Beto Lee entrevista

Entrevista

Beto Lee, Músico e apresentador de TV

Minha mãe viveu o que cantou e cantou o que viveu

Marco Ankosqui

Minha mãe viveu o que cantou e cantou o que viveu

Editora Três
Edição 04/08/2023 - nº 2792

Por Felipe Machado

O sobrenome e a atitude não deixam dúvidas: Beto Lee é o herdeiro de Rita Lee, a eterna rainha do rock brasileiro. Apesar de carregar essa alcunha para sempre — e com muito orgulho, segundo ele —, o músico vem desenvolvendo uma bela trajetória por conta própria. Filho de Roberto de Carvalho, um dos maiores guitarristas do País, Beto começou a tocar o instrumento aos dez anos e, cinco anos depois, já se apresentava em festas e casas noturnas. Dividiu o palco com os pais entre 1996 e 2008, período em que participou de gravações ao vivo e em estúdio. Em 2012, seu disco solo Celebração & Sacríficio ganhou o Grammy Latino de Melhor Álbum de Rock Brasileiro. Quando nasceu sua primeira filha, Izabella, Beto trocou a música pela TV: virou apresentador das séries ‘Que Rock é Esse?’, ‘Geléia do Rock’ e ‘Experimente’, no canal Multishow. Em 2016, entrou para os Titãs no lugar de Paulo Miklos. Hoje também faz shows em homenagem ao seu inesquecível repertório: Rita Lee por Beto Lee está em turnê pelo País para saciar a saudade dos fãs da artista que nos deixou em maio de 2023, após a luta contra o câncer.

Queria começar com uma pergunta que muita gente deve lhe fazer: como era ser filho de uma pessoa tão especial como Rita Lee?
Tive uma infância normal. Apesar de meus pais não terem uma profissão habitual, tudo funcionava bem: minha mãe cobrava lição de casa, pagava as contas, estava atenta ao que estava acontecendo. Aquela coisa de mãe, mesmo. Meus irmãos e eu dividimos ela com muita gente, mas isso sempre foi tranquilo. Nunca precisamos de terapia pesada para entender o que era sua profissão. Além disso, nunca tive outra mãe para saber como é…

Ela era rígida com vocês?
Super rígida! Até porque meu avô cobrava muito dela e das minhas tias quando eram pequenas, então, acho que isso a marcou. Meu pai também sempre foi muito disciplinado, dedicado aos seus estudos. No ambiente familiar era assim: o que valia para um filho, valia para os outros dois. Mas quando minha mãe era chamada na escola, ela alegava que não aguentaria o professor falando mal da gente. Então meu pai assumia essa incumbência. Ele passava o dia na escola e, quando voltava para casa, os dois conversavam e tiravam as suas próprias conclusões. Sempre foram responsáveis e muito presentes, isso nunca abalou nosso senso de segurança.

Quando descobriu que sua mãe era famosa?
A ficha vai caindo, né? Criança não sabe bem a diferença entre a profissão do pai e a do pai do amigo. Lentamente a ficha foi caindo. Acho que só fiquei assustado na primeira vez que vi os fãs cercando minha mãe, com caneta e papel na mão. Em uma viagem aos EUA, um grupo de brasileiros veio falar com a gente. Chegaram gritando, foi exagerado. Os americanos devem ter pensado: “Por que esses loucos estão atrás dessa mulher com três crianças?”. Quando passei a entender melhor, vi que meus pais tinham essa profissão um pouco diferente, que trazia alegria para as pessoas.

