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As manobras de Pacheco contra a concorrência no transporte de passageiros

O presidente do Senado vem usando a ANTT para fazer manobras que facilitam os negócios dele e da sua família no setor de transportes de ônibus. Em parceira com outros senadores, o objetivo do grupo é impedir a concorrência e beneficiar as grandes empresas que dominam a área

Crédito: Márcia Foletto

Pacheco é herdeiro da Viação Real, uma das empresas privilegiadas pela ANTT (Crédito: Márcia Foletto)

Por Samuel Nunes

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) tem sido utilizada há pelo menos dois anos para proteger os interesses de grandes empresas do setor de transporte interestadual de passageiros, em detrimento das que não conseguem autorização para operar no rentável mercado. Desde a chegada de Rafael Vitale Rodrigues ao cargo de diretor-geral, com a aprovação do Senado, a autarquia vive um clima de guerra entre os técnicos e diretores, muitos deles nomeados graças à pressão política de senadores ligados ao cartel de companhias que dominam o segmento e são protegidas pelo grupo liderado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

O senador é herdeiro de duas empresas do setor, a Viação Real e a Viação Santa Rita, ambas com sede em Minas Gerais, e que seriam beneficiadas pela ANTT, inclusive com o “engavetamento” de multas.

As empresas são comandadas pelo pai dele, mas Pacheco tem participação societária nelas, por meio da CH3 Participações e Empreendimentos Ltda.

Outro político beneficiado diretamente pelo esquema é o ex-senador Acir Gurgacz, que é dono das empresas Eucatur e Solimões, além de presidir a Associação Nacional das Empresas de Transporte Rodoviário de Passageiros (Anatrip), organização que age em parceria com o grupo dos senadores que dominam a ANTT para favorecer as grandes empresas da área.

Pacheco estaria utilizando a ANTT para proteger os interesses das grandes empresas de transporte interestadual de passageiros (Crédito:Jefferson Rudy)

Atualmente, a disputa na ANTT, ligada ao Ministério dos Transportes, se dá em torno do Marco Regulatório do Transporte Interestadual de Passageiros, que pode abrir o mercado para a livre concorrência, mas que tem a oposição das maiores companhias protegidas pelo grupo dos senadores.

A normatização desse setor foi determinada por lei, em 2014, mas depende de regulamentação da agência, em um processo que se arrasta por quase uma década e ganhou contornos que já se tornaram até alvo de investigação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.

Vitale foi denunciado por prevaricação feita pela Associação dos Servidores da ANTT (Aseantt), mas o processo está parado na PF. Segundo fontes da Aseantt, o diretor-geral da ANTT foi indicado para o cargo por Gustavo Sabóia, secretário-geral da Mesa Diretora do Senado e homem de confiança de Pacheco.

Desde que assumiu a direção da agência, Vitale promove uma série de manobras para evitar a aprovação de um Marco Regulatório que resulte na abertura do mercado.

Manobras: Rafael Vitale promove ações para impedir o livre comércio do setor de ônibus intermunicipais (Crédito:Agência Brasil)

Vitale chegou ao cargo depois de uma ampla disputa entre o grupo liderado por Pacheco e Gurgacz contra o do então ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, no governo Bolsonaro, que defendia a nomeação do diretor Davi Barreto para a direção-geral da ANTT, em função do seu perfil mais voltado à liberação do mercado, o que contrariava o grupo dos senadores.

O nome de Barreto para a diretoria-geral passou na Comissão de Infraestrutura do Senado, um passo anterior à votação no plenário, mas seu nome ficou na geladeira por mais de seis meses.

O mais estarrecedor é que, durante esse período, Barreto bem como a sua família chegaram a sofrer ameaças de morte de representantes do setor – um inquérito para apurar o caso foi aberto pela PF a pedido do Ministério da Infraestrutura. Depois de segurarem a sabatina com ele, os senadores forçaram a troca do nome de Barreto pelo de Vitale.

Desde que assumiu, Vitale promoveu uma série de atitudes questionadas até por funcionários e outros membros da diretoria.

A primeira medida foi a demissão de Sylvia Cotias, que comandava a Superintendência de Serviços de Transporte Rodoviário de Passageiros (Supas). Ela foi a responsável por um relatório a respeito do Marco Regulatório que abriria a possibilidade de novas empresas participarem do mercado de viagens interestaduais, contrariando os interesses de Pacheco.

O ex-senador Acir Gurgacz (acima), dono da Viação Eucatur (abaixo), age em acordo com o grupo de senadores que dominam a ANTT para favorecer as grandes empresas do setor (Crédito:Waldemir Barreto)
(Divulgação)

Passagens mais caras

Hoje, para que uma nova empresa seja autorizada a operar uma linha de ônibus, ela precisa de uma autorização da ANTT, cujo processo de obtenção é bastante burocrático.

Inicialmente, a companhia deve apresentar uma documentação que demonstre capacidade técnica, a descrição dos modelos de ônibus usados e até cópias das habilitações dos motoristas empregados no transporte. Cabe à Supas a avaliação desses documentos e a análise sobre a disponibilidade da rota sugerida pela empresa.

Ocorre que, se o corpo técnico da ANTT considerar que aquela linha reivindicada já está bem atendida, a concessão não é liberada, mesmo que a nova empresa oferte benefícios a mais aos passageiros ou cobre menos pelas passagens.

Há casos ainda em que as avaliações necessitam de aprovação da diretoria da agência, em um processo que, na maioria das vezes, atende mais a critérios políticos do que técnicos.

