‘Quiet Luxury’: a tendência dos ricos antiostentação
Nascido nos EUA e já com adeptos em diversos países, chega também ao Brasil o movimento “Quiet Luxury”. Ele valoriza o consumo e uso daquilo que há de melhor e mais caro, mas sempre com discrição. O que conta é o prazer e conforto, jamais a ostentação
Por Luiz Cesar Pimentel e Ana Mosquera
No primeiro episódio da quarta temporada de Succession, seriado fenômeno de audiência e de crítica, um dos personagens principais, Tom, quer ridicularizar seu assistente, Greg, em uma festa da alta sociedade. Para alcançar esse objetivo, vale-se de um acessório da namorada de seu desafeto: “Ela trouxe uma bolsa absurdamente grande. O que tem lá dentro? Sapatos baixos para o metrô? Marmita? É gigantesca. Você poderia levá-la para acampar”. Nos dardos verbais que Tom direcionou ao assistente reside boa parte da filosofia do movimento denominado “Quiet Luxury” – ou luxo silencioso. Esse movimento, que se iniciou nos EUA, espalhou-se por diversos países e agora chega ao Brasil, prioriza a discrição e aboliu radicalmente a ostentação. Vestir uma roupa com o nome de luxo aparecendo? Nem pensar. O que conta é usufruir do luxo e conforto, usá-los, mas sem a necessidade de mostrar que deles se está desfrutando. Exibir do que se usufrui, isso virou cafonice. O que continua vigorando para os adeptos dessa filosofia é a qualidade. Outro ponto do qual eles não abrem mão: os acabamentos impecáveis de roupas e produtos – daí os altíssimos preços do que consomem.
Como identificar o luxo silencioso
• Acessórios como cintos e bolsas sem qualquer adorno além do material em que são fabricados;
• Valorização de mobiliário antigo, de bom gosto e feitos para durar;
• Aplicação de tons neutros, sempre;
• Peças de decoração que carregam história além da função estética;
• Detalhes de aparência, como unhas e cabelos, sempre bem cuidados;
• Discrição em absolutamente tudo;
• O luxo, que torna cara determinada peça, tem que ser obrigatoriamente furtivo;
• Cada peça parece única, feita sob encomenda, e com intenção.
Roupas e acessórios funcionam como o espelho ideal desse estilo de vida. São bonés, como os da marca Loro Piana, que outros personagens da série utilizavam e que estampa a capa dessa edição, com etiquetas a partir de R$ 2.500, ou mesmo bolsas que partem de cinco dígitos de valor. Mesmo preço da bolsa “absurdamente grande” da namorada de Greg.
Porém, ela pecava em alguns requisitos – eram da britânica Burberry, famosa pela padronagem xadrez. O criador da série, Jesse Armstrong, consultou uma socialite sobre que item seria considerado mais brega em uma requintada festa atualmente e chegou à desafortunada bolsa, que acabou pelo marketing reverso esgotando os estoques, mesmo ao custo de cerca de R$ 15.000.
“Nas últimas semanas de moda, grifes que ousavam, como Bottega Veneta e Miu Miu, escolheram o que vende”, exemplifica a influenciadora paulistana Sílvia Henz. “As pessoas entenderam que não precisam mostrar as marcas para ter status e que vale ter roupas sustentáveis e duráveis”, diz Raquel Davidowicz, estilista e co-fundadora da UMA.
Como bem definiu a antropóloga britânica Mary Douglas no livro que virou bíblia da antropologia do consumo, O Mundo dos Bens, o objetivo da aquisição é a integração a determinado grupo social que supomos pertencer.
O movimento do luxo silencioso não foge à regra, mesmo que a justificativa clássica atual seja a de que não é de bom tom ostentar logotipos ou etiquetas de grife de luxo em uma realidade global de recessão pós-pandêmica.
Todas as vertentes apontam, porém, para o consumo pela diferenciação, já que desde que surgiu o que conhecemos como moda, ainda no Renascimento, essa é sua principal função.
Além do sentimento de singularidade e diferenciação, que inclui o consumidor no grupo a que sente pertencer, existe no Brasil um componente de reforço de segurança ao não exibir símbolos de poder econômico.
Há também o constrangimento natural de vestir riqueza após período em que a pobreza atingiu e estagnou em um terço da população brasileira. “A moda imita a vida, a gente sente esse impacto. Fazemos roupa para o outro e a criação vem da observação de mundo”, afirma Ana Cecília Gromann, estilista e sócia da Anacê, uma das estreladas do luxo silencioso.
