Brasil

Tensão nos quartéis: entenda por que os militares estão sob enorme pressão

A participação do general Mauro Lourena Cid e do filho Mauro Cid no esquema das joias leva a crise para o Exército e abala sua cúpula. Com o aumento da tensão, o comandante Tomás Paiva acelera medidas para apaziguar a caserna e o presidente da CPMI dos Atos Golpistas blinda os oficiais

Crédito:  Fátima Meira/Futura Press/Folhapress; Fernando Souza/AFP

Os Cid: pai e filho protagonizam novela que envolve a alta cúpula do Exército e compromete a credibilidade das Forças Armadas sobre participação em ilicitudes políticas como poucas vezes na história (Crédito: Fátima Meira/Futura Press/Folhapress; Fernando Souza/AFP )

Por Marcos Strecker

É até surpreendente a facilidade com que o capitão Jair Bolsonaro conseguiu cooptar setores militares para seu movimento golpista. Ele precisou demitir a cúpula das Forças Armadas em março de 2021 na maior crise na caserna desde a redemocratização, mas em seguida conseguiu um comando mais dócil no Ministério da Defesa, que inclusive o ajudou a questionar a integridade das urnas eletrônicas. O festival de acampamentos golpistas em frente aos quartéis até janeiro mostrou que a adesão não era limitada e nem silenciosa.

Os ataques de 8 de janeiro colocaram em xeque a adesão dos fardados ao golpe. Oito meses depois, porém, a despolitização da caserna ainda é um sonho distante e as revelações da PF comprometem cada vez mais militares na miríade de ilicitudes do ex-presidente.

O mais recente constrangimento caiu como uma bomba no Alto-Comando do Exército: a revelação de que o general reformado Mauro Lourena Cid participou da venda nos EUA de joias recebidas por Bolsonaro.

Antigo colega de Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas Negras, Lourena Cid foi escolhido pelo então presidente para chefiar o escritório da Apex em Miami. Seu filho, o tenente-coronel Mauro Cid, é o notório ex-ajudante de ordens do capitão.

Essa família castrense mergulhou a instituição numa crise que parece não ter fim.

Lourena Cid não era um general qualquer. Quatro estrelas, integrou o Alto-Comando do Exército. Nos últimos meses, vinha exercendo sua influência em uma peregrinação junto a integrantes da cúpula do Exército para interceder pelo filho preso.

O fato de ele próprio ter sido enredado no escândalo (com foto e tudo dele segurando um kit de joias para ser negociado) escandalizou os colegas e trouxe inquietação.

Um militar ligado ao Alto-Comando diz que o sentimento é de traição.

“Ele era recebido e ouvido sempre que nos procurava. Mas o fato de ter omitido que tinha emprestado a conta bancária lhe fechou as portas. O sentimento é de quebra de confiança. Pior: já não sabemos mais o que esperar. Pode ser que ele esteja ainda mais envolvido do que sabemos até o momento”, afirmou.

E acrescentou: “Estamos com o pé atrás. Seguimos respeitando o posto do general Lourena Cid. Isso não dá para deixar de ter. Mas ele está sozinho”.

Esse oficial defende o “expurgo” para quem fere a “honra militar” e diz que é dado como certo que Mauro Cid deve perder a patente após a condenação na Justiça. “A probabilidade é gigantesca”, afirma.

Mesmo encarcerado, o tenente-coronel mantém corrida e exercícios diários, sempre sob vigilância de policial do Exército (Crédito:Cristiano Mariz)

Mauro Cid está preso no Batalhão de Polícia do Exército de Brasília desde o dia 3 de maio, onde segue uma rotina de exercícios físicos diários e leituras, inclusive dos seis inquéritos em que é investigado.

A primeira dor de cabeça do tenente-coronel veio com sua participação na divulgação ilegal de uma investigação sigilosa da PF sobre um ataque hacker ao TSE. Bolsonaro usou os documentos em uma live para tentar desacreditar as urnas.

O inquérito vazado havia sido divulgado em um site bolsonarista por outro membro do clã, o irmão de Mauro, Daniel Cid. Daniel atua na área de segurança digital na Califórnia, onde comprou uma mansão avaliada em mais de R$ 8,5 milhões.

A família tem uma empresa registrada no país, a Cid Family Trust. A CPMI dos Atos Golpistas já aprovou requerimentos para investigar quais empresas o pai e os dois filhos têm no exterior.

Mas essa pista ainda está travada. O presidente da comissão, Arthur Maia, não permitiu a votação do requerimento que estenderia essa apuração à mulher de Mauro Cid, Gabriela Santiago Ribeiro Cid, além de outros membros da família.

