entrevista Sonia Guajajara

Entrevista

Sonia Guajajara, Ministra dos Povos Indígenas

O marco temporal é um decreto de morte aos povos indígenas

Wenderson Araujo

O marco temporal é um decreto de morte aos povos indígenas

Editora Três
Edição 28/07/2023 - nº 2791

Por Ana Mosquera

Primeira mulher indígena a assumir um ministério, Sonia Guajajara soma quase 20 anos de militância no movimento social. Após ter sido candidata à vice-presidente em 2018 na chapa de Guilherme Boulos (PSOL) e eleita deputada federal no último ano, desde janeiro ela enfrenta com força os desafios da política institucional à frente do inédito Ministério dos Povos Indígenas (MPI).

Uma das 100 pessoas mais influentes do planeta pela TIME, compõe o grupo de mulheres que comandam os ministérios das pautas sociais e culturais do governo Lula.

Oriunda do Povo Guajajara/Tentehar, no Maranhão, mantém uma relação “aberta e transparente” com líderes do governo e prioriza a transversalidade para avançar em temas como combate ao garimpo e demarcação de terras, sob responsabilidade do ministro Flávio Dino (Justiça).

Ao se articular com Executivo e ministros, segue na luta para derrotar o PL 490 e o Marco Temporal, e teve da própria Rosa Weber, presidente do STF, a promessa de votação da pauta antes de sua saída do Supremo, em outubro. As duas estiveram lado a lado no lançamento da Constituição Federal em Nheengatu.

Graduada em Letras e Enfermagem, com pós em Educação Especial, defende o ensino afroindígena contra a desinformação, a valorização dos conhecimentos tradicionais como científicos e a representatividade dos povos originários, da política às artes.

Quais os principais retrocessos trazidos pelo projeto do marco temporal?
Se aprovado, o marco temporal vai paralisar e invisibilizar as demarcações de terras indígenas, além de abrir precedentes para rever as muitas áreas demarcadas após 1988. Negar essa tradicionalidade é negar um direito constitucional, é tirar nossos territórios e tirar nossa própria identidade, cultura e a convivência física. O marco temporal é um decreto de morte aos povos indígenas. Já o PL 490, que está no Congresso, é ainda mais nocivo, porque também traz a flexibilização da legislação ambiental, a facilitação de acesso aos povos isolados, a atribuição da demarcação de terras indígenas ao Legislativo, o fim da possibilidade de ampliação de territórios e de revisão de limites, além de estabelecer o marco temporal.

O ministro Cristiano Zanin deve ser o primeiro a votar na retomada do julgamento do marco temporal no STF e recentemente pregou conciliar os interesses de proprietários de terra e os indígenas. Isso é possível?
Depende de cada caso. Há áreas em que é preciso fazer uma desapropriação, pois os territórios indígenas foram invadidos, e há outras em que é impossível uma negociação com quem está ocupando. Hoje o que se prega é indenizar a benfeitoria. O que Zanin está propondo, assim como o próprio Alexandre de Moraes, quando ele deu o voto contrário ao marco temporal, é fazer um acordo para o produtor rural pagar uma indenização integral. Só que essa terra não está à venda. E isso pode ser arriscado, porque pode ser um incentivo para outras pessoas invadirem terras indígenas e construírem propriedades para serem indenizadas. E a conta ainda acaba ficando para a União.

Por que a questão da aculturação indígena ainda é tão questionada?
Ainda existe fortemente a ideia de que o indígena tem que ficar na aldeia e que, se ele vem para a cidade, deixa de ser indígena. Isso é um equívoco muito grande, e se dá por conta da desinformação e da própria falta de estudo na educação básica, ou mesmo nas zonas urbanas, sobre a questão indígena. Este ministério vem para ajudar a quebrar essas barreiras e até mesmo para combater o racismo impregnado contra nós. O fato de virmos para a cidade não nos faz mais ou menos indígenas. Pelo contrário, fortalece, porque disseminamos a nossa cultura para fora do território.

Sonia Guajajara: “É importante receber os indígenas não só como estudantes, mas como professores” (Crédito:Nailana Thiely)

Qual a importância da mudança das nomenclaturas para combater essas visões equivocadas sobre os indígenas?
Este ano conseguimos um grande avanço com a mudança do Dia do Índio para o Dia dos Povos Indígenas, e também da Funai, de Fundação Nacional do Índio para Fundação Nacional dos Povos Indígenas. É importante o avanço nas nomenclaturas, porque “índio” acabou se tornando um termo pejorativo ou sinônimo de um ser inferiorizado. Estamos falando de uma diversidade cultural, de uma pluralidade étnica, de línguas e de tradições próprias. São os povos indígenas, que no Brasil hoje são 305 e que falam 274 línguas diferentes. E ainda temos 114 povos isolados. Nós temos que respeitar os que escolheram viver no isolamento e temos que lutar pela proteção dos seus territórios, mas quem quer sair tem que ter condição de se sentir incluído na sociedade. Nós queremos ser aceitos em todos os lugares.

