Comportamento

Arquitetura e arte: uma casa, muitas histórias

Mostra reúne artistas de diferentes décadas em residência projetada por Vilanova Artigas na década de 1970, escancarando importância da preservação de obras de arte e arquitetônicas

Crédito: João Castellano

Entre décadas: obra do argentino Tomás Saraceno integra núcleo ao lado de Tunga e Maria Martins (Crédito: João Castellano)

Por Ana Mosquera 

ABERTO 02. É esse o nome da exposição que reúne obras de artistas de diferentes gerações, estilos, temas e origens em uma das casas mais emblemáticas da arquitetura paulistana. A residência foi projetada pelo arquiteto João Batista Vilanova Artigas em 1974, no Alto da Boa Vista, para abrigar Lydia e Alfred Domschke e suas filhas. As famílias eram amigas e quem se embrenha no espaço logo percebe essa teia de relações, encorpada pelas peças de arte que tomam o lugar do mobiliário original. Ainda que hoje pareça feita para receber a exposição, o elemento “casa” segue muito vivo no ambiente de 700 m2.

A designer e curadora Claudia Moreira Salles diz que consegue enxergar moradores ali, o casal Domschke e suas filhas que dividiam quartos, armários e banheiros coloridos, hoje adornados por quadros de Ana Elisa Egreja, conhecida por retratar esse tipo de ambiente. “A casa tem essa circulação que o (francês) Le Corbusier chamava de passeio arquitetural. Apesar do concreto e do vidro, ela pode ficar acolhedora”, diz.

Décadas depois, é a vez de o espaço acolher artistas consagrados, como Tarsila do Amaral e Edgar Degas, e novos nomes da cena internacional, como Lucas Arruda e Antonio Tarsis.

“Dar essa vocação para a casa é muito importante, para a família, para estudantes e para o País ter seu acervo cultural preservado.” Segundo Claudia, depois de esvaziada, a casa foi se transformando a partir da inserção de cada obra. “Quando você coloca peças que têm expressão, textura e cor sobre todo esse concreto aparente, a casa toma vida.”

O artista Marcius Galan, que possui três quadros no corredor que une os antigos quartos, reflete sobre a harmonia final. “Os núcleos fazem sentido como coleções, como se fossem de um morador.”

Anos 1960: Artigas projetou prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (Crédito:Luiz Saez Parra)

Além do concreto armado, a espacialidade contínua e as rampas, semelhantes às incluídas no projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, compõem a estrutura projetada pelo arquiteto que liderou a Escola Paulista.

Alguns elementos fogem à estética brutalista do movimento, como o uso das cores nos banheiros, corredores e no vitral que liga a garagem ao jardim hoje repleto de esculturas. Essa espécie de liberdade é reforçada por obras como as de Galan.

“Escolhi usar cores que mimetizam com a casa, mas que também geram contraste. No fim, optei por trabalhos mais silenciosos e que se conectam com o lugar pela questão cromática.” Ele faz parte da leva de contemporâneos escolhidos para compor a mostra bem perto de ícones como o carioca Heitor dos Prazeres e Alexander Calder, conhecido por criar móbiles de variados tamanhos, pesos e formas.

“Escolhemos novos artistas que dialogam com o espaço da casa ou com a própria arquitetura. As obras de nomes consagrados vêm para fazer com que as pessoas saiam de casa para ver a exposição”, pontua Filipe Assis, curador e idealizador de ABERTO 02.

Jardim de esculturas: Francisco Brennand (à frente), Los Carpinteros (ao meio) e Davi de Jesus do Nascimento (ao fundo) (Crédito:João Castellano)

Lydia Domschke, que ali viveu até setembro do último ano, ocasião de sua morte, era bióloga e se preocupou em cultivar árvores frutíferas, assim como as volumosas folhagens restauradas que tomam os jardins. Virginia Artigas, esposa do arquiteto, era artista e apreciava a cultura popular, tendo ganhado uma sala com seu nome e peças artísticas relacionadas ao tema.

Marcius Galan, que integra o quadro da mostra, está acostumado a olhar para a arquitetura dos espaços onde apresenta seu trabalho.

Diálogo com espaço: curador Filipe Assis em banco de Amelia Toledo, cercado por cobogó de Humberto Campana (Crédito:João Castellano)

Teia de relações

São inúmeras as relações criadas por meio das obras que ocupam o mesmo espaço, mas que atravessam o tempo, conectando nomes de diferentes movimentos artísticos.

Há um fio condutor entre as diferentes épocas, como lembra Claudia. “É possível ver uma conexão grande entre artistas e obras, porque, às vezes, há uma mesma maneira de olhar o mundo.”

A mostra acende uma luz para os artistas, mas coloca o holofote sobre o arquiteto. “A exposição tem como papel atrair a atenção para esses tipos de casa da arquitetura moderna, que estão sendo perdidas para a especulação imobiliária”, comenta Filipe sobre a oportunidade de ocupar esse espaço com a segunda edição de ABERTO, que também conta com a curadoria de Kiki Mazzucchelli.

“Essas casas, por várias questões, como manutenção, correm o risco de serem demolidas se não são tombadas.”
Claudia Moreira Salles, designer e curadora

ABERTO 02 vai até 17 de setembro, na Rua Comendador Elias Zarzur, 2036, em São Paulo.