Comportamento

Barbiemania: você consegue resistir à onda rosa?

A maior campanha publicitária da história do cinema transcendeu as salas de exibição. A figura da boneca se espalhou pelo mundo e levou com ela um avanço inédito na quebra das divisões conservadoras de gênero. Pais de roupas cor-de-rosa levaram filhos e filhas para ver um filme que grita contra o preconceito. Diversão trouxe reflexão, mobilizou políticos e artistas e virou um fenômeno comportamental

Crédito: Selcuk Acar

Publicidade vai de prédios em Nova York ao saguão de cada cinema exibidor (Crédito: Selcuk Acar)

Por Thales de Menezes e Ana Mosquera

A onda rosa está instalada. O mundo está coberto por um manto pink estendido pela sexagenária boneca Barbie, transformada no primeiro ícone pós-pandemia do cinema mundial. O filme começou no último dia 20 uma carreira em milhares de salas por mais de 80 países, com arrecadações iniciais que apontam seu caminho até certamente rivalizar com sagas como Avatar e Vingadores pelas maiores bilheterias da história.

O Brasil também se rendeu ao fenômeno, sem resistir. Barbie alcançou o terceiro maior faturamento em um final de semana de estreia já registrado no País, levando 4,1 milhões de pessoas aos cinemas. Fica atrás apenas de Vingadores: Ultimato (2019), com 5,5 milhões, e Homem-Aranha: Sem Volta para Casa (2021), que arrebanhou 4,4 milhões.

O extraordinário não está exatamente na tela, onde Barbie é uma fantasia engraçada temperada com pílulas de ativismo feminista e críticas ao consumismo pela diretora Greta Gerwig. A força de Barbie é vista nas filas fora das salas, uma procissão de gente quebrando os limites conservadores para o papel de homens e mulheres.

(Rubens Cavallari)

A dimensão gigantesca de toda essa euforia nasce de um muito bem bolado projeto de divulgação. Com potencial inegável de bilheteria, Barbie nasceu com um incomparável esquema de lançamento.

Impressiona pelos números, com mais de 8 mil salas exibindo o filme pelo planeta, cerca de 20 mil ações publicitárias em quase 50 idiomas e, apenas nos Estados Unidos, 480 sessões de estreia com convidados obrigados a seguir regras para se vestirem como Barbie e Ken, o eterno namorado da boneca.

Em cada lugar, a campanha é adaptada às especificidades locais para divulgar com eficiência. No Brasil, são exemplos a ação da apresentadora Ana Maria Braga caracterizada como a personagem, que rendeu R$ 18 milhões à TV Globo, ou o Metrô de São Paulo com muitos vagões pintados por dentro e por fora com a onipresente cor rosa e imagens da atriz Margot Robbie, felizarda escolhida para o papel da boneca nas telas.

Mas a explosão mundial da Barbie ganha corpo justamente no que vai além dessa estratégia de marketing. O grande fenômeno está na adesão espontânea das pessoas à Barbiemania, e é nesse engajamento que está uma válida discussão antropológica e sociológica.

Tadeu Schmidt leva a família ao cinema em combo rosa; cor domina ofertas de ambulantes e lojas na rua 25 de Março, grande ponto varejista em São Paulo (abaixo) (Crédito:Divulgação)

Resposta a Damares

Quando pais vestem roupa cor-de-rosa para levar os filhos para ver o filme, essa atitude contribui de forma nunca alcançada antes para uma reavaliação de estereótipos de comportamento masculino e feminino que fazem perdurar uma visão machista, que impõe uma posição submissa e decorativa da mulher.

A imagem de uma figura pública como o apresentador do BBB Tadeu Schmidt usando rosa ao levar a família ao cinema é uma resposta inteligente, bem-humorada e incisiva contra bobagens como a frase vociferada pela então ministra Damares Alves, ao dizer que “as meninas vestem rosa e os meninos vestem azul”.

Barbie provavelmente não terá força para evitar as reeleições futuras de gente como a agora senadora bolsonarista, mas dá uma força enorme para o avanço dessa discussão contra um conservadorismo nocivo a milhões de mulheres.

“Eu prefiro pensar no filme como um resultado do que vem acontecendo em relação às transformações de gênero”, opina Maíra Zimmermann, historiadora de moda e professora da Faap.

“Desde os anos 1960, são três gerações sendo influenciadas por uma boneca. Não são só mulheres, mas também homens. Em relação específica ao rosa, acho que talvez seja aquele último clichê que precisa ser derrubado, como marco que virou, e que ainda faz essa barreira do que é masculino e o que é feminino.”

Caravana cor-de-rosa de fãs compra ingresso no dia da estreia (Crédito:Rubens Cavallari)

A turma do contra

As redes sociais estão exibindo milhões de posts de famílias e grupos de amigos registrando seu passeio nos cinemas e incentivando outras pessoas a também assistirem ao filme.