Como a questão indígena tem sido abordada no ensino formal?
A Lei 11.645 prevê a educação afroindígena nas escolas do ensino básico, mas ela não é aplicada, pois falam que não há professores preparados e qualificados. Só que quando falamos sobre estudar essas populações nas escolas, não precisamos de professores qualificados na academia. As próprias lideranças, os caciques e as representações das organizações indígenas podem ser convidados e trabalhar como doutores. O sistema educacional precisa absorver esses conhecimentos que vêm do próprio povo. Temos conversado no Ministério da Educação e feito algumas reuniões com a Secadi, que é a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, e ainda estamos pleiteando ter uma secretaria de povos indígenas no MEC. Também estamos discutindo uma universidade indígena por meio de polos que vão facilitar o acesso aos que não podem vir à cidade. É importante receber os indígenas não só como estudantes, mas como professores.

A sabedoria indígena ainda é muito subestimada?
Ainda somos muito subjugados. Temos que provar todos os dias que somos capazes. Mesmo as pessoas sabendo da eficácia desse conhecimento, ele só é valorizado depois que os cientistas comprovam o que a população indígena já havia dito. Inclusive temos uma lei do patrimônio genético que permite utilizar os conhecimentos tradicionais sem precisar da autorização dos povos originários, em que os próprios laboratórios podem patentear os produtos como novas descobertas. Temos discutido bastante isso, sobretudo em tratados internacionais. O conhecimento tradicional dos povos indígenas como uma das últimas alternativas para conter as mudanças climáticas está na Declaração de Nova York sobre Florestas, de 2014, e o Acordo de Paris configurou esse conhecimento como científico. Nacionalmente, ainda estamos muito aquém.

A COP-30 será realizada em Belém do Pará em 2025. Como se espera que a causa indígena seja contemplada?
Tem que ser um momento de denúncia, mas também de proposição. Estamos no momento de colaborar com o conhecimento dos povos indígenas, inclusive na contenção da crise climática. O mundo inteiro fala da crise, buscando inovações, mas uma das maiores tecnologias que temos apresentado é a demarcação dos territórios indígenas, comprovadamente os mais preservados, com o maior número de nascentes de água limpa e as maiores áreas de floresta em pé, que é exatamente o que pode conter as mudanças climáticas. Os povos indígenas protegem 82% da biodiversidade mundial, segundo relatório da ONU. Então temos que seguir com a demarcação e a manutenção desses modos de vida que naturalmente protegem.

Enquanto se fala em reduzir o uso de combustíveis fósseis, cogita-se explorar petróleo na Foz do Amazonas. O próprio Lula comentou que acha “difícil” isso causar problemas ambientais. Qual o papel do Ministério na discussão?
As análises técnicas e o parecer competem ao Ibama, alocado no Ministério do Meio Ambiente, e confiamos em sua capacidade técnica de gerir informações e decisões. Também sabemos que na região há uma grande quantidade de corais e fauna aquática, que influenciam a vida de milhares de famílias ribeirinhas que dependem do rio para a sobrevivência. Além disso, o Brasil tem potencial de ser referência mundial no uso de energias limpas e protagonizar a transição de atitude exploratória dos recursos naturais para o cumprimento dos acordos em enfrentamento à crise climática.

“Ainda existe fortemente a ideia de que o indígena tem que ficar na aldeia e que, se ele vem para a cidade, deixa de ser indígena” (Crédito:Pedro Vilela)

Você é a primeira mulher indígena a ocupar um ministério, o primeiro dedicado aos povos originários. Você vê essa representatividade em outros ministérios no futuro?
Com certeza. Quando em 2022 nós do movimento indígena lançamos a campanha de aldear a política tradicional, nosso objetivo era justamente esse, de poder contar com representantes em todos os espaços de poder. Hoje também temos, pela primeira vez, uma presidente da Funai, a Joenia Wapichana, e um secretário da Secretaria de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, o Weibe Tapeba, que são indígenas. Trabalhamos com políticas públicas pensadas e implementadas por e para indígenas. Também estamos articulando com os outros ministérios a participação de indígenas nas políticas públicas sociais e gestão governamental.

O que a criação do Ministério dos Povos Indígenas simboliza e quais os desafios?
O MPI não é só novo, é inédito. O que é importante é que esses ministérios, das pautas culturais e sociais, estão sendo tocados por mulheres, como é o nosso caso, enquanto os ministérios de infraestrutura, com mais dinheiro, estão com os homens. Quando a gente vai falar nas reuniões de ministros, primeiro vêm os ministérios ricos, depois os pobres. Mas nós estamos conseguindo, realizar boas parcerias com os ministérios que têm mais recursos e estabelecer programas comuns. Temos feito um trabalho transversal com outros ministérios, sobretudo com os da Igualdade Racial, Cultura, Meio Ambiente e das Mulheres. Um dos principais papéis do MPI é de articulação. É um desafio muito grande, principalmente para quem veio de 19 anos de experiência de movimento social, como eu. Assumir um serviço público às vezes frustra um pouco pela morosidade, mas é uma grande oportunidade de aprender. Não é simples estruturar um ministério do zero, compor equipe com pessoas técnicas e outras que vêm do serviço público.

Nos últimos anos, vimos indígenas despontando na literatura, na arte e na moda, como o escritor Ailton Krenak, o artista plástico Jaider Esbell e o estilista Maurício Duarte. Como vê o movimento?
É maravilhoso ver indígenas tendo destaque em diversas áreas. É fundamental que exista a proteção dos territórios para que a cultura tradicional seja preservada, assim como é necessário entender que muitos foram historicamente deslocados e forçados a viver em uma sociedade com novas condições. Isso os levou a se adequarem a situações e modos de vida por sobrevivência, desenvolvendo novas habilidades, mas levando sempre consigo os saberes ancestrais.