“As roupas básicas, que eles chamam de ‘Recession core’, não ofendem. Você ostenta elegância, mas não está dizendo para o outro que aquilo é muito caro”, completa Sílvia.
Isso acontece com a apropriação cultural de movimento de elites restritas (os muito ricos, no caso). “O jovem está mais condicionado a ter gastos com questões de bem-estar, saúde mental e do corpo, e a escolha das roupas é a cereja do bolo”, diz Giovanna Meirelles, estilista da curadoria NK Store.
Adaptação hipster
É o que ocorre ao se pinçar o minimalismo do luxo silencioso, subtrair seu conceito filosófico original e utilizá-lo como tendência de design. Bom exemplo é a atual glamourização do design de prédios antigos de pés direitos altos, pisos de taco, decorações com plantas Costela-de-Adão e guarda-roupas enxutos que só comportam poucas, mas muito boas peças.
“É uma estética que colou nas redes sociais, retira do contexto filosófico anterior e bota para girar em outra roda, mais ligada a certo minimalismo chic”, diz Rebeca de Moraes, pesquisadora de tendências de consumo e sócia da empresa Esquina.
O caminho reverso de apropriação de conceitos para se justificar escolhas de consumo pela melhor narrativa também procede. Tanto que aqueles que cultuam o luxo silencioso surfam a onda ESG (conjunto de boas práticas que define se uma empresa é socialmente consciente e sustentável), que domina o mundo corporativo para justificarem as caras escolhas.
Fica difícil engolir a adoração pela água Hallstein (“engarrafada de aquífero a 214m abaixo da superfície da terra, nos alpes austríacos”, segundo a empresa), sendo ela um produto que, para atingir 100% de eficiência, basta ser inodora, incolor, insípida e inócua – e que é vendida a R$ 350 em pack com seis garrafas de 750ml nos EUA.
Perenidade invejável
“Quem tem muito dinheiro não liga para a questão social. O que as movimenta é a diferenciação mesmo, fazer parte da parcela que gosta de se destacar não ostentando”, diz o estilista e professor de moda da FAAP Lorenzo Merlino.
Já há quem leia todas as línguas possíveis do movimento e as transforme tanto em estilo de vida quanto em negócio, como o ator Sergio Marone, discreto praticante do luxo silencioso e que lançou marca própria de cosméticos e objetos de decoração sob os pilares do movimento, chamada Tukano. “O propósito é ser unissex, cool, elegante e atender quem preza produtos de alta qualidade e que geram transformação positiva para a sociedade, pois luxo atualmente é isso.”
“Ostentação não está com nada.”
Ator e empresário Sergio Marone
O fato é que na prática do luxo silencioso ao pé da letra há pagamento de valor acima do esperado que se justifica pela qualidade dos produtos.
Mais uma vez recorrendo ao acessório da capa, o boné, ele usa como matéria-prima cashmere, lã extraída do subpelo de cabras que vivem na cordilheira do Himalaia.
Faz sentido que chegue ao comprador com valor maior do que a de outro boné que anda na moda, do time de beisebol New York Yankees e que traz um espalhafatoso NY à testa – exemplo pronto do ‘Fast-fashion’, a moda que nasce com curto prazo de validade.
Nesse quesito, o “Quiet Luxury” carrega perenidade invejável. Dá para cravar que o estilo de vida de luxo é anterior à percepção de que se tratava de um costume que poderia ser enquadrado como movimento.
O primeiro exemplo citado costumeiramente é o de Bunny Mellon, herdeira de conglomerado farmacêutico e que fez fama como paisagista e jardineira. Ela se tornou amiga de Jacqueline Kennedy, mulher do então presidente norte-americano John Kennedy, e foi por ele convidada a desenhar o celebrado Jardim de Rosas da Casa Branca.
Discretíssima, poucos perceberam que não abria mão de exercer o ofício com avental da Givenchy. É dela a frase que seria estampada na bandeira do movimento silencioso, se bandeira houvesse: “Nada deve ser notado”.
Mellon é a personificação do grupo conhecido como “old money” (donos de dinheiro antigo) e que carrega as bases da filosofia. Vivem o estilo “old money” herdeiros de famílias tradicionais e abastadas, todos de máxima discrição.
Nas décadas de 1960 e 1970, quando Mellon estava em maior evidência, sequer existia a cultura de exibição de etiquetas como símbolos de poder social.
Assim, os ricos usavam roupas e objetos de maior valor simplesmente porque gostavam do material, acabamento e design – e porque podiam pagar. Ponto. E vírgula.
Porque veio a década de 1980 e, junto ao exagero caricatural, ocorreu uma falha geológica na filosofia de produtos de consumo.
