Cultura

‘Quase nada mudou desde a morte de Ângela Diniz’, diz Isis Valverde, atriz de ‘Angela’

Crédito: Marco Ankosqui

“Torço para que a história que estamos contando possa ajudar mulheres que vivem situações de abuso a buscarem ajuda”, diz a atriz Isis Valverde, protagonista de 'Angela' (Crédito: Marco Ankosqui)

Por Luiz Cesar Pimentel

Na antevéspera do réveillon de 1977, a socialite Ângela Diniz foi morta com quatro tiros pelo namorado, Raul do Amaral Street, conhecido como Doca Street, em Búzios (RJ), e o julgamento do caso transformou-a em mártir involuntária do movimento feminista no Brasil. Quase cinco décadas depois, pouca coisa mudou em relação aos privilégios dispensados aos homens em detrimento às mulheres brasileiras. Esta é a opinião da atriz Isis Valverde, que interpreta a vítima de um dos feminicídios mais famosos da história brasileira no longa “Angela”, que estreia dia 31. Os números cobrem a atriz de razão. Ano passado foi o recorde de mulheres mortas pelos companheiros por mera discriminação ao gênero — 1410 assassinatos, um crescimento de 5% sobre o ano anterior em oposição à curva de homicídios gerais, que caiu. O número fica ainda mais significativo diante da categorização do feminicídio como crime hediondo apenas em 2015. Sem contar que a condenação branda do assassino de Ângela — três anos em regime fechado, dois em semiaberto e dez em liberdade condicional — foi alcançada por “legítima defesa da honra”, argumento que o Supremo Tribunal Federal tornou inconstitucional apenas neste agosto de 2023. O filme somente cita as consequências do assassinato. Foca, especificamente, nos quatro meses de romance entre a apelidada “Pantera de Minas” e o playboy paulistano, como o relacionamento deteriorou em tão pouco tempo e culminou no assassinato, quando o algoz não aceitou o fim do namoro. ”Ela não teve escolhas. Eu sou muito privilegiada de poder escolher”, diz a atriz à ISTOÉ, em relação a Ângela, durante a entrevista que você lê a seguir.

Existem semelhanças na sua trajetória com a de Ângela Diniz – as duas são mineiras, nascidas em ambiente mais tradicional, mudaram para o Rio de Janeiro, onde passaram a frequentar o mundo artístico, e a naturalidade com que exibem o feminino de maneira poderosa. O que muda são as épocas e costumes relativos. Você teve a chance de fazer uma visita ao passado com o filme. O que traz de lá?
Eu percebo que, mesmo tratando de dois períodos com bastante diferença de tempo, as mais de quatro décadas entre os anos setenta e 2023, quase nada mudou. A diferença é que existe hoje um véu muito grande, tapando muita coisa, e que antigamente era tudo muito escancarado. A gente ainda está numa luta, numa busca de justiça social. A tese de que você mata uma mulher para proteger sua honra masculina caiu somente agora, em 2023, então até que ponto existe essa distância entre ela e eu? Tem muita coisa por que ela passou que eu passo até hoje. Ela foi uma mulher branca, privilegiada, de alta sociedade, que em algum momento se incomodou com o patriarcado. Ela não era preta e pobre, que foi vítima de feminicídio como a maioria das mulheres assassinadas atualmente. No ano passado, aconteceu um assassinato de mulher a cada seis horas, simplesmente porque eram mulheres. A gente está mais próximo da época que o filme retrata do que imaginamos.

Ângela Diniz era uma mulher muito livre, dona de si, e temos isso em comum (Crédito:UH/Folhapress)

Ângela Diniz alcançou uma dimensão popular semelhante à que você tem. A diferença é que ela teve esse potencial transformador depois de morta. E você está viva. Pensa nisso na condução de sua carreira e na dimensão de poder que tem de impacto na sociedade?
Temos que levar em conta que Ângela nunca pensou em influenciar ninguém. Ela estava pensando em viver os desejos dela, era uma mulher muito – e este é um termo que gosto muito – “desejante”, que desejava e cumpria os próprios impulsos. Isso era algo muito perigoso na época, o fato de você cumprir seus desejos. Nossos corpos são os desejos do outro, do masculino. A partir do momento em que esse corpo passa a desejar coisas próprias, ele se torna muito perigoso. Ela só queria viver a vida dela. Se você perguntasse para ela: “Você é feminista?”. Só para poder te provocar, ela diria: “não”. E ela era o próprio feminismo, ambulante. Ela era essa força feminina, a libertação em vida. Fazia coisas que não eram comuns à época, batia de frente com esses muros enormes masculinos que colocavam em seu caminho. Ela foi influenciadora sem querer. Já eu, como artista, estou aqui para fazer as pessoas elaborarem questões. O artista pensa muito no impacto que vai causar. Impacto e arte andam de mãos dadas, queremos elaborar pensamentos, sentimentos mais rebuscados. Eu sou uma comunicadora, escolhi esse lugar. Ela não. Nem o primeiro casamento ela escolheu, aos 17 anos (com Milton Villas Boas, que na época tinha 31 anos, com quem teve três filhos). Foram muitas escolhas que ela não teve. Eu sou muito privilegiada por poder escolher.

