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A difícil governabilidade: entenda os entraves com que Lula terá de lidar até o fim do ano

Negociações tensas conduzidas por Lula preparam uma nova fase do governo com mais apoio no Congresso e blindagem no Judiciário. Mas para isso o presidente precisará ceder mais do que gostaria ao Centrão e domar o seu próprio partido

Crédito: Wallace Martins

Lula e Arthur Lira celebram o projeto de valorização do salário mínimo, dia 28, em Brasília: reforma ministerial interferiu na votação das pautas econômicas (Crédito: Wallace Martins)

Por Germano Oliveira e Marcos Strecker

Brasília atravessa um momento decisivo para a governabilidade. Negociações frenéticas conduzidas pelo Planalto envolvem os Três Poderes e vão determinar a nova cara da gestão Lula. São decisões que acontecem em várias frentes. No Judiciário, a escolha do nome que substituirá a ministra Rosa Weber no STF ao final deste mês virou uma questão crucial, já que o presidente vive enxurrada de críticas do PT pela escolha de Cristiano Zanin. Na economia, com o aval de Lula, o ministro Fernando Haddad manteve a meta de zerar o déficit público em projeto de Orçamento enviado ao Congresso na quinta-feira, 31. Isso irritou novamente a ala esquerdista do PT, que é contra a política de contenção fiscal do titular da Fazenda. E a reforma ministerial avançou passos decisivos, caminhando para consolidar o espaço do Centrão na Esplanada.

As duas primeiras disputas descritas viraram um problemão para Lula, que passou os últimos dias sob fogo amigo. O pivô dos problemas chama-se Zanin. Depois de virar um herói dos petistas ao livrar o mandatário na Lava Jato, o novo ministro chocou a esquerda com suas posições conservadoras: votou contra a descriminalização da maconha e contra a equiparação de ofensas anti-LGBTQIA+ à injúria racial.

A discussão sobre o marco temporal em terras indígenas, que foi retomada na própria quinta-feira, deixou o clima ainda mais tenso, já que ele poderia se posicionar a favor dos ruralistas. Isso azedou o clima no PT, que vive uma guerra interna.

Protesto contra o marco temporal no STF, na quarta-feira: indicado por Lula, Cristiano Zanin (abaixo) irritou o PT com votos conservadores na Corte (Crédito: Leo Bahia )

Petistas influentes reclamam que pela primeira vez um titular do STF foi indicado por Lula sem consultar o partido. “Ele escolheu alguém com perfil conservador. O sentimento é que só atendeu ao desejo pessoal. As instâncias partidárias não conseguem entender”, confidencia uma fonte.

Zanin é considerado um peixe fora d´água. Há um senão nessa tese da “traição”. O ministro não escondeu seu perfil conservador quando passou pelo crivo dos senadores, apesar de ter sido contido e cuidadoso nas palavras em sua sabatina.

Todos sabiam que era uma sugestão “personalíssima” do mandatário. A reação, portanto, indica principalmente um mal-estar dos petistas com os rumos do governo e o quinhão que cabe a eles na Esplanada. Mas as consequências são concretas para Lula.

(Rosinei Coutinho/SCO/STF)

O presidente está sendo abertamente questionado no partido que fundou, e isso é inédito. Ele é criticado em mais de 50 grupos de militantes nas redes sociais, que incluem governadores, deputados, senadores e filiados.

A reação forte fez grupos de apoio do PT na esfera judiciária e o próprio partido exigirem controle sobre as próximas indicações. Além da nova vaga no STF, há postos no STJ e também nos tribunais regionais a serem preenchidos.

A própria escolha do Procurador-Geral da República que vai herdar a cadeira de Augusto Aras é crucial. “O PT usará mais malícia nas indicações, para que não seja surpreendido”, diz um membro influente.

Pressionado, Lula criou um conselho que ficará encarregado de avaliar o currículo e a trajetória dos candidatos a cargos no Judiciário e terá a palavra final na escolha dos novos indicados. Fazem parte Rui Costa (Casa Civil), Alexandre Padilha (Relações Institucionai), Flávio Dino (Justiça) e Jorge Messias (Advocacia-Geral da União).

Os nomes também serão submetidos previamente à presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e ao grupo Prerrogativas, que é próximo ao partido. “Reconhecemos o esforço do presidente em construir um sistema de Justiça mais inclusivo e diverso por meio de um processo amplo de escolha materializado no Conselho interministerial”, diz Marco Aurélio de Carvalho, do Prerrogativas.