Sobre as volumosas movimentações bancárias de Mauro Cid depois de sua prisão, elas teriam sido realizadas por Gabriela, pois trata-se de contas conjuntas.

Walter Delgatti teve o sigilo quebrado a pedido da CPI dos Atos Golpistas, que em ato contínuo reconvocou Mauro Cid (Crédito:Mateus Bonomi )

Visitas

O dia a dia de Mauro Cid no Batalhão não é exatamente espartano. Tem um quarto com TV e frigobar. Chegou a receber 73 visitas até junho, boa parte de apoiadores do ex-presidente, como os generais Eduardo Pazuello e Hamilton Mourão.

Mas os negócios com joias e Rolex complicaram tudo. Ele agora só pode receber parentes. O pai, general Mauro Lourena Cid, perdeu o direito de visitar o filho.

Esse último desdobramento também fez Mauro Cid trocar o defensor. Seu novo advogado, Cezar Bitencourt, chegou a sugerir que o cliente iria fazer uma confissão e apontar Bolsonaro como mandante do esquema de venda de joias. Depois, se desdisse e passou a dar versões contraditórias.

Agora, planeja uma audiência com o ministro Alexandre de Moraes, relator dos inquéritos no STF, para tentar melhorar a situação do cliente.

À ISTOÉ, ele disse que só tinha tido duas conversas com o cliente até a última segunda-feira, em que sequer o tema da confissão foi tratado.

Também afirmou que fará a defesa do pai de Mauro Cid, caso seja aberto alguma ação contra ele.

Militares apontam que o general Lourena Cid pode até mesmo ter sua aposentadoria cassada pelo Superior Tribunal Militar (STM). E a mesma corte pode cassar o posto e a patente de Mauro Cid.

Mas, para os militares, essa penalização na esfera militar depende primeiro da condenação na Justiça criminal.

O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo, diz que nunca trabalhou diretamente com Lourena Cid, mas elogia o companheiro de farda. “Sempre foi um militar com boa performance profissional. Em processos de merecimento e escolha percorreu todos os postos da carreira.”

Já o filho, para ele, “é um rapaz de conduta profissional de destaque. Como Ajudante de Ordens, sempre se mostrou um rapaz educado, atencioso.”

Sobre o argumento de que Mauro Cid teria apenas cumprido ordens, Santos Cruz, um dos fardados que romperam com Bolsonaro, é bastante crítico. “Acho os fatos lamentáveis. Se o presidente sabia ou não das iniciativas dos seus subordinados diretos, é necessário uma conclusão das investigações. Mesmo que se considere difícil ou improvável um subordinado tomar certas iniciativas sem o conhecimento do seu chefe, isso precisa ser esclarecido e comprovado”, afirma.

Como os colegas, ele tenta separar a instituição dos elementos que mancharam a Força“É importante separar as coisas. Os fatos são de responsabilidade individual e não de responsabilidade institucional.”

Outro oficial que atua com o Alto-Comando cerra fileiras com o mesmo argumento: “Ordem ilegal ou absurda não se cumpre”.

Para esse militar, “a forma como Mauro Cid agiu na Ajudância de Ordens não é adequada, aquela subserviência toda não é papel de militar, não nos serve.”

Reputação

No Forte Apache, a sede do comando em Brasília, o mantra é de que “qualquer um que tenha mostrado desvio no comportamento de retidão e legalidade será punido”.

Oficiais dizem que o objetivo é mostrar que a instituição não vai “passar pano” para os ilícitos de ex-membros. Inclusive, eventualmente, de Lourena Cid, que já estava “aposentado” desde 2019.

O atual comandante, general Tomás Paiva, quer antes de mais nada “virar a página” dos problemas que Bolsonaro causou. Para isso, no dia 13, o general publicou uma ordem interna estipulando que o Exército deve pautar suas ações pela “legalidade e legitimidade”.

No documento, ele reforça o caráter do Exército como “instituição de Estado, apartidária, coesa e integrada à sociedade”. Trata-se da ordem fragmentária nº 1, que procura, nas suas palavras, fortalecer a imagem e a reputação da corporação, evitando-se “a desinformação”.

Na sede da Força, o que se diz é que esse documento já estava em elaboração desde a gestão do general Júlio César Arruda, que foi indicado no final do ano passado para o posto e acabou demitido por Lula em janeiro após os ataques de 8 de janeiro.