Mas, embora numa proporção infinitamente menor, há na internet focos de campanha para que o público não vá ver Barbie. A maioria tem origem em sites evangélicos e grupos bolsonaristas.

O ex-ministro da Educação no governo de Bolsonaro Abraham Weintraub engrossou o coro ultraconservador. Em um post no qual colocou até uma foto do criminoso de guerra nazista Klaus Barbie, ele escreveu: “Não é a primeira vez que o nome Barbie está a serviço do demônio. Protejam seus filhos de qualquer linha ideológica de Barbie! Da antiga ou da atual!”.

“Sempre que rola uma tendência, vem uma tendência contrária conservadora”, analisa Maíra.

“Porque a questão no fundo é essa divisão entre o que é masculino e feminino, que é tão apavorante aos homens, porque as mulheres há muito tempo já romperam com isso.”
Maíra Zimmermann, historiadora de moda e professora da Faap

Para Jéssica Melo Rivetti, doutoranda em sociologia pela USP e pesquisadora da Universidade de Granada, na Espanha, essas críticas à Barbie são relacionadas a uma moral, pautada na tentativa de perpetuar uma família tradicional, sem questionamentos.

“As críticas defendem uma identidade socialmente aceita, que é conformada de acordo com valores cristãos, conservadores, que são também atrelados ao bolsonarismo, a movimentos antifeministas e autoritários.”

Ex-presidnete Michel Temer pega carona na febre da boneca e se lança como novo Ken (Crédito:Divulgação)

 

O passeio na internet

Além das filas nos cinemas, Barbie navega soberana na internet. Um filme publicitário que mostra uma boneca gigantesca saindo de sua caixa e andando por Dubai teve 3,5 milhões de visualizações em um dia.

Outros produtos de montagens fake com Inteligência Artificial inserem celebridades como Joe Biden, Vladimir Putin e o astro da NBA Lebron James em “momentos Barbie” e batem recordes de acesso. Até o ex-presidente Michel Temer quis beliscar um pouco de popularidade, aparecendo em sua rede oficial como um Ken tropical.

R$ 18 milhões TV Globo fatura alto com ação publicitária de Ana Maria “Barbie” (Crédito:Divulgação)

Sobre essa imensa adesão popular à onda rosa, que espalhou produtos em shoppings sofisticados e em grandes centros populares de varejo, como a rua 25 de Março paulistana, Jéssica destaca também um desejo de participação social em alta escala.

“Esse contexto póspandemia acaba influenciando muito o fato de as pessoas estarem dispostas a sair, a enfatizar o lúdico. A Barbie já é uma construção no nosso imaginário social. As produções culturais devem ser entendidas na chave mercadológica. Você vai criando essa identidade visual e estética para depois ninguém querer ficar de fora”, diz a socióloga.

“A criação dessa identidade, de poder se sentir pertencente a determinado universo e padrão cultural, ainda que pontualmente, vem a partir de uma memória afetiva que já está lá, em diversas gerações.”


Vídeo de boneca gigante saindo de sua caixa viralizou nas redes (Crédito:Divulgação)

Rival de super-heróis

É interessante perceber que os dois únicos filmes que superam Barbie entre as maiores estreias do mercado cinematográfico brasileiro são estrelados por super-heróis da Marvel.

A professora Melody Von Erlea, pesquisadora de cultura pop e moda, destaca também o caráter infantil associado à boneca. “Fica muito fácil julgar e apontar o dedo para a Barbie, para o rosa, que é muito ligado ao feminino na nossa sociedade, sem ter essa autorreflexão do gosto masculino por super-herói. Vestir rosa fica muito mais no alvo das críticas porque é relativo ao universo feminino. Em um pensamento social, elementos que são normalmente associados ao universo feminino são vistos de maneira mais infantilizada do que os relacionados ao masculino, que são tão infantis quanto.”

Vagão do transporte público paulistano é decorado em tons de rosa por dentro e por fora, exibindo também logomarca do filme (Crédito: Ronaldo Silva)

Jéssica Rivetti acredita que a onda rosa deve esmorecer. “A estética da Barbie está fadada a desaparecer daqui a algum tempo, porque essa estrutura mercadológica é para ser muito rápida, ela cria determinado desejo e necessidade, uma espécie de ficção social para que exista esse ímpeto de pertencer e de fazer parte dessa identidade coletiva”, comenta a socióloga.

“A grande contribuição do filme da Barbie é justamente questionar esse papel. Para mostrar que realmente não existem mais esses padrões, quebrar esses estigmas e estereótipos, e tenho certeza que vai deixar esse resquício, o rosa como uma cor para todos, todas e todes.”