Para os empresários que já têm essas concessões, uma mudança nesse modelo será prejudicial. Com mais concorrência, o valor das passagens tenderia a ser reduzido, como já ocorreu em países como Espanha, Alemanha e Chile, e diminuiria o faturamento das viações que dominam as rotas disponíveis atualmente no Brasil.

Como o relatório de Sylvia Cotias era favorável à liberação do mercado, ela acabou demitida do posto, tão logo Vitale chegou ao cargo.

Na notícia-crime apresentada pela Aseantt ao MPF, a entidade diz que o atual diretor-geral promoveu uma série de subterfúgios para evitar a aprovação do relatório da ex-superintendente. Por isso, a entidade pediu que Vitale fosse investigado por suposta prevaricação.

Entre as manobras favoráveis ao grupo de Pacheco, Vitale evitou a convocação de um servidor para a diretoria, para substituir o ex-diretor Alexandre Porto, que renunciou ao mandato na agência. A manobra causou um desequilíbrio na diretoria, pois sempre que havia empate nas votações, incluindo a tentativa de aprovação do relatório favorável à abertura de mercado, o diretor-geral poderia votar uma segunda vez, bloqueando propostas que fossem contrárias aos interesses do grupo político que o colocou no cargo.

Dessa forma, Vitale conseguiu fazer com que o relatório de Cotias retornasse à Supas para ser refeito. Naquele momento, a superintendência estava sob o comando de Luciano Lourenço da Silva, também colocado no posto pelo grupo de senadores que domina a agência.

Oito meses depois de assumir a Supas, Luciano Silva foi premiado: acabou nomeado diretor na ANTT, também sob a bênção de Pacheco e do próprio Vitale.

“Imbuído do dolo específico de exercer superpoderes, sobrepondo suas vontades pessoais na condução da Agência Reguladora, o diretor-geral, Rafael Vitale, despreza os deveres atinentes à função pública, deixando de praticar, indevidamente, ato de ofício, contra expressa disposição de lei”, diz trecho do pedido de investigação da Aseantt encaminhado ao MPF.

O atual superintendente da Supas, Juliano Samôr, é funcionário de carreira da ANTT, chegou ao posto atual depois de uma negociação envolvendo o próprio Luciano Lourenço da Silva, Rodrigo Pacheco e Vitale.

Neste mês, como num jogo de cartas marcadas, Samôr produziu um novo relatório sobre o Marco Regulatório altamente restritivo que praticamente impede a entrada de novas empresas no setor de transporte de passageiros.

O documento foi considerado “escandaloso” por técnicos da ANTT e serve como base para as discussões e audiências públicas que estão em curso hoje na agência.

Se o relatório for aprovado sem alterações significativas, será a consagração das empresas que dominam o setor há décadas e, consequentemente, uma vitória dos políticos e diretores que mantém uma relação promíscua com essas companhias.

Multas engavetadas

Além de atuar claramente contra a abertura do mercado, fontes ligadas à Aseantt garantem que a ANTT, sob comando de Vitale, “engavetaria” multas das empresas da família de Pacheco. Há informações de que, só em 2021, havia 47 autos de infrações desprezados da Viação Santa Rita.

A condução da ANTT sob o comando de Vitale segue sendo questionada pelo corpo técnico da entidade.

Além do pedido de inquérito feito pela associação dos servidores, há questionamentos em relação a gastos com viagens pelo Brasil e no exterior com dinheiro público. Desde que assumiu, já gastou R$ 461 mil em passagens e diárias, incluindo idas a Portugal, Bélgica, Itália e outros.

Pesa ainda contra Vitale uma condenação em 2009 por atropelar e matar um ciclista – ao diretor-geral de uma agência de transportes deveria ser exigido no mínimo um histórico de prudência no trânsito. Condenado, ele teve que pagar R$ 38 mil, mais uma pensão estipulada pela Justiça à família da vítima, depois de transitar em velocidade de 90km/h em via com velocidade máxima permitida de 40km/h.

Como secretário-geral do Senado e homem de confiança de Pacheco, Gustavo Sabóia indicou o nome de Vitale para dirigir a ANTT (Crédito:Rodrigo Viana)

Outro diretor da ANTT que também tem favorecido os interesses do grupo de Pacheco é Guilherme Theo Rodrigues, que assumiu o posto em julho de 2021. Advogado, ele atuava na defesa de uma empresa que pertence a Vander Francisco Costa, ex-presidente da Confederação Nacional do Transporte (CNT), entidade que também é contrária à liberação do mercado.

Na advocacia, ele ainda trabalhou indiretamente com a própria CNT, defendendo interesses dos empresários do setor de transportes em diversas causas.

Procurado, Pacheco não respondeu aos questionamentos feitos por ISTOÉ.

Acir Gurgacz afirmou que a Anatripe não é contra a abertura do mercado, mas defende que a mudança ocorra com “regras claras, sempre preservando o equilíbrio econômico e concorrencial”.

Em nota, a ANTT informou que vem avançando nas discussões sobre a regulamentação do transporte rodoviário de passageiros e reabriu uma audiência pública para debater o tema. Sobre a investigação policial, a entidade afirma que o caso foi arquivado pela PF.

Luciano Lourenço foi nomeado diretor da ANTT com a proteção do grupo de Pacheco (Crédito:Roque de Sá)

Apesar das manobras, neste momento Vitale e os demais diretores estão imunes a qualquer questionamento que não seja o judicial. A legislação envolvendo as agências reguladoras impede que os diretores sejam demitidos pelos chefes do Executivo.

Dentro da ANTT, no entanto, as discussões em torno da abertura ou não do mercado podem manchar de vez a pouca reputação que ainda resta do homem de confiança de Pacheco.