De um lado surgiu a tendência da logomania, na qual a extravagância de logotipos remetia a determinado nicho social. Quem viveu essa década como adolescente ou jovem de classe média conhece o peso que carteira da OP, mochila da Company, jeans da Fórum ou Zoomp, sapatos London Fog e perfumes Drakkar e Giovana Baby possuíam na tentativa de integração ao almejado grupo social.
Ruas x maisons
As marcas tradicionais se dividiram. De um lado, algumas aderiram ao grito das ruas. Mas houve contraponto a socorrer a turma do “old money”. Dois estilistas japoneses, Rei Kawakubo e Yohji Yamamoto, estrearam nas principais passarelas ocidentais a moda daquele país, que utilizava elementos como tecidos desgastados e costuras inacabadas em tons sóbrios.
O bom gosto estético e o bom tom da discrição atingiram o apelo silencioso e estabeleceram as primeiras manifestações perceptíveis da filosofia do luxo silencioso.
Tudo parece que se dá em harmoniosa convivência, o famoso cada um na sua, mas existe quem discorde dessa imagem de culto proposital à discrição.
“De quieto, o movimento não tem nada. Só é quieto para pessoas que não conhecem aquele código social. Dominar a arte dos talheres e copos implicava riqueza, era um código assim como o ‘Quiet Luxury’. E quem está inserido no grupo entende essa língua.”
Joana Monteleone, historiadora e autora de O Circuito das Roupas: a Corte, o Consumo e a Moda.
Hoje a ponta mais visível desse iceberg de luxo silencioso está na The Row, das irmãs gêmeas Mary-Kate e Ashley Olsen. São atrizes que trocaram o cinema pela moda e a grife criada é retrato das turmas do “old money” e do “new old money” (principalmente artistas e endinheirados da tecnologia) e daquilo que na surdina consomem – matéria-prima impecável, acabamento idem, minimalismo, sobriedade e intenção.
“Quem conhece sabe que aquilo é um terno da The Row. Você não precisa ter uma ‘label’ estampada para saber que aquilo é luxo”, diz Giovanna.
No recém-celebrado bairro do Brooklyn, em Nova York, é por essa ótica que muitos artistas que mudaram para lá decoram suas sóbrias casas de tijolos aparentes com interruptores Forbes & Lomax, móveis da Kravet, papéis de parede da Osborne & Little e piso eco-friendly da Tarkett.
A soma dá a ideia do princípio do movimento, que estica largamente os braços além da moda, ainda mais se considerando que ela é cíclica e tendências são cada vez mais efêmeras.
O luxo silencioso, ao contrário, sempre fez parte da história. Uma trajetória que ficou tão mais democrática quanto diversa. “É por isso que temos, ao mesmo tempo, Barbiecore e ‘Quiet Luxury’, maximalismo e minimalismo coexistindo como tendências”, diz Rebeca de Moraes.
Tendências à parte, o luxo sem ruído conjuga os verbos possuir e usar determinado produto por aquilo que ele é, e não conjuga o verbo ostentar. Recorramos, por fim e na boa fé da clareza, à literatura: a Oscar Wilde cabe a classe exigida pelo “Quiet Luxury”. Já Ernest Hemingway é outro padrão.
Poluição ruidosa
A antítese do “Quiet Luxury” não é exatamente a “Logomania”, mas a moda derivante dela que nasceu na virada do século como “Bling-bling”, nos EUA, e desembarcou por aqui via funk ostentação em 2008 – contaminando artistas e jogadores de futebol com o novo status de popstar.
O “Bling-bling” foi uma resposta dos artistas de Hip Hop, em sua maioria negros que escalaram financeiramente por meio da música. Na tendência, passaram a exibir muito ouro, pedras preciosas e roupas de etiquetas de luxo, chegando a cravejar os próprios dentes com diamantes.
O exemplo foi adotado por jogadores de futebol de primeiro escalão, como os brasileiros Neymar e Daniel Alves. Da sugestão do “Bling-bling” à relação dos atletas com a música, a vertente brasileira que foi criada é o funk ostentação. Como o nome entrega, é um elogio aos bens de consumo.
O marco zero do gênero foi a música Bonde da Juju, dos MCs Backdi e Bio G3, onde a homenageada Juju não é uma mulher, mas os cobiçados óculos espelhados Juliet, da marca Oakley.
“Durante a pandemia, brincávamos que sairíamos muito mais extravagantes. E o que vimos foi o contrário”, enterra as esperanças de um novo boom da tendência a estilista Ana Cecilia Gromann.