Jorge Messias (à esq., da AGU), Bruno Dantas (presidente do TCU) e Luis Felipe Salomão (ministro do STJ) estão na briga pela vaga de Rosa Weber no STF. Messias é o favorito (Crédito:Divulgação;Andre Ribeiro;Lucas Prickeo)

Candidato ao supremo

Essa pressão sobre o presidente não significa, evidentemente, que ele perdeu o controle sobre a legenda. Como evidência disso, a cúpula do PT lançou uma resolução na quarta-feira defendendo a reeleição em 2026, ainda que indiretamente critique a performance de Zanin.

Ninguém duvida que Lula mantém controle inquestionável sobre o partido. Mas as novas indicações, inclusive na reforma ministerial, terão um acompanhamento mais cerrado. E o STF concentra as principais preocupações.

O presidente exige um nome de confiança e próximo a ele (a reivindicação de que seja uma mulher, como querem apoiadores do petista, pouco conta nessa lógica).
* Jorge Messias é o favorito, e sua presença no conselho para referendar os nomes é um evidente “conflito de interesses” (ou prova da sua influência).
* Bruno Dantas, do TCU, também está no páreo.
* Por fora, com menos chances, corre na disputa Luis Felipe Salomão, ministro do STJ.

Todos tentam mostrar uma trajetória “progressista” depois do episódio Zanin.

O clima da votação do marco temporal mostrou como esse tema mexeu com o xadrez da composição no STF. Na quarta, Alexandre de Moraes e Edson Fachin votaram contra a tese que favorece novas reservas indígenas e André Mendonça e Kassio Nunes Marques, a favor.

A polícia interditou a Esplanada dos Ministérios diante das manifestações favoráveis e contrárias. Indígenas se concentravam batendo bumbo. O trânsito ficou caótico. Piorou à noite quando todo o mundo jurídico, incluindo os 11 ministros, ex-ministros, o PGR Augusto Aras e membros do MPF se reuniram para uma grande reflexão sobre o 8 de janeiro.

O STF exibiu um vídeo produzido pela jornalista Mariana Oliveira, diretora de comunicação da Corte, mostrando os principais momentos da destruição da sede pelos bolsonaristas e o hercúleo trabalho de reconstrução liderado pela ministra Rosa Weber, que quase foi às lágrimas.

Todos se emocionaram. Foi também lançado um livro sobre o ataque e a reconstrução. As dependências viraram destroços no 8 de janeiro e no dia 1º de fevereiro tudo estava recuperado.

Esse é o pano de fundo que ilustra a escolha do novo ministro do STF. A favor de Messias está o fato de que Lula tem procurado sistematicamente “reabilitar” os nomes que ficaram comprometidos com o colapso da gestão dilmista.

A própria ex-presidente ganhou a presidência do Banco dos Brics e, mais recentemente, recebeu um desagravo de Lula, que sugeriu uma “reparação” a ela após o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) arquivar a ação por improbidade pelas “pedaladas fiscais”.

Na época, Messias se notabilizou ao ser apontado numa gravação da ex-presidente como o “Bessias” que levaria um documento garantindo salvo-conduto a Lula na Lava Jato.

Na Advocacia-Geral da União, para onde foi indicado no atual governo, Messias se empenhou em defender temas de interesse do presidente: a defesa dos povos indígenas e da política de cotas nas universidades e criou as procuradorias do Meio Ambiente e da Defesa da Democracia (que foi jocosamente apelidada pela oposição de “Ministério da Verdade”).

O atual AGU ainda é evangélico, o que resolve boa parte dos problemas do mandatário em se aproximar dessa parcela do eleitorado, que havia se bandeado para o bolsonarismo e é cada vez mais expressiva.


Lula criou um colegiado com quatro governistas para referendar os candidatos a vagas no Judiciário: Flávio Dino (Justiça), Jorge Messias (AGU), Rui Costa (Casa Civil) e Alexandre Padilha (Relações Institucionais) vão avaliar o currículo e a trajetória dos nomes submetidos. O PT e o grupo Prerrogativas também vão filtrar (Crédito:Divulgação;José Cruz/Agência Brasil;Marcelo Camargo/Agência Brasil;Valter Campanato/Agência Brasil)

“Pauta Robin Hood”

Bruno Dantas é um antigo aspirante à principal corte do País. O presidente do TCU tem como padrinho Renan Calheiros, aliado do governo, mas isso pode ser um problema.

