Cultura

Cinecittà: templo do cinema italiano renasce das cinzas

Criado por Benito Mussolini, o Cinecittà já foi o maior complexo cinematográfico do mundo. Após sofrer três incêndios, o mais recente em 2022, o lendário local na região de Roma passou por um processo de restauração e agora volta a abrigar grandes produções

Crédito: Picasa

'Cleópatra' com dezenas de milhares de figurantes, clássico de 1963 foi o mais espetacular de sua época (Crédito: Picasa)

Por Felipe Machado

Os estúdios Cinecittà erguem-se como uma majestosa cidade cinematográfica nos arredores de Roma, na Itália, onde a magia da sétima arte prospera há décadas. Palco de inúmeras obras-primas e berço do neo-realismo italiano, esse icônico legado passou por desafios dignos do cinema-catástrofe. Foram três incêndios, em 2007, 2017 e o mais recente, em 2022, que quase reduziram a cinzas suas estruturas. Como um filme épico dos velhos tempos, no entanto, o complexo se reergueu e passou por um árduo processo de restauração. Hoje, voltou a ser uma locação disputada. “Nos últimos dois anos, passamos de 30% para 100% de ocupação”, comemora o diretor-executivo Nicola Maccanico.

Entre os novos trabalhos em destaque no set de filmagem estão:

1) Queer, do cineasta Lucal Guadagnino, estrelado pelo ex-007 Daniel Craig;

2) No Studio 5, o favorito de Federico Fellini, os produtores Kathleen Jordan e Jenji Kohan dão os últimos retoques em Decameron, série inspirada no clássico publicado no século 14 por Giovanni Boccaccio;

3) Outra gravação emblemática realizada atualmente no local utiliza parte dos cenários de Roma, minissérie da HBO que fez sucesso nos anos 2000. Trata-se de Those About to Die, filme de gladiadores estrelado por Anthony Hopkins e dirigido por Roland Emmerich.

4) O mais aguardado projeto do Città, no entanto, é M: O Filho do Século. A série sobre os primeiro governo de Benito Mussolini é inspirada na premiada trilogia literária de Antonio Scurati e dirigida por Joe Wright.

A escolha do Città para a filmagem é uma irônica coincidência: o lendário complexo de estúdios foi inaugurado em 1937 justamente pelo ditador italiano, que vislumbrou um espaço grandioso para glorificar o seu regime autoritário através do cinema — assim como Adolf Hitler havia feito na Alemanha, por meio das obras visualmente poderosas de Leni Riefensthal.

Federico Fellini e Marcelo Mastroiani: o cineasta e o ator tiveram carreiras vinculadas ao Città (Crédito:Archives du 7eme Art / Photo12 via AFP)

Contrariando as intenções iniciais, os estúdios logo tornaram-se o epicentro da criatividade cinematográfica na Europa, testemunhando a ascensão do neo-realismo italiano na década de 1940.

Diretores proeminentes, como Roberto Rossellini e Vittorio De Sica, utilizaram as instalações para dar vida a filmes que exploravam as realidades da pós-guerra e os dilemas sociais do país — algo que tiraria Mussolini do sério.

Durante a década de 1960, sob a direção de Fellini, o Cinecittà viveu seu auge. Com clássicos como La Dolce Vita e Oito e Meio, o mestre eternizou a locação como cenário mítico, onde a imaginação se manifestou em toda a sua glória. A “Hollywood do Tevere”, apelido recebido graças à proximidade geográfica com o Rio Tibre, era reconhecida por suas paisagens exuberantes e espaços monumentais, que permitiram a déspotas artísticos como Mervyn LeRoy e Joseph L. Mankiewicz levar a cabo os excessos de Quo Vadis? (1951) e Cléopatra (1963), duas das maiores produções de todos os tempos.

Cenários de ‘Those About to Die’: épico sobre a vida dos gladiadores está em andamento (Crédito:Divulgação)

Após o incêndio de 2022, o Città passou por um processo de restauração meticuloso e custoso, bancado em conjunto pelo governo italiano, entidades culturais e membros da indústria cinematográfica internacional.

Os cenários mais afetados foram reconstruídos com materiais da época, para manter a autenticidade da estrutura original.

Resta saber como a greve dos roteiristas e atores vinculados aos sindicatos norte-americanos vai impactar esse trabalho — é possível que, nos próximos meses, ele esteja restrito aos profissionais europeus.

O renascimento do Città representa um sopro de vida para a indústria cinematográfica italiana e permite que o país volte a competir com outros grandes complexos europeus, como Babelsberg, perto de Berlim, na Alemanha, e Pinewood, na região de Londres, Inglaterra.

Essa jornada não é apenas sobre o resgate de um patrimônio mundial, mas uma homenagem ao legado de Fellini, Visconti e Rosselini, entre outros nomes, além de um presente para as gerações futuras de cinéfilos.

3 mil produções
Foram filmadas no local; 90 delas indicadas ao Oscar

400 mil metros quadrados
Área total torna esse conjunto de estúdios na Itália o mais imponente da Europa