A República degradada
Piora muito a situação jurídica de Jair Bolsonaro com as revelações da operação desastrada para apagar os rastros de negócios ilegais com joias recebidas no exterior. O esquema tinha um general quatro estrelas, o que colocou a crise no colo do Exército. E o quadro se agravou com o depoimento do hacker da Vaza Jato, Walter Delgatti Neto, na CPMI dos Atos Golpistas. O investigado disse que o ex-presidente grampeou o ministro Alexandre de Moraes e ofereceu indulto se ele invadisse o sistema de urnas eletrônicas
Por Marcos Strecker e Gabriela Rölke
Poucas vezes o poder central foi tão aviltado no Brasil. A Polícia Federal e o Supremo Tribunal Federal avançaram várias casas na apuração dos desmandos na última gestão ao expor de forma vergonhosa (para Jair Bolsonaro) e constrangedora (para a população) um esquema vulgar de venda de joias recebidas pelo capitão reformado na condição de presidente. Nada semelhante existiu desde que Dom João VI mandou esvaziar os cofres do Banco do Brasil em 1821, quando retornou às pressas a Portugal com a pilhagem. Pelo menos o monarca fundou a primeira instituição financeira (ela quebrou e precisou ser recriada em 1851), lançou as bases da Nação e deixou a biblioteca real. Já Bolsonaro embarcou seu butim à sorrelfa no bagageiro do avião presidencial dois dias antes de perder o cargo e transformou o ouro recebido em dinheiro vivo no exterior, driblando a aduana. Nove dias depois, seus seguidores depredaram os palácios da capital e roubaram tudo o que encontraram pela frente. E as revelações sobre o capitão não param de surpreender.
Depois da descoberta de rachadinhas e lucrativos negócios imobiliários, agora a Polícia Federal demonstrou que Bolsonaro protagonizou um rasteiro esquema para aproveitar presentes recebidos de autoridades estrangeiras — as evidências são de peculato e lavagem de dinheiro, dizem os investigadores.
A última batota bolsonarista gerou a Operação Lucas 12:2 da PF. No dia 11, a corporação fez buscas em endereços ligados ao ex-ajudante de ordens Mauro Cid, ao seu pai, general Mauro Cesar Lourena Cid, ao advogado Frederick Wassef e ao tenente Osmar Crivelatti, auxiliar do ex-presidente após este deixar o Planalto.
Com fartas evidências, como recibos, fotos, emails e mensagens de celular, os policiais mostraram que o grupo desviava joias, relógios, esculturas e outros itens de luxo recebidos pelo capitão na condição de chefe do Estado.
Há indícios de que o plano ocorreu por “determinação” do ex-mandatário, segundo o ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito no STF. Para a PF, o objetivo era o “enriquecimento ilícito do ex-presidente”.
Os bens foram levados ilegalmente para o exterior no avião presidencial em pelo menos duas ocasiões: em junho de 2022, quando Bolsonaro viajou para Los Angeles, e em dezembro, quando foi para Miami.
Foram desviados pelo menos dois conjuntos de joias e relógios — um de ouro branco e outro de ouro rosé, presenteados pela Arábia Saudita.
O grupo também tentou ganhar dinheiro com a venda de dois presentes do Bahrein: um conjunto de esculturas de metal e um relógio Patek Philippe.
Nos EUA, um Rolex do conjunto de ouro branco foi vendido à parte. A venda, feita em junho do ano passado, foi conduzida por Mauro Cid. A loja, Precision Watches, comprou também o Patek Philippe — os dois relógios renderam US$ 68 mil (cerca de R$ 340 mil).
O dinheiro foi parar na conta do pai do oficial, o general Lourena Cid, de onde teria sido entregue em espécie para Bolsonaro. Em março passado, quando o caso já estava em análise no TCU, que determinou a devolução das joias, o Rolex foi resgatado por Wassef.
Já o conjunto de ouro rosé foi para os EUA no compartimento de bagagem do avião que levou Bolsonaro a Miami no dia 30 de dezembro. Foi oferecido em leilão em um site americano por US$ 120 mil, mas não houve interessados.
Quanto ao conjunto de esculturas, formado por um barco e uma palmeira de metal dourado, foi encaminhado para avaliação em lojas que comercializam pedras e metais preciosos em Miami. Mas eram de latão. “Não são de ouro. Não estou conseguindo vender”, relatou Cid a um auxiliar.
Essa apuração não representa um desdobramento qualquer. A operação integra o inquérito das Milícias Digitais, que começa a completar um quadro mais completo da organização criminosa que seria liderada por Bolsonaro.