Essa ligação causa ruídos com o presidente da Câmara, já que Arthur Lira trava uma guerra intestina com o senador em Alagoas.

Em outro ponto a seu favor, Dantas conta com a simpatia do ministro da Casa Civil, Rui Costa. Na seara jurídica, tem o apoio dos ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli.

Sua trajetória “progressista” inclui defender recentemente a maior proporcionalidade de gênero no TCU e apoio à população Yanomâmi. A pedra no sapato dele é o fato de ter votado na corte pela rejeição das contas de Dilma Rousseff em 2016, o que favoreceu o impeachment dela.

Na PGR, a briga pela vaga do novo procurador-geral também esquenta, já que no próximo mês Aras deixará o cargo (e não vai ser reconduzido, apesar dos seus esforços). Paulo Gonet (vice-procurador-geral eleitoral), com o apoio de Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, é o favorito. Corre por fora Luiza Frischeisen, que é a preferida da Associação do Ministério Público.

Outra fonte de dor de cabeça para Lula ocorre exatamente na área que está trazendo os resultados mais positivos para sua gestão: a política econômica.

A aprovação do arcabouço fiscal trouxe grande alívio para a equipe de Haddad, mas as contas ainda não fecham. O ministro da Fazenda tinha se comprometido em zerar o déficit público no próximo ano, mas estimativas do mercado apontam que o governo terá de arrumar pelo menos R$ 130 bilhões adicionais para isso.

O PT “raiz” pressionou para que o ministro abrisse mão dessa meta ambiciosa. Desejava que ele enviasse ao Congresso o projeto de Orçamento prevendo em 2024 um déficit de até 0,75% do PIB, garantindo uma folga orçamentária para os investimentos, especialmente do Novo PAC.

Mais do que isso, a legenda do presidente não quer contingenciamento de despesas em pleno ano eleitoral. O pleito municipal do próximo ano é vital para o partido, que teve um resultado desastroso em 2020.

Essa briga irritou Haddad, que tem assegurado apoio no Congresso e entre empresários justamente por sua ênfase na disciplina fiscal, sem contar que esse compromisso tem garantido a baixa da taxa de juros e a expectativa de queda da inflação.

A equipe do ministro considerou que a mudança da meta, como propôs a própria presidente do PT, Gleisi Hoffmann, não passa de fogo amigo e munição para os adversários. Haddad ganhou essa parada ao garantir que o déficit será zerado no projeto enviado ao Congresso.

Para isso, convenceu Lula a propor um pacote de medidas que podem aumentar a arrecadação em R$ 168 bilhões. Ele deseja aumentar a tributação sobre fundos de investimento exclusivos e os rendimentos de “offshores”.

Como essas iniciativas miram os ricos, foram apelidadas de “pauta Robin Hood”.

Outras medidas, como o voto de qualidade do Carf (aprovado no Senado), a tributação de apostas esportivas e a cobrança de impostos federais sobre incentivos dados pelos estados via ICMS também podem engordar o caixa do governo.

Reforma ministerial

Mas tudo depende do Congresso, e aí entra o delicado jogo presidencial na reforma ministerial. São difíceis as negociações para a entrada do PP e do Republicanos no governo, o que explica boa parte do mau humor dos petistas.

Para aumentar seu cacife, as duas legendas combinaram que aceitariam cargos apenas se fossem contempladas simultaneamente. André Fufuca (PP) e Silvio Costa Filho (Republicanos) são nomes certos, falta definir as pastas.

Os partidos estão insatisfeitos com as promessas feitas pelo presidente até agora, inclusive de receberem o comando da Caixa (para PP) e Funasa (Republicanos).

Na Caixa, a presidência deve ir para uma aliada de Lira, Margarete Coelho, e as vice-presidências serão divididas entre as duas agremiações.

A Esplanada vai passar por outras mexidas. Lula já confirmou que criará seu 38º ministério, o da Pequena e Média Empresa, que ficará com parte da estrutura da pasta do Desenvolvimento e Indústria, atualmente a cargo do vice, Geraldo Alckmin.

Portos e Aeroportos, pasta ocupada por Márcio França (PSB), deverá ser destinada ao Republicanos.

