).
* Bruno Dantas, do TCU, também está no páreo.
* Por fora, com menos chances, corre na disputa Luis Felipe Salomão, ministro do STJ.
Todos tentam mostrar uma trajetória “progressista” depois do episódio Zanin.
O clima da votação do marco temporal mostrou como esse tema mexeu com o xadrez da composição no STF. Na quarta, Alexandre de Moraes e Edson Fachin votaram contra a tese que favorece novas reservas indígenas e André Mendonça e Kassio Nunes Marques, a favor.
A polícia interditou a Esplanada dos Ministérios diante das manifestações favoráveis e contrárias. Indígenas se concentravam batendo bumbo. O trânsito ficou caótico. Piorou à noite quando todo o mundo jurídico, incluindo os 11 ministros, ex-ministros, o PGR Augusto Aras e membros do MPF se reuniram para uma grande reflexão sobre o 8 de janeiro.
O STF exibiu um vídeo produzido pela jornalista Mariana Oliveira, diretora de comunicação da Corte, mostrando os principais momentos da destruição da sede pelos bolsonaristas e o hercúleo trabalho de reconstrução liderado pela ministra Rosa Weber, que quase foi às lágrimas.
Todos se emocionaram. Foi também lançado um livro sobre o ataque e a reconstrução. As dependências viraram destroços no 8 de janeiro e no dia 1º de fevereiro tudo estava recuperado.
Esse é o pano de fundo que ilustra a escolha do novo ministro do STF. A favor de Messias está o fato de que Lula tem procurado sistematicamente “reabilitar” os nomes que ficaram comprometidos com o colapso da gestão dilmista.
A própria ex-presidente ganhou a presidência do Banco dos Brics e, mais recentemente, recebeu um desagravo de Lula, que sugeriu uma “reparação” a ela após o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) arquivar a ação por improbidade pelas “pedaladas fiscais”.
Na época, Messias se notabilizou ao ser apontado numa gravação da ex-presidente como o “Bessias” que levaria um documento garantindo salvo-conduto a Lula na Lava Jato.
Na Advocacia-Geral da União, para onde foi indicado no atual governo, Messias se empenhou em defender temas de interesse do presidente: a defesa dos povos indígenas e da política de cotas nas universidades e criou as procuradorias do Meio Ambiente e da Defesa da Democracia (que foi jocosamente apelidada pela oposição de “Ministério da Verdade”).
O atual AGU ainda é evangélico, o que resolve boa parte dos problemas do mandatário em se aproximar dessa parcela do eleitorado, que havia se bandeado para o bolsonarismo e é cada vez mais expressiva.
“Pauta Robin Hood”
Bruno Dantas é um antigo aspirante à principal corte do País. O presidente do TCU tem como padrinho Renan Calheiros, aliado do governo, mas isso pode ser um problema.
Essa ligação causa ruídos com o presidente da Câmara, já que Arthur Lira trava uma guerra intestina com o senador em Alagoas.
Em outro ponto a seu favor, Dantas conta com a simpatia do ministro da Casa Civil, Rui Costa. Na seara jurídica, tem o apoio dos ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli.
Sua trajetória “progressista” inclui defender recentemente a maior proporcionalidade de gênero no TCU e apoio à população Yanomâmi. A pedra no sapato dele é o fato de ter votado na corte pela rejeição das contas de Dilma Rousseff em 2016, o que favoreceu o impeachment dela.
Na PGR, a briga pela vaga do novo procurador-geral também esquenta, já que no próximo mês Aras deixará o cargo (e não vai ser reconduzido, apesar dos seus esforços). Paulo Gonet (vice-procurador-geral eleitoral), com o apoio de Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, é o favorito. Corre por fora Luiza Frischeisen, que é a preferida da Associação do Ministério Público.
Outra fonte de dor de cabeça para Lula ocorre exatamente na área que está trazendo os resultados mais positivos para sua gestão: a política econômica.
A aprovação do arcabouço fiscal trouxe grande alívio para a equipe de Haddad, mas as contas ainda não fecham. O ministro da Fazenda tinha se comprometido em zerar o déficit público no próximo ano, mas estimativas do mercado apontam que o governo terá de arrumar pelo menos R$ 130 bilhões adicionais para isso.
O PT “raiz” pressionou para que o ministro abrisse mão dessa meta ambiciosa. Desejava que ele enviasse ao Congresso o projeto de Orçamento prevendo em 2024 um déficit de até 0,75% do PIB, garantindo uma folga orçamentária para os investimentos, especialmente do Novo PAC.
Mais do que isso, a legenda do presidente não quer contingenciamento de despesas em pleno ano eleitoral. O pleito municipal do próximo ano é vital para o partido, que teve um resultado desastroso em 2020.
Essa briga irritou Haddad, que tem assegurado apoio no Congresso e entre empresários justamente por sua ênfase na disciplina fiscal, sem contar que esse compromisso tem garantido a baixa da taxa de juros e a expectativa de queda da inflação.
A equipe do ministro considerou que a mudança da meta, como propôs a própria presidente do PT, Gleisi Hoffmann, não passa de fogo amigo e munição para os adversários. Haddad ganhou essa parada ao garantir que o déficit será zerado no projeto enviado ao Congresso.
Para isso, convenceu Lula a propor um pacote de medidas que podem aumentar a arrecadação em R$ 168 bilhões. Ele deseja aumentar a tributação sobre fundos de investimento exclusivos e os rendimentos de “offshores”.
