Editorial

A insensata marcha contra o livro

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Carlos José Marques: "Aberração pedagógica em todos os sentidos" (Crédito: Divulgação)

Por Carlos José Marques

Foi concebida dias atrás uma das mais esdrúxulas ideias de que se tem notícia há muito tempo no plano da Educação no País. Talvez por birra ideológica ou até, provavelmente, por interesses muito específicos de alguns dos proponentes dessa bizarra alternativa, a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo resolveu simplesmente extinguir a distribuição de livros didáticos impressos, passando a adotar, em um lampejo de genialidade discutível, o ensino digital como fórmula básica e praticamente exclusiva de aprendizado para seus alunos. Seria modelo incorporado à grade já no ano letivo de 2024 — logo ali! Na prática, e no pano de fundo das movimentações que amparam esse desatino, está a decisão do governo paulista de não aderir ao Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) do MEC, dispensando a entrega federal de nada menos que 10 milhões de exemplares fornecidos gratuitamente. Trata-se de uma aberração pedagógica em todos os sentidos, um despropósito que amplia desigualdades e atenta contra os direitos mais elementares dos estudantes. Irresponsabilidade imperdoável seria a definição correta. Estabelecer um sistema de ensino digital, sem consultar o corpo docente e sem sequer considerar que não é feita uma transição didática dessa magnitude, do impresso ao digital, em um piscar de olhos, automaticamente, denota, no mínimo, falta de conhecimento da mecânica e complexidade do setor. E a formação acadêmica, como fica? No todo, há uma precariedade de motivos por trás da escolha e, ao tomá-la de afogadilho, o Estado deixou de considerar a necessária adaptação do material e até as revisões inevitáveis na forma de ensino que seriam exigidas em situações assim. O movimento foi tão absurdo que desconsiderou o fato de muitos dos alunos, especialmente do sistema público, não possuírem nem mesmo computador para tal aprendizado. O Estado iria disponibilizá-los? Imagina! Hoje, não está conseguindo comprar e fornecer o mínimo previsto que são os uniformes escolares e o material básico de uso (cadernos, lápis, réguas). O que dizer então de computador? Salta aos olhos outra procedente questão: seria esse um meio eficaz de ensino? O exemplo deixado pela experiência vivida durante o isolamento da Covid fala por si. Milhares de alunos ficaram sem aprender nada, sem entender ou mesmo ter acesso ao conteúdo. Um desastre cujas consequências ainda estão sendo completamente dimensionadas e que representou anos de atraso na formação dos estudantes. O governo alega que vai colocar mais computadores nas escolas. Resolverá em quê? A medida não contempla as necessidades básicas. Como o coitado do aluno vai, por exemplo, fazer os estudos em casa, ao lado do familiar ou responsável que normalmente o auxilia na tarefa? Como aprender sem um livro? E os impactos na saúde decorrentes de uma leitura sistêmica nos computadores, no caso de quem tiver a sorte do acesso? Diversos estudantes se queixaram de problemas de vista justamente depois que tiveram de fazer o aprendizado à distância durante a pandemia. No Estado com o maior número de estudantes públicos e privados do País – e, certamente, sendo milhares deles carentes – projeta-se um caos de proporções diluvianas. Diante da reação negativa, com manifestações das instituições de ensino e de entidades representativas dos professores, livreiros e quetais, o governador Tarcísio de Freitas voltou parcialmente atrás, alegando que será disponibilizada a alternativa de imprimir o material (a um custo, naturalmente, bem maior), o que decerto não equivale a fornecer o livro. Aulas apostiladas no lugar das obras completas e repletas de recursos de aprendizagem é um contrassenso reducionista, na base do ensinar o que cai na prova. Para se ter uma dimensão do disparate, escolas particulares de ponta usam os tais livros rejeitados, que o governo do senhor Tarcísio de Freitas dispensou sob a alegação de que não eram adequados. Tomando por base um caso internacional emblemático, mesmo a Suíça, que chegou a testar a tal transição para o digital – dentro de um planejamento muito mais detalhado, diga-se de passagem –, resolveu voltar atrás e resgatar o uso dos livros. Os principais autores do País são unânimes em apontar riscos no aprendizado, temendo a queda na qualidade e compreensão do que é ali lançado. O secretário da pasta, Renato Feder, que está à frente da pretendida mudança, figura como sócio, com quase um terço das ações, na empresa de tecnologia Multilaser e passou a ser investigado por conflito de interesse em contratos de fornecimento de notebooks. Complicado. Tudo conspira para a impressão de estar em marcha um retrocesso educacional grave. O ensino sem papel, dada a realidade brasileira, equivale a uma negligência inconcebível junto a uma parcela considerável dos discentes. Mal comparando: para muitos é como ter um carro sem rodas. Especialistas apontam que ferramentas de ensino analógicas e digitais são complementares e ainda serão por muito tempo indissociáveis. Levantamentos apontam que o aprendizado via computador vem gerando, invariavelmente, maior dispersão. Previsível pelo mar de opções que oferece. O quanto antes, o governo paulista deveria desistir dessa estultice, fruto da mente despreparada de quem acredita que slides em PowerPoint, como em uma “grande tv”, podem substituir a inestimável contribuição do papel e da caneta na absorção do conhecimento e das aulas. Um mínimo de lucidez, por favor!