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Lula venceu queda de braço com o Banco Central. Será?

A decisão do Copom de diminuir a Selic é um passo importante para reativar o consumo, mas a surpreendente agressividade adotada no ritmo de queda, de 0,5 ponto percentual nesta e nas próximas reuniões, reaviva o fantasma da interferência política no Banco Central

Crédito: Mateus bonomi

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República: “Esse rapaz que está no Banco Central não entende de Brasil e não entende de povo. Não sei a quem ele está servindo. Aos interesses do Brasil, não é” (Crédito: Mateus bonomi)

Por Marcos Strecker e Mirela Luiz

Poucas decisões eram tão esperadas pelo setor produtivo como a queda da Selic. A deliberação do Copom (Comitê de Política Monitária) na última quarta-feira de diminuir em 0,5 ponto percentual a taxa básica de juros, que estava em 13,75% desde agosto do ano passado, foi muito comemorada por diversos segmentos. De fato, as taxas elevadas aumentaram a inadimplência e frearam em grande medida o consumo desde o atual ciclo altista, que durou dois anos e cinco meses. Afinal, esse era exatamente o efeito pretendido: conter a inflação, que voltou aos dois dígitos em 2021 (IPCA acumulado de 12 meses) e só começou a cair após alcançar o pico de 12,13% em abril de 2022. Hoje, esse valor anualizado está em 3,16%, mas o risco não foi eliminado. O mercado ainda espera que o IPCA encerre 2023 em 4,84% (acima da meta, que é de 3,25% com margem de tolerância de 1,50%).

“Juros elevados são danosos em qualquer setor da economia”, afirma Jorge Gonçalves Filho, presidente do Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV).

Segundo ele, as taxas precisam cair para aumentar a oferta de crédito, desde recursos de capital de giro e investimentos até o crédito ao consumidor. “O maior custo é para quem tem a menor renda ou menos poder de barganha”, afirma.

“Com essa dificuldade, há uma tendência de aumento da inadimplência e de superendividamento das famílias”, reforça Henrique Lian, diretor de Relações Institucionais da Proteste – Associação de Defesa do Consumidor. Ele também aponta que houve queda na confiança do consumidor.

Roberto Campos Neto, presidente do BC: “O Banco Central é um órgão técnico. Segue o timing técnico, que é diferente do timing político. Por isso, a autonomia da instituição é importante” (Crédito:Mateus Bonomi )

O resultado para o cidadão comum pode ser visto nas taxas de inadimplência. Segundo a Serasa, este ano o País assistiu a uma série de altas que levou a um número de 71,45 milhões de brasileiros negativados, quadro que só começou a se reduzir em junho.

Mesmo assim, a situação não é de estagnação ou de alarme por uma eventual recessão, apesar do nervosismo do governo Lula, que começou com grande incerteza e críticas pela falta de definição na política econômica.

O PIB cresce no País, ainda que esteja em desaceleração. A expectativa é de um crescimento razoável para este ano (o BC calcula a expansão em 2%, enquanto economistas do mercado apostam em 2,24%).

“Apesar do atual patamar da Selic, o setor da construção civil e incorporação imobiliária mantém um bom ritmo de produção, sendo responsável por 17% dos postos de trabalho gerados em 2023”, diz Luiz França, presidente da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). “Mas os juros prejudicam. Pesquisa da BRAIN Consultoria aponta que 76% consideram inviável adquirir imóvel com as condições de financiamento atuais”, pondera.

Há razões de sobra para comemorar essa iniciativa do Banco Central. Já as implicações para a economia, no médio prazo, causam controvérsia entre os economistas.

Depois de um ciclo de quedas que levou a Selic ao piso histórico de 2% em agosto de 2020, a instituição precisou reagir à alta inflacionária, que veio na esteira dos estímulos financeiros diante da pandemia.

É um fenômeno global, mas exigia atenção especial no Brasil, que tem forte memória inflacionária. A atual direção do Banco Central reagiu inclusive contra os interesses de Jair Bolsonaro, que patrocinou a autonomia do órgão.

Ao aumentar a Selic em plena campanha eleitoral, o presidente do BC agiu na contramão do discurso do ex-presidente durante a campanha. Mesmo assim, Campos Neto permaneceu alvo de Lula, que nunca aceitou a independência da instituição e pretendia marcar sua terceira gestão com forte crescimento da economia, mesmo desconsiderando o risco inflacionário.

O resultado é que antes mesmo da posse o novo governo sistematicamente atacou a gestão de Campos Neto. Mais do que isso, o governo turbinou o consumo com estímulos ao crédito e subsídios, descasando a política econômica com a monetária.

