Brasil

O que Lira pretende esconder

Um suposto estupro, do qual o STF já o absolveu? Eventual corrupção política, coisa rotineira no País? Ao desprezar a Constituição e pedir à Justiça censura prévia de informações a seu respeito, o presidente da Câmara faz crer que há algo bem mais grave que ele precisa ocultar

Crédito: Gabriela Biló

Arthur Lira e sua ex-mulher, Jullyene (à esq.): segundo ela, o casamento foi uma sombria convivência de ciúme e traição por parte do marido (Crédito: Gabriela Biló)

Por Samuel Nunes

Com a vivência parlamentar que traz acumulada, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, sabe que a Casa legislativa que pilota é a encarnação da soberania popular em um Estado democrático de Direito — é o próprio “povo exercendo diretamente o poder”, como estabelece a Constituição Federal. No sistema bicameral, assim como o Senado representa cada estado, é a Câmara que guarda a prerrogativa de espelhar cada indivíduo. Também pela Constituição, tem de ser ela, portanto, a primeira a defender a liberdade de expressão e o direito de as pessoas informarem e serem informadas.

A Carta veda a censura e a censura prévia. O deputado Lira, no entanto, trafega na via inconstitucional, e não hesitou em recorrer ao Judiciário pleiteando o bloqueio de notícias à medida que sua ex-esposa, Jullyene Lins, passou a dar entrevistas nos últimos dias revolvendo o passado. Primeiro Jullyene falou de corrupção do ex-marido, e ele pediu então, judicialmente, a derrubada dessas matérias nos sites que as publicavam.

Mais: chegou a querer medida cautelar que evitasse previamente qualquer publicação — isso, em português claro, chama-se censura prévia, instrumento de exceção de regimes autocráticos. Lira ganhou ordens liminares, mas Jullyene seguiu falando. E a coisa piorou: ela o acusou de tê-la estuprado quando já estavam residindo separados.

Também aí Lira foi à Justiça, e, dessa forma, lançou no ar a indagação: o que ele deseja esconder de seu passado? É algo que diz respeito à política ou são fatos que se inserem em seu universo particular?

Sobre alguma coisa de sua vida pregressa, Lira quer que o “detergente do sol” não seja derramado, ou então não teria recorrido à censura, lembrando-se da imagem criada em 1913 pelo ex-juiz da Suprema Corte dos EUA Louis Brandeis, indignado que estava com extravagantes condutas de figuras públicas.

Como já dito, Lira alcançou algum resultado, como a ordem liminar da Justiça para que fosse retirado da mídia o conteúdo referente ao suposto estupro referido por sua ex-mulher, sob a alegação de que o STF já decidira pela absolvição em 2015.

A notícia da censura

Na época da ditadura militar no Brasil, chegou-se ao ridículo ponto de se censurar previamente peça de teatro e, também, de se impedir que fosse dada a própria notícia da censura. Isso agora seria impossível. Na função de presidente da Câmara é natural que Lira seja exposto publicamente. E, sendo assim, noticiaram o seu apetite por censura e a sua imposição. Deu ruim, muito ruim para o presidente da Câmara.

Se Jullyene estiver falando a verdade, a conduta do deputado é compatível com séria punição.

Diz ela que, já separados, o parlamentar foi à sua casa, e, assim que lhe abriu a porta, recebeu um soco no rosto. A partir daí, e por cerca de quarenta minutos, Lira teria lhe espancado enquanto a ofendia moralmente – até que a estuprou para “mostrar quem é o macho”.

Apesar de o STF já ter se manifestado sobre o processo há oito anos, ele pode ser reaberto caso Jullyene traga algum fato novo sobre a eventual ocorrência.

Já as denúncias sobre suposto comportamento de Lira que teria acarretado malversação, essas irão para frente porque, cada vez mais, assessores supostamente coniventes formam a meada que vai tendo o seu fio puxado.

De volta ao folhetim que pode virar novo B.O, Jullyene e Lira se conheceram em 1996 em uma boate de Maceió. Filho de Benedito de Lira, influente político à época, ele todo garboso apaixonou rapidamente a moça. Era vereador e rico.

Em apenas três meses já estavam morando juntos, mas o conto de fadas começou a virar história de terror devido ao fato, segundo ela, de Lira ter-lhe tolhido a liberdade, ser excessivamente ciumento proibindo-lhe saias e vestidos curtos e biquíni, apesar de ele manter relacionamento fora do casamento — que teria gerado inclusive um filho, história descoberta em 2006 e que selou a separação do casal.

Pela legislação atual, tanto o estupro quanto a violência doméstica são crimes que já não dependem da vontade da vítima de levar ou não a coisa para frente, a titularidade é automaticamente do Ministério Público.

Ou seja: ainda que ela ande dizendo que não pretenda reavivar as ações judiciais, pode o MP requerer novas investigações, sobretudo pelo fato de Lira ter pedido censura à liberdade de expressão e informação.

Somente temperamentos autoritários, principalmente no exercício de função pública, lançam mão do abjeto recurso da censura, como se tivessem a prerrogativa do chamado direito ao esquecimento. Não a têm.

Até porque o STJ já determinou que o chamado direito ao esquecimento não exclui a divulgação de notícias ligadas aos episódios (pessoais ou públicos) que se quer esquecidos.

Mais: o STF julgou tal direito incompatível com a Constituição do País. Vá saber o que Arthur Lira deseja esconder, embora tudo indique que possam ser-lhe assuntos mais perigosos que a rotineira corrupção política brasileira ou um suposto grave estupro do qual o STF já o absolveu.

Ironicamente, no entanto, ao recorrer à censura colocou mais holofotes sobre si do que as entrevistas de sua ex-mulher.