Sobre a mãe, Rita Lee: “Ela sempre foi aberta, nada era tabu na mesa de jantar. Falávamos de tudo: camisinha, aids, drogas, até sobre a morte” (Crédito: Cica Neder)

Um filho guitarrista, outro artista plástico… seus pais incentivavam esse lado artístico?
A casa era um lugar criativo. Meu pai tinha um escritório onde mantinha os livros de astrologia e de música, a coleção de discos de vinil, as guitarras e amplificadores. O escritório da minha mãe era outro ambiente, mais voltado para a pintura, com tintas, pincéis, coisas para a gente extravasar, botar para fora. Às vezes ela nos chamava e dizia: “Peguem papel e caneta, vamos desenhar”, coisas assim. Eu preferia entrar no escritório do meu pai e pegar a guitarra, fuçar no teclado. Sempre foi assim. Ele tinha muitas guitarras, daí foi vendendo, foi roubado, muita coisa se perdeu. As turnês naquela época eram meio caóticas. No dia em que meu pai me ensinou a mexer na vitrola, colocar a agulha no lugar certo para não riscar o disco, aquilo mudou minha vida. Pode parecer pequeno, mas foi gigante para mim.

Sua mãe sempre foi transparente com a questão das drogas. Como esse tema era abordado em casa?
Ela sempre foi aberta. Nada era tabu na mesa de jantar, conversávamos sobre qualquer assunto. Minha mãe era uma pessoa muito ‘na lata’, tinha sangue frio para falar de tudo, atitude que muitos pais não têm nos dias de hoje. Eles eram o nosso Google: quanto tínhamos dúvidas sobre a vida, perguntávamos o que achavam. A questão das drogas também sempre foi algo totalmente aberto. Ela explicava o que cada uma fazia, os efeitos, o que acontecia com quem usava. Agradeço por ela ter tido coragem de nos passar informações sobre tantas coisas. Camisinha, aids, drogas — até sobre a morte ela falava abertamente. Nada era tabu.

Ser músico era uma carreira inevitável?
Comecei a tocar quando era adolescente. Demorou para eu me conectar com gente da minha idade. Fiquei muito tempo sozinho, mas finalmente consegui montar uma banda. Chamava-se Larika. A gente tocava em festas, matinês, onde dava. Nosso estilo era MPB: “música por ‘breja’ (cerveja)”.

Chegou a ter aulas de guitarra com seu pai?
A gente nunca se sentou para estudar formalmente. Era uma coisa rápida, eu o procurava só quando surgia alguma dúvida. Aí ele pegava o instrumento, tocava, me devolvia. E dizia para me virar. Hoje é fácil, você pode aprender com o celular ou o Youtube, mas na época foi na raça. Meu pai me deu dicas valiosas e acho que o fato de não ter me ensinado me forçou a ir para o meu quarto treinar e ralar. Na primeira vez que consegui tocar o riff de Back in Black, do AC/DC, quase morri de alegria. Parecia que eu tinha descoberto o fogo.

Como foi dividir o palco com seus pais?
Toquei na banda deles entre 1996 a 2008. Foi legal, mas deu bastante trabalho. As harmonias parecem simples, mas são bem complicadas. Não é algo fácil, de poucos acordes.

O som da Rita Lee era simples antes do seu pai chegar?
Ele enriqueceu o vocabulário. Deu uma “aditivada”, segundo ele. Como dupla, fizeram um golaço atrás do outro. Tenho orgulho de ter gravado vários discos, toquei na turnê Santa Rita de Sampa, no Acústico MTV. Quando houve uma pausa, gravei um disco com a minha banda, Galaxy, depois virei apresentador de TV. Fiz isso por oito anos. Não deixei de tocar, mas meu foco foi para outro lugar. Foi um belo aprendizado, fiz boas amizades, conheci artistas incríveis.

Como foi o convite para entrar nos Titãs?
Eles estavam fazendo uma turnê nos EUA quando o Sérgio Britto me ligou. Contou que o Paulo Miklos estava saindo e tinham pensado em mim para a vaga de guitarrista. Fiquei surpreso, quem não gostaria de tocar com os Titãs? Aceitei na hora. Meu primeiro show foi em julho de 2016 e estou com eles desde então. Já gravei três discos.