Esporte, de Ana Moser, pode ter um novo titular. O Ministério da Ciência e Tecnologia, de Luciana Santos (PCdoB), também pode entrar nas negociações.

Um dos pontos mais delicados é a cobiça sobre o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, gestor do Bolsa Família, que tem alto capital político e atualmente está sob a chefia do petista Wellington Dias. O desmembramento dessa pasta em duas poderia favorecer o PP, mesmo que o Bolsa Família ganhasse outro endereço na Esplanada.

Essas negociações foram aceleradas com a necessidade de garantir um apoio confortável na Câmara para as votações mais urgentes, principalmente as relacionadas à agenda econômica.

Lula usou a “pauta Robin Hood” com a dupla intenção de pregar “justiça social”, em linha com suas promessas de campanha e as demandas do próprio partido, e também para fustigar o Centrão no Congresso, que sempre torceu o nariz para o avanço tributário, especialmente sobre as “offshores”.

Em sua live semanal, o presidente disse esperar que o Congresso “proteja os mais pobres, ao invés de proteger os mais ricos”. Foi um pisão no pé do presidente da Câmara, o que revela o estresse dos bastidores na reforma ministerial e antecipa novos duelos no Legislativo.

O relator da Reforma Tributária, Eduardo Braga (esq.), e Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, na terça: governadores do Sudeste enfrentam rebelião contra o Conselho Federativo (Crédito: Ton Molina )

Se for bem-sucedido, o presidente dará um passo forte para aumentar a governabilidade, muito antes do que se imaginava, dado o começo tumultuado da gestão.

A chave é encontrar um fórmula que amplie sua segurança no Judiciário e dê mais tranquilidade no Congresso. Mas isso não significa necessariamente que estará assegurado o principal fator capaz de sustentar sua popularidade em alta: o crescimento da economia.

A queda da inflação ainda não está garantida e ainda há riscos no cenário internacional para o próximo ano. Haddad sabe disso. As contas públicas tiveram um déficit de R$ 35 bilhões em junho, no segundo pior resultado para o mês na história, devido à queda na arrecadação e alta das despesas.

Isso pode alimentar a pressão de Arthur Lira pela redução nos custos da máquina pública com a Reforma Administrativa, tudo o que o PT não deseja.

E aumenta o ceticismo com a ambição de zerar o déficit. O movimento de prefeitos do Nordeste que paralisaram as atividades na quarta-feira mostra que o equilíbrio das contas é um desafio ainda longe de ser alcançado.

O movimento liderado pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) reclama por causa de uma redução nos repasses do Fundo de Participação dos Municípios e pelo atraso em emendas.

O imbróglio envolve decisões do Executivo e do Congresso. Um projeto de lei de autoria do deputado Zeca Dirceu (PT) para remediar o problema pode criar um rombo bilionário. É só uma amostra das dificuldades à frente.

Governadores

E os bons ventos no Congresso, com a aprovação histórica da Reforma Tributária, podem virar. O Senado já sinalizou que vai mudar pontos que foram negociados com dificuldade na Câmara, como a criação do órgão que vai gerenciar o novo IVA, o Conselho Federativo, com maior poder de voto aos estados mais populosos, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Uma reunião no Senado na terça-feira reuniu governadores e mostrou que o objetivo do relator da mudança, senador Eduardo Braga, de votar a matéria até outubro, é otimista e incerta.

Isso porque a lista de insatisfeitos cresce. O governador Tarcísio de Freitas bancou a reforma com a condição de que o Conselho fosse criado sem ameaçar São Paulo.

O governo federal, por outro lado, tem simpatia pela proposta que dá mais poder aos estados do Nordeste, base de Lula. Na queda de braço por essa mudança que vai determinar o desenho da economia nos próximos anos, o petista pode levar a melhor.

Parlamentares consideram que os cálculos finais sobre a alíquota do IVA será feito pelo TCU, o que colocará Dantas, que tenta se alinhar ao mandatário, em posição privilegiada para ditar o principal indicador do marco tributário. De novo, Lula pode provar que é um homem de sorte na política.

Fernando Haddad foi vítima de “fogo amigo” do PT, mas manteve a promessa inicial e garantiu um Orçamento que zera o déficit público em 2024, enviado ao Congresso na quinta-feira (Crédito:Diogo Zacarias)