Como essas iniciativas miram os ricos, foram apelidadas de “pauta Robin Hood”.
Outras medidas, como o voto de qualidade do Carf (aprovado no Senado), a tributação de apostas esportivas e a cobrança de impostos federais sobre incentivos dados pelos estados via ICMS também podem engordar o caixa do governo.
Reforma ministerial
Mas tudo depende do Congresso, e aí entra o delicado jogo presidencial na reforma ministerial. São difíceis as negociações para a entrada do PP e do Republicanos no governo, o que explica boa parte do mau humor dos petistas.
Para aumentar seu cacife, as duas legendas combinaram que aceitariam cargos apenas se fossem contempladas simultaneamente. André Fufuca (PP) e Silvio Costa Filho (Republicanos) são nomes certos, falta definir as pastas.
Os partidos estão insatisfeitos com as promessas feitas pelo presidente até agora, inclusive de receberem o comando da Caixa (para PP) e Funasa (Republicanos).
Na Caixa, a presidência deve ir para uma aliada de Lira, Margarete Coelho, e as vice-presidências serão divididas entre as duas agremiações.
A Esplanada vai passar por outras mexidas. Lula já confirmou que criará seu 38º ministério, o da Pequena e Média Empresa, que ficará com parte da estrutura da pasta do Desenvolvimento e Indústria, atualmente a cargo do vice, Geraldo Alckmin.
Portos e Aeroportos, pasta ocupada por Márcio França (PSB), deverá ser destinada ao Republicanos.
Esporte, de Ana Moser, pode ter um novo titular. O Ministério da Ciência e Tecnologia, de Luciana Santos (PCdoB), também pode entrar nas negociações.
Um dos pontos mais delicados é a cobiça sobre o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, gestor do Bolsa Família, que tem alto capital político e atualmente está sob a chefia do petista Wellington Dias. O desmembramento dessa pasta em duas poderia favorecer o PP, mesmo que o Bolsa Família ganhasse outro endereço na Esplanada.
Essas negociações foram aceleradas com a necessidade de garantir um apoio confortável na Câmara para as votações mais urgentes, principalmente as relacionadas à agenda econômica.
Lula usou a “pauta Robin Hood” com a dupla intenção de pregar “justiça social”, em linha com suas promessas de campanha e as demandas do próprio partido, e também para fustigar o Centrão no Congresso, que sempre torceu o nariz para o avanço tributário, especialmente sobre as “offshores”.
Em sua live semanal, o presidente disse esperar que o Congresso “proteja os mais pobres, ao invés de proteger os mais ricos”. Foi um pisão no pé do presidente da Câmara, o que revela o estresse dos bastidores na reforma ministerial e antecipa novos duelos no Legislativo.
Se for bem-sucedido, o presidente dará um passo forte para aumentar a governabilidade, muito antes do que se imaginava, dado o começo tumultuado da gestão.
A chave é encontrar um fórmula que amplie sua segurança no Judiciário e dê mais tranquilidade no Congresso. Mas isso não significa necessariamente que estará assegurado o principal fator capaz de sustentar sua popularidade em alta: o crescimento da economia.
A queda da inflação ainda não está garantida e ainda há riscos no cenário internacional para o próximo ano. Haddad sabe disso. As contas públicas tiveram um déficit de R$ 35 bilhões em junho, no segundo pior resultado para o mês na história, devido à queda na arrecadação e alta das despesas.
Isso pode alimentar a pressão de Arthur Lira pela redução nos custos da máquina pública com a Reforma Administrativa, tudo o que o PT não deseja.
E aumenta o ceticismo com a ambição de zerar o déficit. O movimento de prefeitos do Nordeste que paralisaram as atividades na quarta-feira mostra que o equilíbrio das contas é um desafio ainda longe de ser alcançado.
O movimento liderado pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) reclama por causa de uma redução nos repasses do Fundo de Participação dos Municípios e pelo atraso em emendas.
O imbróglio envolve decisões do Executivo e do Congresso. Um projeto de lei de autoria do deputado Zeca Dirceu (PT) para remediar o problema pode criar um rombo bilionário. É só uma amostra das dificuldades à frente.
Governadores
E os bons ventos no Congresso, com a aprovação histórica da Reforma Tributária, podem virar. O Senado já sinalizou que vai mudar pontos que foram negociados com dificuldade na Câmara, como a criação do órgão que vai gerenciar o novo IVA, o Conselho Federativo, com maior poder de voto aos estados mais populosos, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Uma reunião no Senado na terça-feira reuniu governadores e mostrou que o objetivo do relator da mudança, senador Eduardo Braga, de votar a matéria até outubro, é otimista e incerta.
Isso porque a lista de insatisfeitos cresce. O governador Tarcísio de Freitas bancou a reforma com a condição de que o Conselho fosse criado sem ameaçar São Paulo.
O governo federal, por outro lado, tem simpatia pela proposta que dá mais poder aos estados do Nordeste, base de Lula. Na queda de braço por essa mudança que vai determinar o desenho da economia nos próximos anos, o petista pode levar a melhor.
Parlamentares consideram que os cálculos finais sobre a alíquota do IVA será feito pelo TCU, o que colocará Dantas, que tenta se alinhar ao mandatário, em posição privilegiada para ditar o principal indicador do marco tributário. De novo, Lula pode provar que é um homem de sorte na política.