Ângela Diniz pode ser considerada mártir do movimento de valorização da mulher, do feminismo. O slogan que nasceu a partir de sua morte, “quem ama não mata”, vigora até hoje. Mas ela o foi involuntariamente. Considera que ela foi um exemplo de mulher (dentro do contexto da época)?
Na época ela não era exemplo. Ou melhor, era exemplo do que não fazer, segundo os manuais do machismo e patriarcado que vigoravam. Quanto mais calada, quanto menos a mulher mostrasse de si, melhor. Hoje a gente consegue enxergar essa luz do feminino, essa luta. Hoje nós buscamos espaço para nossa fala, para nossos desejos, nossos pensamentos. Com isso tudo conseguimos perceber que ela foi essa mulher que levantou muitas bandeiras necessárias sem saber que estava fazendo isso, sem saber a devida importância do que fazia. E isso é muito lindo, pois mostra esse espaço necessário independentemente de o protagonista ser homem ou mulher, pois muitas vezes o machismo vem da própria mulher. Pensamos pouco sobre isso. No caso dela, fica claro o retrato de uma sociedade que julgava, oprimia, apontava o dedo e foi pressionando essa mulher que estava sofrendo uma agressão que a levaria à morte.

Há uma frase no filme muito simbólica, quando ela diz: “Morro de medo do momento em que percebo no olhar do outro que não sou aquilo que ele esperava”. Esse sentimento de inadequação que permanece até hoje, foi um dos principais motivos que causaram a morte de Ângela e continua sendo gatilho para o feminicídio. Você concorda?
Não existe explicação ou desculpa para o feminicídio. Nada justifica. O mudar no olho do outro é esse lugar em que colocam a gente. Esse lugar de: “ela tem muitas ideias, ela fala muito, ela fala pouco, é muito gorda, é magra demais”. Sempre colocam um lugar de mudar no olho do outro na busca de uma perfeição exigida nesse conceito machista. A mulher tem sempre que estar em um lugar de perfeição, do contrário não tem valor. É quase como que se para ocupar nosso lugar tivéssemos que atingir a perfeição. Por isso não existe nada que justifique o feminicídio. Esse cenário tem que acabar. Hoje a pena para um homem que mata uma mulher é menor do que a sentença em qualquer outro assassinato. Começa por aí. Por que isso?

O filme fala muito sobre manifestar quem não se é dentro de uma relação passional. Sobre o fato de a balança complicada de relacionamentos revelar certas porções do ser humano que às vezes nem ele sabe possuir. O filme é relevante nesse sentido também?
Quem você é de verdade está sempre dentro de você mesmo. O filme aborda isso desde o começo, ao mostrar que o Raul (Doca Street, o assassino) era um cara que gostava de caçar elefantes. Qual é o prazer positivo que uma pessoa pode ter em matar um elefante? Tirar uma foto e exibir para os outros. Então o filme começa já mostrando quem ele era de verdade. Não foi a Ângela que fez com que ele tirasse a capa de príncipe e virasse um grande vilão. Ele sempre foi aquela pessoa, sempre teve aquilo dentro dele. Podia ser o cara que daria um tapa na cara de uma criança se ela falasse algo que não gostasse. Ele sempre esteve naquele lugar. O momento em que você mata alguém, que bate na cara de uma criança, derruba um idoso, bate na cara de um preto sendo branco, isso está dentro de você. Seja o racista ou o assassino. Não é o outro que causa a fúria. Esse lugar escuro sempre esteve dentro dele, aquele lugar machista, que colocava a mulher abaixo dele. No momento em que ele perdeu a chance de dominá-la, de exercer a soberania sobre esse tipo de crença que possuía, ele a matou.

Tivemos avanços significativos na questão de igualdade de gênero nos últimos anos, mas ainda busca-se um equilíbrio na questão. Há movimentos importantes, como o #metoo, mas também distorções. No tribunal digital houve uma certa valorização da exposição da vítima que pode levar à ideia de virtuosismo em se ter enfrentado injustiça por gênero, vinda da cultura “lacradora” de redes sociais. Você concorda?
Não olho pela vertente de que tal mulher fez algo para se vitimizar, gravou um vídeo falso, postou no Instagram, mentiu. Eu olho fatos e dados – e esses mostram que, de seis em seis horas, uma mulher morre em caso de feminicídio. Ninguém está morrendo de mentira. Por aí é que temos que olhar; não se uma mulher vai mentir para se projetar.

O Raul (Doca Street) sempre teve aquilo dentro dele. E as pessoas seguem achando que são donas de nossos corpos, de nossas vontades (Crédito:Marlene Bergamo)

Você assistiu Barbie?
Assisti (ri).

O que achou?
Achei tanta coisa, mas ainda não elaborei muito sobre isso. Fui assistir para ver que universo foi abordado no filme. Achei bem interessante. Necessário de alguma forma. Uma das melhores coisas foi o vídeo de uma menina de seis anos dizendo que a Barbie tinha ganhado vida (risos), chorando para valer. (Fala reproduzindo voz infantil) “A Barbie viveu. E ela não gosta do Ken!” Isso mostra que a menina ativou um lugar muito leve, de que um homem não foi o salvador da Barbie, e que a vida dela não era baseada em ser amada pelo Ken. Isso é muito importante para essa menina que está crescendo, mostra que ela pode ser independente, que pode ter uma profissão fora do mundo masculino que é comumente imposto.

Sobre a sua interpretação, apesar de a análise ser subjetiva, você está muito bem. Acredita que há personagens que revelam o melhor do ator?
Teve muito trabalho, na verdade. Muita entrega, física e mental. Fui muito disponível para o filme e muito aberta. Obrigada ao Hugo (Prata, diretor). A Fátima (Toledo, preparadora de elenco) arrasou. Fui estudar um tempo fora do país, estava me reinventando como atriz e o filme chegou em ótima hora.