São cinco eixos principais de atuação:
* ataques virtuais a opositores (como na atuação do “gabinete do ódio”),
* ataques às instituições (STF e TSE) e ao processo eleitoral,
* tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito,
* ataques às medidas sanitárias na pandemia,
* e, por fim, uso da estrutura de Estado para obtenção de vantagens.
Esse último item, que já compreendia o uso de cartões corporativos para despesas pessoais, inclui agora o escândalo das joias.
O organograma do grupo tem outros personagens cada vez mais enrolados na Justiça. O ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal Silvinei Vasques foi preso no dia 9, suspeito de interferir no segundo turno das eleições do ano passado, quando a corporação que comandava realizou mais de 500 operações no transporte de eleitores em diversas estradas do País — a intenção seria dificultar o deslocamento de eleitores em regiões com mais simpatizantes do PT.
Outro bolsonarista com problemas crescentes é o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, que foi preso após o 8 de janeiro, suspeito de envolvimento nos ataques (foi depois liberado com tornozeleira).
Todo o entorno do capitão está cada vez mais enredado nas investigações. E os militares ficam cada vez mais comprometidos.
O Coaf apurou que seis ex-ajudantes de ordens de Bolsonaro, todos fardados, movimentaram R$ 11,8 milhões apenas entre janeiro de 2022 e maio de 2023, segundo relatório em poder da CPMI dos Atos Golpistas. É um espanto, dado que recebiam salários entre R$ 10 mil e R$ 27 mil.
Todos faziam parte das comitivas de viagens internacionais do então presidente. A comissão descobriu, a partir da quebra do sigilo fiscal do ex-ajudante de ordens, que sua movimentação era bem maior do que já se sabia.
Em três anos, entre 2020 e 2022, o oficial movimentou R$ 8,4 milhões em suas contas, valor incompatível com sua renda, já que ele declarou que tinha rendimentos médios tributáveis anuais de R$ 318 mil.
As contas operadas por ele na qualidade de procurador de Bolsonaro receberam um total de R$ 1,1 milhão em três anos. Na operação Lucas 12:2, policiais apontaram indícios de que Cid, seu pai, e outros militares sacaram dinheiro em espécie e depositaram ou entregaram para o ex-presidente e Michelle.
Tensão na caserna
Com esse último escândalo, em especial, aumentou a tensão na caserna, já que o pai de Mauro Cid, o general Lourena Cid, é um quatro estrelas que pertenceu ao Alto-Comando do Exército antes de ser indicado por Bolsonaro para a chefia do escritório da Apex em Miami.
Ele era um interlocutor dos generais mais estrelados, da ativa e reformados. Por isso, a apreensão de um HD e do seu celular no dia 11 provoca arrepios entre oficiais pelo potencial explosivo se eventualmente foram encontradas mensagens de teor golpista.
Antes das diligências, para evitar mal-entendidos, o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, ligou para o comandante do Exército, Tomás Paiva, e para o ministro da Defesa, José Mucio, comunicando a deflagração da operação, já que envolvia militares.
No mesmo dia, o Exército divulgou um comunicado informando que estava acompanhando as diligências e colaborando com as investigações, destacando o respeito às instituições e ressaltando que “não compactua com eventuais desvios de conduta de quaisquer de seus integrantes”.
O fato de Lourena Cid ter virado alvo da operação jogou a crise no colo do Exército, que vinha tentando preservar sua imagem institucional e se isolar dos crimes de Bolsonaro. O envolvimento de um general do topo da hierarquia com relógios e joias desviadas é um constrangimento enorme e pode jogar esse esforço por terra.
Esse não é o único risco para o ex-presidente. A situação de Lourena Cid piora a tensão entre sua família e Bolsonaro. O general teria aumentado a pressão sobre o ex-presidente e o Comando do Exército tentando aliviar a situação de seu filho, que está detido desde 3 de maio.
Não só o filho permaneceu preso, como ele próprio se complicou. O ex-ajudante de ordens perdeu o seu advogado, Bernardo Fenelon, que deixou de atender o cliente por “quebra de confiança”.
O seu novo advogado, Cezar Bitencourt, o terceiro criminalista a defendê-lo, disse que o cliente “era um assessor, e é da formação militar respeitar a hierarquia”. É uma inflexão, tudo indica, na linha de defesa do oficial, que poderá responsabilizar o ex-chefe ao narrar que apenas cumpria ordens.
Esse advogado é um crítico da delação premiada, mas não descartou o uso desse recurso se for necessário para livrar Mauro Cid. É o maior temor de Bolsonaro.
