Comportamento

A padaria dos papas encerra fornadas

Depois de 93 anos, a Panificadora Arrigoni fecha por causa dos impostos elevados pela especulação imobiliária em Roma e deixa como legado histórias curiosas sobre os pães especiais entregues aos pontífices

Crédito: Andreas Solaro

Um ritual que deixa de existir: o dono da Panificadora Arregoni cerra as portas, a poucos metros do Vaticano (Crédito: Andreas Solaro)

Por Carlos Eduardo Fraga 

A Padaria Arrigoni, famosa por suas encomendas especiais aos papas ao longo de quase um século, fecha suas portas para sempre. Propriedade de Angelo Arrigoni, de 79 anos, a padaria há três gerações servia as Santidades que ocupavam o Vaticano. Fundada em 1930 por seu avô e seu pai, a Arrigoni logo se tornou responsável por fornecer o pão favorito de oito papas consecutivos.

Localizada a menos de duas quadras de uma das entradas do Vaticano, na rua Borgo Pio, Arrigoni viu o bairro passar por uma valorização extrema, processo que lotou as cercanias de restaurantes sofisticadas e hotéis estrelados. Foi impossível para o padeiro arcar com os impostos devidos pelo estabelecimento e enfrentar a concorrência de tantos bares e cantinas.

A história começa com Pio XI, papa de 1922 a 1939, cujo temor de ser envenenado levou a uma estratégia de segurança singular. Angelo Arrigoni, o pai do atual proprietário, era o guardião de uma chave que abria um cofre do tamanho de uma maleta protátil, com pão vienense, o favorito do papa Pio XI. Esse cofre era entregue a um colaborador extremamente confiável, que o levava até as freiras encarregadas do serviço papal, que detinham a outra chave.

Em uma missão emocionante e marcante durante a infância de Angelo Arrigoni, ele foi encarregado de levar pessoalmente o pão ao papa João XXIII (de 1958 a 1963).

(Andreas Solaro)

1930
é a data de inauguração da padaria


8
são os papas servidos por 93 anos

150 m
é a distância da panificadora ao Vaticano

(Andreas Solaro)

A lembrança daquele momento perdurou, com o papa olhando para ele e o chamando para um conversa. “Lembro-me daquele longo corredor. O papa passava e olhava para a porta. Eu estava muito envergonhado. E a freira me disse: ‘Vamos, o papa quer falar com você’. Fiquei emocionado, respondi a tudo, mas não me lembro das palavras”, conta o padeiro, emocionado.

Os anos se passaram, e a Padaria Arrigoni continuou a cumprir seu papel de fornecedora de pão para os papas sucessores.

João Paulo II, o pontífice mais longevo (de 1978 a 2005) entre os “fregueses especiais” de Arrigoni e polonês de origem, quis receber o mesmo pão que os trabalhadores comiam em sua terra natal, estabelecendo uma conexão especial com a padaria. “Durante todo o seu longo pontificado, enviamos diariamente a ele cinco rosetas, o pão folhado simples, e cinco ‘ciriole’, que é um clássico pão romano”, explica Arrigoni.

A relação se fortaleceu com o futuro papa Bento XVI, o cardeal Joseph Ratzinger, que já frequentava a padaria mesmo antes de sua ascensão ao trono papal. À época, ele ia sozinho até a padaria e levava alguns pães, quase sempre integrais, principalmente nos meses de inverno, quando visitava o estabelecimento duas ou três vezes por semana.

Depois do conclave de 2005, que transformou Ratzinger em Bento XVI, Arrigoni procurou os funcionários próximos ao novo papa para manter a tradição de levar ao pontífice o pão diário. E ele conta, rindo, o que aconteceu: “A freira foi perguntar e quando voltou estava envergonhada. ‘Não, desculpe, mas o Santo Padre já tem seu próprio padeiro em Borgo Pio’. Eu respondi: ‘Irmã, eu sou o padeiro do papa’, dando risada”.

Além de fornecer o pão durante o Papado de Bento XVI, Arrigoni continuou a servi-lo em sua condição de “papa emérito”, depois da ascensão de Francisco, em 2013.

Contudo, algumas mudanças ocorreram. O papa argentino trouxe uma abordagem mais simples e humilde. Angelo Arrigoni, dedicado como sempre, descobriu o pão mais comum na Argentina. “Cheguei a experimentar as receitas, mas a freira me informou que o Santo Padre não queria um pão feito especificamente para ele. Pediu que enviasse o pão que sobrasse.’”

Receita caseira: Angelo Arrigoni exibe pão no balcão de sua panificadora (Crédito:Andreas Solaro)

A tradição de entregar pães aos papas chegou ao fim no dia 7 de julho, embora tenha atendido um ou outro freguês mesmo depois do fechamento. Por muito tempo, a Padaria Arrigoni desempenhou um papel singular na vida do Vaticano e trouxe uma característica especial à rua Borgo Pio, com o aroma do pão artesanal invadindo a calçada em várias fornadas ao longo do dia.

Em mais um dos muitos episódios recentes da transformação do centro romano devido à especulação imobiliária e aumento do turismo, é um capítulo que se encerra nas histórias contadas sobre o Vaticano.

* Estagiário sob supervisão de Thales de Menezes