Os muambeiros do planalto

Crédito: Cristiano Mariz/O Globo

Jair Bolsonaro na cerimônia de Santa Ceia da frente parlamentar evangélica: só encenação (Crédito: Cristiano Mariz/O Globo)

Por Carlos José Marques

Em um dos episódios mais escrachados de desvio do dinheiro público – com provas abundantes, capazes de corar de vergonha até mesmo ladravazes experientes, e um roteiro detalhado do esquema montado pelos próprios operadores do ardil – o ex-presidente Bolsonaro e seu bando buscaram se locupletar com o tráfico de joias presenteadas ao Estado brasileiro. É tão baixa e vil a tramoia criada e o quilate dos agentes envolvidos que nem mesmo nas histórias das Mil e Uma Noites assistiu-se a algo igual. Militares de quatro costados, advogado particular intermediando recompra da mercadoria para obstruir provas e o próprio presidente da República sendo o destinatário final e mentor dos desvios tornam o caso um exemplo clássico de corrupção e lavagem de dinheiro que tanto tem impregnado as entranhas do Poder no País. A combinação de nomes graúdos com artimanhas típicas de bandidos de segunda categoria inclui lojinhas de compra e venda de ouro norte-americanas, leilões online, contrabando viabilizado em voos oficiais do chefe da Nação nas missões a trabalho, rastros de toda a natureza em e-mails, mapas de Waze, mensagens de WhatsApp e até atravessadores do submundo. Estava ali desenhado um feirão de negociatas no padrão de uma xepa a preços de ocasião. De Rolex a esculturas, de colares a abotoaduras preciosas, a carga comercializada gerou milhões aos bolsos dos mentores, classificados pela Polícia Federal como uma autêntica organização criminosa. Como chegaram tão baixo? A quebra de sigilo bancário e telefônico do ex-mandatário e de sua mulher, ouvidos pela enésima vez pela Polícia Federal, dada a quantidade de irregularidades nas quais são suspeitos de estarem metidos para angariar vantagens, já está no radar. Juristas apontam, unanimemente, a existência de um volume animal de evidências, suficientes para requisitar a prisão preventiva do Messias “mito”. Está, decerto, caindo de madura a decisão nesse sentido. A PF quer investigar também os motivos da imensurável benevolência dos presentes valiosos concedidos pelos árabes às comitivas do capitão. Pesam suspeitas, fundamentadas, de que foram dados em troca de benefícios ilegais lançados pelo governo brasileiro em alguns dos acordos firmados lá atrás — incluindo descontos bastante generosos no preço de uma refinaria colocada à venda e adquirida por eles. Os trambiques, ao que parece, são caudalosos, cabeludos. A tropa de choque do Planalto, sob comando de Bolsonaro, agia de maneira vulgar, quase amadora, e suas práticas terão um efeito devastador, como legado, especialmente sobre as pretensões políticas de reeleição do capitão. Não por acaso, o nome de Bolsonaro é citado nada menos que 93 vezes nas 105 páginas do relatório de investigação, afastando qualquer dúvida quanto ao seu envolvimento. Ainda difícil de acreditar, dado o enredo, a história reforça a surrada pecha de republiqueta das bananas incrustada na imagem do Brasil há algumas décadas. A contribuição inestimável do ex-presidente nesse sentido reforça um modus operandi dele e dos familiares – já conhecidos por laranjais, com funcionários tendo de repassar parte do salário, e pela compra de apoios com lingotes de ouro –, que tem no dinheiro vivo a forma mais usual de pagamento, por exigência do próprio, que costumava comprar imóveis em cash para ampliar o patrimônio. É espantosa a facilidade como o clã bolsonarista recorre a práticas deletérias que reforçam cada vez mais seu caixa particular — novamente engordado há pouco tempo com nada menos que R$ 17 milhões doados, de forma pouco clara nas movimentações, por fanáticos fiéis, via PIX. Não há dúvida, o chamado “mito” soube transformar o poder federal em fonte inesgotável de arrecadação para o enriquecimento pessoal, numa mistura despudorada do público com o privado. É um talento nato nesse aspecto. Dá para imaginar até onde ele seria capaz de chegar se continuasse no posto para um segundo mandato. No padrão de arrivistas do naipe de Papa Doc, Idi Amin Dada, Kadafi e Ferdinand Marcos, transformaria o centro do poder em um prostíbulo de esqueminhas sem fim. Estava roteirizado. Pelos quatro anos de sua fulgurante passagem pelo poder construiu uma ficha criminal – ele e asseclas de sempre – que não é nada pequena. O Messias do Planalto, pode-se apontar sem medo de errar, é um trambiqueiro incorrigível. Além de golpista e genocida, a alcunha de contrabandista internacional de joias passa a ser definitivamente incorporada ao seu plantel. Muitos querem a retenção de seu passaporte e o da mulher, dado o risco concreto de uma fuga, pedindo asilo em um país simpático. Não é nada descartável a ideia de ele dar no pé após tantas evidências das gatunagens praticadas. Todo cuidado é pouco com esse fujão contumaz, capaz das mais diabólicas rapinagens que a República já sofreu.