Mais do que isso, a demissão teria sido motivada pela insistência de Arruda em efetivar justamente Mauro Cid em um importante comando de tropas em Brasília, a chefia do 1º Batalhão de Ações de Comando do Exército em Goiânia.

Fato é que esse documento divulgado pelo novo comandante é mais uma tentativa de pacificar a caserna. Para isso, Paiva criou um grupo de trabalho, assim como uma associação nacional de Amigos do Exército.

Mas isso será suficiente para capturar corações e mentes das tropas, familiares e oficiais reformados? Um dos objetivos do atual comando é aproximar a instituição dos veteranos, mas não será tarefa fácil despolitizar clubes militares e associações que embarcaram no radicalismo golpista de forma escancarada.

Outra estratégia do comandante é pacificar o público interno com benesses para a corporação, como:
* reforço em salários,
* assistência social,
* sistema de saúde,
* colégios militares
* e moradias.

Essa foi uma das estratégias de Bolsonaro para atrair os oficiais de patentes inferiores.

Mas há dúvidas se a ofensiva corporativista será suficiente para debelar o encanto extremista. Uma forma mais eficiente seria provar que a Força está “cortando na carne” para apurar responsabilidades.

Mas o Inquérito Policial Militar que foi aberto para investigar os atos golpistas, concluído em julho, livrou as tropas de culpa e apontou indícios de responsabilidade da Secretaria de Segurança e Coordenação Presidencial, que integra o Gabinete de Segurança Institucional.

Ou seja, atribuiu ao próprio governo Lula, no oitavo dia de gestão, a responsabilidade por falhas em prevenir atos de insurreição.

Porta dos fundos

O constrangimento recente não foi apenas com o clã Mauro Cid. Em depoimento à PF, o hacker Walter Delgatti disse que participou de reuniões no Ministério da Defesa em tentativas de desacreditar as urnas.

Ele teria entrado cinco vezes pela porta dos fundos do Ministério para que sua presença não fosse registrada. Pior: afirmou que “orientou” o conteúdo do relatório do Ministério da Defesa sobre as urnas eletrônicas entregue ao TSE em novembro de 2022.

Nessa ocasião, o Ministério era chefiado pelo general Paulo Sérgio Nogueira. Delgatti, que está preso, evidentemente é uma testemunha suspeita. Acaba de ser condenado a 20 anos de prisão no caso da Vaza Jato. Mas suas afirmações trouxeram grande preocupação ao comando do Exército.

O ministro da Defesa, José Múcio, pediu à PF a lista de militares que teriam se encontrado com Delgatti. A PF não liberou, alegando que o inquérito é sigiloso, mas o ministro espera liberar essa informação com o STF. É uma boa forma de se conhecer os membros da corporação que teriam agido contra a Justiça Eleitoral.

Na prática, com o depoimento de Delgatti, os militares passaram a ser mais visados. E a situação pode se complicar ainda mais após a apreensão dos celulares do general Lourena Cid e do advogado Frederick Wassef, cujas senhas já foram quebradas e que estão sob análise da PF.

Um dos aparelhos de Wassef era usado exclusivamente para a comunicação com Bolsonaro. E o seu celular já teria indicado que o ex-presidente tinha conhecimento das negociatas com joias.

7 de setembro

Enquanto os militares tentam pacificar a família castrense e pisam em ovos com as revelações que ainda surgirão, o governo vive o dilema de como agir com os militares.

Se Lula atuar de forma persecutória, arrisca-se a colocar a instituição contra o governo. Se não agir com firmeza, o ovo da serpente se desenvolve.

Com a elevação da temperatura nos inquéritos da PF e a aproximação das comemorações do 7 de setembro, o presidente resolveu agir.

Chamou os três comandantes militares para o Palácio da Alvorada fora da agenda no sábado, dia 19. O ministro da Defesa, José Múcio, levou os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.

Oficialmente, trataram dos investimentos na Defesa anunciados no lançamento do Novo PAC, de nada menos que R$ 52,8 bilhões.

Na prática, o petista cobrou rigor contra os comportamentos desviantes. A ideia é que nenhum fardado seja perseguido, mas que nenhum também deixe de ser punido se for comprovada sua participação em ilícitos.

Lula deseja se aproximar da categoria e diminuir a tensão. A estratégia, aparentemente, é conquistar a caserna com recursos e benefícios sociais, enquanto se cobra disciplina e o respeito à Constituição.

