Cultura

Na música e na literatura, encontros de gigantes

A noite em que Frank Sinatra e Carlos Gardel se encontraram em um camarim de TV em Nova York inspira filme que combina humor e profundidade emocional

Crédito:  Divulgação, Collection Roger Viollet/AFP

Cena de 'Quando Frank Conheceu Carlitos': encontro fortuito rendeu um filme sensível (Crédito: Divulgação, Collection Roger Viollet/AFP )

Por Felipe Machado

Entre janeiro e maio de 1934, o ídolo argentino Carlos Gardel se apresentou diversas vezes em um programa de TV gravado nos estúdios da NBC, em Nova York. No final de 1933, ele partira de navio de Buenos Aires rumo aos EUA com o objetivo de se tornar um astro de Hollywood. Havia apenas um problema: Gardel, então com 44 anos, não falava uma palavra em inglês. Arriscou-se a gravar um disco no idioma, mas a qualidade ficou tão baixa que ele não foi sequer lançado até meados dos anos 1980 – e, quando veio a público, a única justificativa deveu-se ao valor histórico. Após uma dessas sessões da NBC, um jovem de 19 anos entrou em seu camarim. Era raro, uma vez que apenas garotas disputavam entre si para ver o “grande barítono de River Plate”. O fã, então, disse que o admirava e que queria seguir na carreira artística. Seu nome era Francis Albert Sinatra — consagrado, mais tarde, como Frank Sinatra.

O encontro das duas maiores vozes das Américas foi o ponto de partida para o delicioso Quando Frank Conheceu Carlitos (Disney+), longa ficcional inspirado no episódio. O filme é uma jornada emocional sobre uma suposta relação entre os dois protagonistas, interpretados por Oscar Lajad e Pablo Turturiello.

É provável que o tal encontro tenha realmente acontecido, mas, a partir daí, é tudo ficção. Não há nenhum problema nisso, até porque a suposta amizade é apenas um subterfúgio para ouvi-los cantar.

Aí está o mérito de Lajad e Turturiello: artistas com grande experiência em teatro musical, conseguem simular de forma surpreendente os estilos de Gardel e Sinatra.

Uma das maiores conquistas da produção é equilibrar leveza e humor com profundidade emocional. Há cenas que nos fazem rir com as diferenças cômicas entre os personagens, e outras que nos deixam com os olhos marejados quando exploram os desafios que ambos enfrentam em suas vidas pessoais.

Caminhos opostos

Influenciado por Gardel ou não, Sinatra saiu daquele camarim e trilhou uma carreira excepcional. No ano seguinte ao episódio na NBC, conseguiu seu primeiro emprego como crooner na The Hoboken Four, uma banda de sua cidade natal, Hoboken, localizada em New Jersey.

Ao contrário do que muitos pensam, Sinatra nasceu no estado vizinho àquele que lhe rendeu o maior sucesso de sua carreira — “New York, New York”. O caminho até o estrelato, no entanto, não foi fácil.

O cantor teve de lidar com a rejeição de diversas gravadoras, que não acreditavam que sua voz se encaixava nos padrões da época. Sua aparência franzina e a origem ítalo-americana também eram desafios em uma indústria musical dominada pelos padrões da época.

Sua persistência, porém, foi inabalável. Continuou:
* aprimorando suas habilidades vocais,
* estudando os ídolos do período — Gardel, inclusive —
* e refinando os traços de seu estilo pessoal.

Sua determinação logo começou a dar frutos: foi finalmente contratado pela gravadora Columbia Records, em 1943. Ainda levaria três anos para lançar o primeiro álbum, The Voice of Frank Sinatra — o resto é história.

Quando encontrou Sinatra, Gardel já era um dos mais famosos cantores e ícones culturais da Argentina. Atingira o auge de sua carreira na década de 1920, quando foi convidado para apresentar-se no México, Espanha, França, Itália, Alemanha e Brasil.

Seu prestígio era tão grande que recebeu convites para participar de filmes de Hollywood, mesmo sem ser ator. Apareceu em Luzes de Buenos Aires, filmado em Paris, em 1931, e Melodía de Arrabal, no ano seguinte. Tentou aproveitar o embalo para engatar uma carreira em inglês, mas a decepção com o fracasso atingiu seu ego em cheio.

Outro desafio foi a evolução da tecnologia de gravação. A ascensão da era do rádio mudou drasticamente a maneira como a música era consumida.

Gardel lutava com questões de saúde, que muitas vezes o levaram a fazer pausas forçadas. Infelizmente não houve tempo para sua recuperação: no ano seguinte, em 1935, sua vida foi tragicamente interrompida em um acidente de avião.

Sua morte prematura, aos 44 anos, foi um golpe devastador para o mundo da música e para seus inúmeros admiradores. Seu legado, no entanto, vive nas canções imortais e da influência duradoura na música latino-americana e global. Sinatra e Gardel se foram, mas suas vozes continuarão soando eternamente — para nosso deleite.

Borges & Bioy: ‘Terceiro autor’

Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares: junção de estilos (Crédito:Divulgação)

Não foram apenas os gigantes da música que se encontraram nos anos 1930. Em uma noite de 1936, os escritores Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares se reuniam ao redor da mesa na fazenda dos Casares. Foi quando um tio do anfitrião, dono da próspera companhia leiteira La Martona, pediu aos escritores para criarem um material publicitário para sua empresa.

Os dois começaram a inventar uma história complexa sobre a longevidade de uma tal família Petkof, formada por onze irmãos que viviam na Bulgária e que chegaram aos cem anos graças aos benefícios dos laticínios.

A publicidade não foi aprovada, mas nascia ali uma das mais importantes parcerias da literatura mundial. Borges & Bioy – Obra Completa em Colaboração reúne todos os romances, contos, crônicas e textos escritos pela dupla.

O crítico francês Michel Lafon declarou que a escrita conjunta “não a mera superposição da voz dos autores, mas sua transcendência.” Juntos, não pendiam para o estilo de um, nem para a linguagem do outro: criavam uma outra voz única e original, o “terceiro autor”, como dizia o conterrâneo Alan Pauls.