Wassef se contradiz
A comissão de frente do bloco bolsonarista saiu ainda mais chamuscada do episódio. Frederick Wassef tentou se desvincular das negociatas com presentes diplomáticos. No dia 13, disse que nunca tinha participado de nenhuma negociação de joias e que era alvo de “uma campanha de fake news”.
Mas acabou desmentido pela PF dois dias depois. Admitiu que recomprou um Rolex recebido por Bolsonaro e vendido nos EUA. Não tinha outra saída, já que a PF tinha o recibo de compra com o seu nome. E o documento tinha o nome de um interlocutor de Mauro Cid.
O cavalo de pau retórico do advogado piorou a situação do ex-ajudante de ordens e foi considerado um desastre. Wassef afirmou que usou seus próprios recursos e que tomou uma decisão de “caráter legal e lícita”.
Para a PF, o advogado atuou com o objetivo de “escamotear das autoridades a evasão e venda ilícitas dos bens no exterior” juntamente com Cid.
Ampliando o constrangimento, Wassef teve quatro celulares apreendidos por agentes da PF quando jantava na noite de quarta-feira em uma restaurante no shopping Morumbi, em São Paulo.
A fidelidade canina e a ansiedade para acobertar as velhacarias de Bolsonaro acabaram aprofundando o escândalo, como aconteceu quando Wassef foi desmascarado escondendo o então foragido Fabrício Queiroz em sua casa em Atibaia (SP).
Esse papelão irritou até outros auxiliares do ex-chefe do Executivo. O celular de Mauro Cid revelou que Fabio Wajngarten, advogado e ex-chefe da Secom, irritou-se com a tentativa de Wassef de reaver as joias. “É burro demais, contaminado”, disse sobre Wassef.
A conclusão é que a “operação resgate”, para tentar reaver as joias vendidas e devolvê-las ao patrimônio público, virou uma operação tabajara, pois todos deixaram rastros sobre a comercialização das peças e mostraram que estavam tentando desesperadamente reaver os presentes para evitar a punição.
O reflexo do rosto do general Lourena Cid na embalagem de uma das joias que seriam negociadas, por exemplo, é um fiasco que facilitou o trabalho dos investigadores.
Hacker com Bolsonaro
O caso ainda terá repercussões, na esfera judicial mas também no mundo político. Membros da CPMI dos Atos Golpistas tentaram incorporar nos trabalhos a apuração sobre as joias, apesar de seu presidente, Arthur Maia (União), ter descartado a inclusão.
Mas a comissão está piorando a situação de Bolsonaro, mesmo com a tentativa de esvaziamento. Na quinta-feira, 17, o hacker da Vaza Jato, Walter Delgatti Neto, relatou em depoimento que o ex-presidente ofereceu indulto a ele se invadisse o sistema de urnas eletrônicas.
Também revelou que o ex-mandatário já tinha grampeado o ministro Alexandre de Moraes. É uma afirmação gravíssima: a confirmação de que a ordem para os crimes partiu do próprio Planalto.
O hacker ainda admitiu que recebeu da deputada Carla Zambelli (PL) um pagamento para invadir os computadores do Judiciário. Com isso, cresce a octanagem da crise.
Do outro lado da Praça dos Três Poderes, as punições avançam céleres. Moraes afirmou que em até seis meses serão julgados 250 réus suspeitos de envolvimento no 8 de janeiro. Mas é o núcleo da “organização criminosa”, investigada no inquérito das Milícias Digitais, que deve temer mais.
A patuscada muambeira piorou muito a situação do próprio Bolsonaro. Seu nome aparece 93 vezes na decisão do STF que autorizou a Operação Lucas 12:2.
O ministro Alexandre de Moraes deve decidir em breve sobre o pedido da PF para que sejam quebrados os sigilos fiscal e bancário de Bolsonaro e da ex-primeira-dama Michelle.
Aumentou a probabilidade de o ex-presidente ser preso, o que passou a levantar a suspeita de que possa fugir. A hipótese, antes tratada como remota, passou a ser considerada cada vez mais como uma possibilidade concreta no círculo de pessoas mais próximas dele.
Por isso, juristas como Wálter Maierovitch defendem que seu passaporte seja retido.
O último escândalo também teria abatido o capitão mais do que os outros problemas que ele enfrentou, inclusive a decisão do TSE que o tornou inelegível por oito anos.
Os aliados de Bolsonaro já não discutem a possibilidade de detenção, mas o que farão para tentar apoiá-lo quando a decisão for tomada.