O presidente Lula recebeu comandantes do Exército, Marinha, Aeronáutica e cobrou penas devidas aos militares envolvidos em ilegalidades (Crédito:Ricardo Stuckert)

Trata-se de um equilíbrio delicado em meio a uma relação ainda conturbada. No Congresso, houve um aperitivo da dificuldade. Uma sessão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara voltou a debater o papel dos militares e o artigo 142 da Constituição, que foi indevidamente invocado por Bolsonaro e seus seguidores como se ele estabelecesse um “poder moderador” das Forças Armadas.

A tese de alterar esse dispositivo constitucional é abraçada especialmente por parlamentares petistas, o que promete jogar gasolina da fogueira da insatisfação das alas mais conservadoras dos quartéis.

Enquanto a esquerda quer aproveitar o acerto de contas com as atitudes golpistas, o comando tem a difícil missão de despolitizar e profissionalizar as forças.

As principais bolhas da internet – a da esquerda e a da direita – se uniram para criticar a Força. Enquanto a esquerda critica a ação antidemocrática, os radicais bolsonaristas atacam os “generais melancia” (verdes por fora, vermelhos por dentro), que teriam “aderido” ao governo.

O Exército, por exemplo, não sabe se mantém os seus canais nas redes sociais abertos para comentários ou não, já que as críticas vêm dos dois lados.

Sigilos desfeitos

Depois do depoimento do hacker, a CPMI passou a ser o maior foco de preocupação para os militares. A relatora, senadora Eliziane Gama (PSD), quer aprovar a quebra de sigilo telefônico e telemático do general Paulo Sergio Nogueira, ex-comandante do Exército e ex-ministro da Defesa de Bolsonaro, para depois avaliar sua convocação.

Nogueira foi acusado por Delgatti de ter se encontrado com ele para falar sobre urnas eletrônicas. Isso ampliaria a tensão no Alto-Comando.

Mas o presidente da comissão, Arthur Maia, sinalizou que vai aliviar a pressão para os militares. Na manhã de quarta-feira, 23, ele teve um encontro com a cúpula do Exército e em seguida blindou os generais ao definir a pauta da comissão.

Com o isso, não foram marcados os depoimentos de Augusto Heleno (ex-chefe do GSI) e de Gustavo Henrique Dutra de Menezes (ex-chefe do Comando Militar do Planalto).

Apenas G.Dias (ex-ministro do GSI de Lula, que foi demitido em abril após aparecer em um vídeo circulando entre os vândalos no dia 8 de janeiro) será ouvido na próxima quinta-feira.

Isso irritou a relatora, senadora Eliziane Gama, que desejava fechar o cerco ao oficiais. “O coronel Mauro Cid tinha armazenado no seu celular um roteiro de um golpe, uma minuta de GLO, e várias conversas de militares que chegavam a ele na tentativa de levar ao presidente um estímulo para a intervenção militar, ao mesmo tempo em que fazia movimentações financeiras muito significativas. Há uma necessidade de ampliar essa investigação. Ver a participação do pai, o general Lourena Cid, do advogado Wassef. Não dá para considerar o caso das joias como um caso isolado. Não vamos investigar o caminho das joias, isso é trabalho para a PF. Mas queremos saber se houve trânsito desse dinheiro para o 8 de janeiro”, diz Eliziane.

Mas tudo indica, até o momento, que os generais terão vida dura apenas nos inquéritos da PF.

O ministro da Defesa, José Múcio (à esq.), quer saber pelo STF quais militares encontraram o hacker Walter Delgatti durante campanha (Crédito:Antônio Oliveira)

Enquanto os militares tentam driblar o crivo pela eventual participação em malfeitos, a confiança dos brasileiros nas Forças Armadas registrou queda desde o fim do ano passado, segundo pesquisa Genial/Quaest divulgada no dia 21.

Em dezembro de 2023, 43% dos entrevistados diziam “confiar muito” nas Forças Armadas. Esse índice teve queda de 10 pontos percentuais e chegou a 33% em agosto deste ano.

Parte dessa queda se deve aos eleitores de Bolsonaro, que se sentiram “traídos” pela não adesão ao golpe. Mas o resultado mostra o dilema da caserna.

Como diz o dito popular, quando a política entra nos quartéis por uma porta, a disciplina sai pela outra. Por trás da crise está o papel hipertrofiado e indevido conquistado pelos militares no governo Bolsonaro.

Resta ao governo Lula o dever (e a habilidade) de recolocar as Forças Armadas no trilho institucional, no respeito à democracia e na profissionalização no seu papel de Defesa, como estabelece a Constituição.

Os militares que são tão ciosos com o respeito às regras deveriam ser os primeiros interessados em acertar contas com a sociedade.

Colaborou Gabriela Rölke