“O que aconteceu no semestre passado foi muito ruim. Toda a pressão política em torno do BC e ações do próprio governo fizeram a expectativa de inflação subir. A gestão Lula começou equivocada falando em estimular o crescimento e não tendo tanto a preocupação com o fiscal. O próprio governo causou esse estresse”, critica Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados. Ele avalia que o BC atrasou a queda da Selic exatamente por conta disso.

Cruzada antijuros

Vale ainda lembra que a cruzada de Lula contra os juros altos é incoerente com seu primeiro mandato, quando a Selic foi elevada e chegou a 26,5%, muito acima do patamar atual. “Estamos em um cenário em que o governo deveria deixar o Banco Central trabalhar. Ter um pouco mais de paciência, antes de se manifestar.”

A gestão de Campos Neto também é defendida por outros especialistas, para quem ele se antecipou a um movimento que outros Bancos Centrais tiveram que seguir pelo mundo, com um custo maior. Com isso, conseguiu realizar um “pouso suave” da economia. Ou seja, reduziu a inflação sem derrubar o crescimento econômico.

Roberto Campos Neto (à esq.), presidente do Banco Central, com diretores da instituição na reunião do Copom: Gabriel Galípolo (terceiro, a partir da esq.) e Ailton Aquino (último à dir.) já são nomes indicados por Lula (Crédito:Raphael Ribeiro/BCB)

O início da diminuição da Selic não significa que o governo vai recolher suas armas.

“Nesse segundo semestre, a briga política vai ser pela magnitude da queda. Essa será a discussão toda que veremos no segundo semestre.”
Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados

Para Henrique Lian, a reversão do atual cenário de juros altos deveria ser lenta e paulatina para não comprometer o controle da inflação. “As condições atuais, somadas às iniciativas do Executivo e do Legislativo, permitem e recomendam que se inicie a descida da taxa básica.”

Ele se refere às ações de Fernando Haddad que desfizeram a desconfiança em relação à responsabilidade fiscal na atual gestão e deram ânimo aos investidores.

A principal é o novo Arcabouço Fiscal, que deve impedir a explosão da dívida pública. Outra é a aprovação da Reforma Tributária na Câmara, que teve o apoio decisivo de Haddad.

“Se o Arcabouço for aprovado e cumprido à risca, criará um ambiente de confiança no futuro, e os juros tenderão a cair”, diz Gonçalves Filho, do IDV.

Ele também lembra que o governo lançou o Desenrola. “Esse programa deve ajudar milhares de consumidores que deixarão de ficar negativados. Trará de volta a capacidade de tomar crédito. Mas ainda é necessário resolver questões estruturais na área”, alerta.

A queda não vai beneficiar apenas esse mercado. “Essa queda pode impactar positivamente o desempenho da Bolsa, pois atrai investidores e beneficia empresas exportadoras”, diz Wesley Henrique Quinalha Francisco, assessor de investimentos na WIT Invest.

O bom momento não deve evitar o apetite intervencionista do governo. Em café com jornalistas na própria quarta-feira, Lula voltou a atacar o presidente do BC.

A decisão do Copom, por cinco votos a quatro, foi surpreendente porque Campos Neto se uniu à ala governista e deu o voto de desempate para uma baixa mais expressiva da Selic.

Por unanimidade, o colegiado também apontou que novas quedas da mesma magnitude devem acontecer nas próximas reuniões.

É uma inflexão na trajetória da instituição, que até agora tinha valorizado uma atitude cautelosa com a inflação. E causa preocupação porque pode indicar uma nova era de alinhamento político com o governo, o que colocaria por terra a autonomia do órgão.

“O voto de Campos Neto [pela queda de 0,5%] foi técnico e equilibrado”, comemorou Fernando Haddad (Crédito:Gabriela Biló)
É uma preocupação que pode impactar nos juros futuros e na forma como o mercado e os investidores verão a evolução das contas públicas.

O que será decidido nas próximas reuniões do Copom na verdade é a política monetária dos próximos anos.

Dois diretores foram trocados neste ano, incluindo o diretor de política monetária, Gabriel Galípolo, e o de Fiscalização, Ailton Aquino. Ambos próximos de Haddad e críticos da atitude mais cautelosa com a inflação.

Mais dois serão substituídos até dezembro. Em 2024, três deles saem, inclusive Campos Neto. Seu provável substituto, especula-se em Brasília, será Galípolo, que tem experiência no mercado financeiro, mas se alinha às teses desenvol­vimentistas do PT.