Internacional

A Argentina terá seu Bolsonaro?

O ultrarradical Javier Milei surfa na crise e vence as primárias que antecedem as eleições presidenciais, tornando-se o favorito para ocupar a Casa Rosada. O resultado causa um choque na economia e pode favorecer os conservadores

Crédito: Alejandro Pagni

Javier Milei teve o Brasil como laboratório para seu discurso populista e agressivo (Crédito: Alejandro Pagni)

Por Denise Mirás

Com mais de 30% dos votos nas eleições prévias à Presidência da Argentina, o histriônico Javier Milei segue cada passo da agressiva cartilha da extrema-direita. Antes mesmo das eleições gerais de 22 de outubro (que podem ter um segundo turno em 19 de novembro), o candidato já se autoproclama vencedor e declara que “só morto” deixará a Casa Rosada, sede do governo. O desfecho fez o dólar disparar ainda mais (bateu nos 750 pesos no mercado paralelo).

A porcentagem de votos vistos como “emotivos” ou “indignados” contra os políticos tradicionais se equiparou à abstenção recorde, que também passou dos 30%, mesmo com comparecimento obrigatório no dia 13.

De toda forma e a propósito da avalanche de votos em Milei, Flavia Loss, doutoranda pelo Instituto de Relações Internacionais pela USP, destaca que radicais como ele não estão sozinhos e “não dá mais para analisar a extrema-direita de maneira isolada, em cada país”.

Trata-se de um fenômeno global, afirma, de internacionalização de uma corrente política que se estrutura na Conferência de Ação Política Conservadora (a CPAC, na sigla em inglês, foi criada em 1973, nos EUA) e reúne radicais como Donald Trump e também o ex-presidente Jair Bolsonaro.

“No encontro no México, em 2022, um dos destaques entre os palestrantes foi o próprio Milei, a convite do Eduardo Bolsonaro”, lembra Flavia.

“A mídia no Brasil olha pouco para a América Latina, dá pouca atenção para esse assunto, mas existe, sim, uma cartilha da extrema-direita. E a articulação é grande em termos de estratégias políticas para vencer eleições. Isso deve ser ressaltado.”
Flavia Loss, doutoranda pelo Instituto de Relações Internacionais pela USP

Em meio à catastrófica situação da Argentina, com seu Banco Central (BCRA) projetando a inflação para 148,9% em dezembro, é evidente que a economia pesou nas PASO (como as prévias são chamadas no país).

“O voto em Milei é de um povo cansado de crises. Os argentinos passaram por algo parecido entre 1999 e 2002, quando tiveram cinco presidentes em 12 dias, de 21 de dezembro de 2001 a 1º de janeiro de 2002”, como observa Flavia.

“Aquele momento, de centro-esquerda na América Latina, favoreceu o fenômeno do kirchnerismo na Argentina. Agora, a crise favorece um outsider, como já vimos em outras ocasiões, que se diz antielite, antissistema e que vem com propostas mirabolantes.”

Mas, para a professora, se a economia é a grande fagulha para o voto radical, existe outro componente importante no país, explorado pela extrema-direita: a violência que cresce e assusta a população.

Há também o sinal de alerta sobre movimentação de cartéis mexicanos do narcotráfico em Salta, norte do país, ainda que discreta em relação aos países andinos.

Patricia Bullrich, de direita, e Sergio Massa, candidato kirchnerista, têm dois meses para brigar por um segundo turno, em novembro (Crédito:Natacha Pisarenko)
(Ignacio Moulia)

‘Passaram’ cinco

É em meio a esse cenário que Milei, do Libertad Avanza, recebeu em torno de 7 milhões ou 30% dos votos. Dos candidatos do Juntos por el Cambio, Patrícia Bullrich (que pode ser uma grande surpresa na eleição presidencial) bateu nos 17%, surpreendendo seu concorrente dentro do partido Horacio Rodríguez Larreta, que ficou nos 12% — essa legenda, que é a mesma do ex-presidente Mauricio Macri, somou 29% das intenções.

À frente, portanto, do Unión por la Patria, do governista Sergio Massac, com 21%, e seu concorrente, Juan Grabois, com menos de 6%.

Assim, para 22 de outubro seguem Milei, Bullrich e Massa, mais o peronista Juan Schiaretti, do Partido Justicialista, com perto de 4%, e Myrian Bregman, da Frente de Izquierda y de Trabajadores — Unidad, com menos de 3%.

“A polarização entre peronismo e a vertente mais à direita ganhou um novo pilar, da extrema-direita, que por sua vez teve o Brasil como grande laboratório”, diz Flavia.

Para ela, Milei também se servirá da retórica populista de agressividade, do “discurso que assusta e atrai”. Massa, ministro da Economia, está em pior situação, avalia, porque não entregou o que os argentinos queriam e não poderá contar com o presidente Alberto Fernández, altamente impopular (“no máximo, com a Cristina Kirchner”).

Sobre Patricia Bullrich, avalia que ela “talvez tenha sua chance” entre esquerda e ultradireita. Se Milei ganhar, pondera Flavia, não será fácil implantar sua agenda, porque existem freios para presidentes com propostas disruptivas. “O problema é que candidatos com esse discurso acabam fragilizando e corroendo as democracias, como se viu nos EUA e no Brasil. E poderemos ver na Argentina.”