Cultura

Obras de arte repatriadas: o resgate dos tesouros roubados

Chega ao Brasil a discussão sobre o retorno de bens culturais aos seus países de origem. O Itamaraty negocia a devolução de objetos em posse da França

Crédito: Divulgação

Tronco Kuarup, do Xingu: exposto indevidamente no Museu de História Natural da cidade francesa de Lille (Crédito: Divulgação)

Por Felipe Machado

No cenário cosmopolita das grandes cidades, galerias de arte, museus e colecionadores particulares abrigam tesouros culturais de diversas partes do mundo. Mas nem sempre a aquisição dessas peças foi feita de maneira ética e justa. Durante os séculos de expansão colonial, as potências europeias acumularam vastas coleções de arte, muitas vezes por meio de saques, pilhagens e apropriação indébita. Agora, essas obras estão retornando ao centro das discussões — e, cada vez mais, aos seus países de origem.

O Itamaraty confirmou à ISTOÉ que tem interesse na repatriação de objetos brasileiros no exterior, mas alerta que negociações dessa natureza estão sujeitas a circunstâncias dos países envolvidos.

“Assim, não é possível estimar com precisão o desfecho desses processos, nem possíveis datas de conclusão”, informa o Ministério das Relações Exteriores, responsável pela iniciativa.

O órgão, porém, confirma que está em fase avançada a negociação que envolve cerca de 600 itens etnográficos pertencentes ao Museu do Índio e localizados, no momento, no Museu de História Natural de Lille, na França: “A parte francesa manifestou-se de forma favorável à devolução dos itens ao Brasil. Estão sendo discutidos detalhes sobre os procedimentos de acondicionamento, transporte e desembaraço alfandegário das peças”.

Cerâmica feita pela tribo Carajá, da Amazônia: Itamaraty informa que a França já concordou em devolver os objetos ao Museu do Índio (Crédito:Divulgação)

O Brasil acaba de ser beneficiado por um acordo fechado com uma instituição da Dinamarca. A negociação iniciada há dois anos pelo embaixador Rodrigo Azeredo foi um sucesso, e o País pode comemorar o retorno de um tesouro indígena: um manto Tupinambá confeccionado no século 17.

Feito com penas de guará, pássaro vermelho que habita o nosso litoral, ele foi doado pelo Nationalmuseet, de Copenhagen, e será mantido no Museu Nacional do Rio de Janeiro. O prédio segue em reconstrução desde que foi atingido por um incêndio que destruiu sua coleção, em setembro de 2018.

Outros países da América do Sul, como o Peru e a Bolívia, com comunidades indígenas milenares e sítios arqueológicos reconhecidos como patrimônios da humanidade pela Unesco, como Cusco e Machu Picchu, também sofreram perdas significativas nessa área.

Mas não há dúvida de que o continente mais afetado foi a África, epicentro de intensos saques durante a corrida colonialista realizada por diversos países europeus, entre eles França, Portugal, Bélgica, Itália e Alemanha. O movimento para devolver as obras de arte tem sido uma causa importante para as nações africanas, que veem nesses objetos a representação tangível de sua história e identidade roubadas.

Seria positivo se essa vontade que temos de reaver objetos importantes viesse acompanhada do mesmo zelo que eles recebem nos países que criticamos

Na última década, houve um crescente comprometimento de governos e instituições europeias para repatriar obras de volta a seus países de origem. O fenômeno, no entanto, desafia o mundo da arte.

Os museus e galerias europeias enfrentam um dilema ético:

1) por um lado, têm o dever de preservar e exibir objetos de seu acervo para o seu público, mantendo sua relevância e valorização de sua coleção;

2) por outro, manter a posse de obras obtidas de forma duvidosa traz o peso da culpa histórica — e pode, no futuro, estimular uma indústria de processos milionários.

Os museus resistem

O caso dos Bronzes de Benin é um exemplo contundente desse debate. Essas esculturas, que retratam figuras reais e divinas do antigo Reino de Benin (atual Nigéria), foram saqueadas por uma expedição britânica em 1897. Durante mais de um século, foram expostas em instituições europeias, longe de sua terra natal.

A pressão internacional e a mudança de consciência incentivaram o retorno parcial desse material, permitindo que o povo de Benin se reconecte com seu passado.

Como era natural, muitas instituições têm resistido a esses apelos. Alegam que, ao devolver as obras de arte, estariam de certa forma privando o público mundial de apreciar essas preciosidades culturais, que passariam a ficar restritas aos seus locais de origem.

Argumentam que, ao mantê-las sob sua proteção, estão preservando e compartilhando a história e a arte de outros povos.

Difícil argumentar contra isso, uma vez que o caso do Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde o incêndio foi causado por negligência na manutenção do prédio histórico, serve de munição para a manutenção desse discurso.

A saída é tratar o retorno das obras de arte às suas origens não apenas como uma questão jurídica ou política, mas como uma questão de identidade e reconciliação histórica.

E com autocrítica: a restituição desses tesouros culturais é um passo em direção à cura de antigas feridas e ao reconhecimento dos danos causados pelo colonialismo.

Seria positivo se essa vontade que demonstramos de reaver objetos importantes viesse acompanhada do mesmo zelo que as instituições internacionais que tanto criticamos têm pelo nosso patrimônio.