Embora não tenha participado da turnê Reencontro, como viu a volta da formação original dos Titãs?
Todo mundo queria que a banda voltasse, eles merecem. Meu lado fã ficou muito feliz de vê-los ali. Os Titãs são uma banda única no mundo, que outro grupo funcionaria com uma formação de octeto? Eles são muito originais.

Em seu novo show, Rita Lee por Beto Lee, imagino que a maior dificuldade foi escolher o repertório.
Tive que olhar para as três fases da carreira dela com carinho, porque cada uma conta uma história: tem um pouco de Mutantes, Tutti-Frutti e a carreira solo, a parceria Rita Lee e Roberto de Carvalho. É difícil sintetizar tudo em uma hora e pouco de show, são muitos hits.

Você se baseou em quê?
No feeling e nos doze anos em que toquei com eles. Lembrei do impacto sobre o público, o peso dos hits, os temas de novela. E cheguei a um consenso. Mostrei para os meu pais e eles aprovaram na hora. Eu precisava que carimbassem o setlist.

Há planos para seu pai participar ou ele prefere ficar nos bastidores?
A casa está sempre aberta e ele sabe disso. Quando quiser, estaremos aqui. Aliás, essa é a casa que ele criou, estamos apenas cuidando dela. Mas cada um tem o seu ritmo, ainda é tudo muito recente. Faz pouco mais de dois meses que minha mãe se foi.

Seus pais tinham uma conexão muito forte.
Acho que eles se encontraram em outras vidas e provavelmente se reencontrarão em algum outro lugar. É muito louco, uma história cinematográfica, linda. Duas pessoas que se encontraram no amor e na música, e fizeram dessa relação uma coisa brilhante. Mudaram a vida de muita gente. É um caso de amor que influenciou outros casos de amor.

O que achou da segunda autobiografia da sua mãe, que aborda a relação dela com a doença?
Contar histórias tristes de forma bem humorada era típico dela. Ela dizia que o primeiro livro foi um processo terapêutico, que havia conseguido sanar muitas coisas. Requer coragem para contar sua vida, abri-la para todo mundo ver. E teve mais coragem ainda mais falar sobre o que aconteceu depois (o câncer). Se esse livro novo servir de alento para alguém que esteja passando por isso, considero a missão cumprida. Haja coragem! Ela escreve de um jeito que você acaba rindo de uma coisa trágica.

Sobre Sérgio Britto: “Ele me ligou e disse que os Titãs tinham pensado em mim para a vaga de guitarrista. Aceitei na hora” (Crédito:Pablo Porciuncula Brune)

Deve ter sido um período muito difícil para a sua família.
Foi. Apesar dos avanços na medicina, essa doença ainda é uma violência para o corpo. Sofremos para caramba. Quando veio o diagnóstico, a expectativa de sobrevida dela era de quatro meses. Foram dois anos de luta. De maneira estoica, encarou tudo de frente. Tem que fazer exame? Ela ia fazer exame. Tem que fazer fisioterapia, tomar remédio? Vamos lá. Foi muito pesado para o meu pai e meu irmão João, que ficaram nessa trincheira o tempo todo, no dia a dia. Eu pude vê-la um pouquinho aqui e ali, mas, por conta da pandemia, fiquei com medo de estar no mesmo ambiente. Tenho muita admiração pela guerreira que ela foi até os últimos minutos. A saudade bate forte.

Qual é o legado da sua mãe? A música? O bom humor? A atitude?
Um pouco de tudo. A pessoa que ela foi, o espírito jovial e altivo. Quero mostrar suas canções para a nova geração que não viu minha mãe em ação. Minha mãe viveu o que cantou e cantou o que viveu. Ela fez muito pelas mulheres, pela cultura desse País. Prestou um serviço exemplar. Estamos preparando um material para lançar em breve, porque o legado dela está aí. Encontramos muita coisa que ela deixou. Podem esperar que vem coisa boa por aí.

*colaborou Duda Ventura